Cidades

Catadores viram a noite no lixão da Estrutural

A partir das 18h, o Lixão fica mais perigoso: há pouca iluminação e os catadores usam facas para escavar os detritos despejados pelos caminhões

Mirella D'Elia
postado em 19/08/2009 09:56

;À noite, a gente não vê nada. Só os zóinhos (sic) das lagartixas.; A frase do catador Nélio Souza Guedes, 22 anos, resume, com a simplicidade de quem trabalha no Aterro da Estrutural, a imagem de dezenas de catadores com lanternas presas nos bonés e mexendo em pilhas de detritos. São apetrechos que eles improvisaram para poder enxergar o que vale dinheiro em meio ao lixo. As luzes servem para iluminar apenas uma área de pouco mais de 1m a cada vez: não há pausa no trabalho no Lixão.

A jornada noturna no Aterro da Estrutural vai do anoitecer até as 5h do dia seguinteÉ difícil ficar indiferente à cena. O alaranjado do início de noite revela os últimos raios de sol que se destacam em meio à poeira das montanhas de resíduos. Ainda há um resto de claridade. Mas logo a escuridão deixará mais evidentes as chamas azuladas das manilhas onde queima o gás metano ; resultante da decomposição do material orgânico. O cheiro fica mais forte à medida que a noite chega. Culpa do vento que sopra de modo mais fraco nesse horário.

[SAIBAMAIS]Para piorar, na escuridão, o trabalho no aterro fica mais perigoso. Os motoristas dos caminhões não conseguem ver com segurança se alguém está atrás do veículo e, como não há tratores espalhando o lixo à noite, muitos catadores carregam facas para abrirem os sacos. ;Os acidentes são piores à noite, mas a culpa nunca é dos operadores ou dos motoristas. Os novatos acham que catar é fácil;, afirma Ricardo Pacheco, 33 anos, 15 no Aterro.

Nos últimos dois anos, cinco catadores se acidentaram, quatro foram atropelados e dois morreram. ;Não é para fracos;, completa Ricardo, que usa, no alto da cabeça, uma lanterna abastecida com bateria de motocicleta, de 12 volts. Fruto da criatividade dos catadores, a carga de 1kg é guardada em uma pochete e libera os catadores de comprar pilhas todos os dias.

Sustento
Quem também usa a traquitana na cabeça é José Luiz de Oliveira, de 24 anos. Vindo do Nordeste há três anos, ele trabalha no lixo para fazer o enxoval do filho que vem por aí. ;Minha mulher está com seis meses de gravidez e a gente ainda não tem nada;, conta. Assim como ele, Domingos Arcanjo Gomes de Oliveira veio de longe para viver dos dejetos da capital do país. Deixou a Bahia e escolheu o breu para o trabalho. É para o Lixão que o jovem de 25 anos segue todas as noites para sustentar a mulher e os três filhos que moram num barraco da Estrutural.

Domingos não se incomoda com o frio e trata com indiferença a sensação de insegurança. Mas lamenta as noites em claro. ;De dia faz muito calor e tem muita poeira. À noite é ruim porque a gente perde o sono;, diz o baiano. E a mulher, não estranha o fato de o marido só chegar em casa de manhã? O rapaz garante que não: ;Não estou na rua aprontando;.

Quando o sono aperta, os catadores se espremem entre os sacos gigantes de produto recolhido e dormem ali mesmo. O catador Nélio Souza não tem barraco. ;Começo no fim da tarde e vou até o dia amanhecer. Tem hora que eu não aguento e tiro um cochilo aqui mesmo;, admite. Para os que trabalham de dia e dormem no aterro, a noite é de recolhimento. No Lixão, há turnos. Há os que trabalham das 5h às 17h e os que pegam no batente ao anoitecer e seguem até as 5h. ;Durmo tão pesado que nem ouço o barulho dos caminhões;, conta uma catadora de 33 anos que pediu para não ter o nome divulgado.

Ameaça ao meio ambiente
Há 40 anos encravado em uma área bem perto do poder de Brasília ; a apenas 15km do Congresso Nacional ;, reina, imponente, o Lixão da Estrutural. Chamado tecnicamente de Aterro Controlado, ele representa, na verdade, uma ameaça à saúde ambiental do Distrito Federal, o que é admitido por autoridades. ;A gestão do lixo é um dos problemas mais graves do país. Aqui, a situação ainda não foi resolvida adequadamente. O Lixão da Estrutural fica ao lado do Parque Nacional de Brasília, de onde vem a água que abastece mais de 500 mil pessoas. Isso obviamente traz problemas;, diz o presidente do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), Gustavo Souto Maior.

Samambaia
O Aterro vai continuar fazendo parte da paisagem da capital do país durante um bom tempo. Prevista no Plano de Ordenamento Territorial do DF (Pdot), aprovado em 2008, a desativação do espaço está diretamente ligada à construção do Aterro Sanitário de Samambaia. A licitação para erguer o novo aterro ainda não foi lançada. A meta do GDF é que ele esteja funcionando até o fim do ano que vem. ;Não há como recuar nesse processo;, afirma o secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do DF, Cássio Taniguchi.

A estratégia, enquanto isso, é diminuir aos poucos a área utilizada na Estrutural. Segundo a diretora-geral do Serviço de Limpeza Urbana do DF (SLU), Fátima Có, 40% do Lixão estão em uso atualmente. ;Não estamos com o aterro pronto, mas não estamos de braços cruzados;, diz Fátima. Uma das principais preocupações do governo quando o Lixão fechar as portas é aproveitar a mão de obra dos catadores, pois, em Samambaia, a entrada deles será vetada. A ideia é que boa parte dessas pessoas continue trabalhando com reciclagem. ;Os que não quiserem vão ter a opção de voltar para casa. Outros poderão fazer cursos profissionalizantes;, conclui Fátima Có. Segundo o SLU, cerca de 900 pessoas atuam na coleta de rejeitos no Lixão da Estrutural.

VIOLÊNCIA
Ocorrências registradas no Lixão da Estrutural, entre novembro de 2007 e julho de 2009:


9 fetos localizados
5 acidentes
4 atropelamentos
2 mortes
1 tentativa de estupro
1 esfaqueamento

Fonte: SLU

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