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Há 70 anos...

A história de um almoxarife do Senado e de uma dona de casa da 110 Sul que, em sete décadas, escreveram suas vidas como se fossem o roteiro de um filme bom. Hoje, comemoram as conquistas, filhos, netos, bisnetos e o amor incondicional que os conduziu até aqui

postado em 16/11/2009 10:00
Sexta-feira, 16h. A entrevista estava marcada para as 15h. Ela se demorou no espelho. Aliás, até hoje é assim. O fuxico que corre em casa é que, até pra tomar café da manhã, ela já chega arrumada. Ela? Assume a vaidade sem cerimônia. ;Adoro me enfeitar, gosto de ficar arrumada;, admite. Gosta também de combinar brinco com anéis e colares. O cabelo, branco, hoje está meio ;louro-cinza-escuro;. Um tom charmoso. Elegante. Ela jura que é coisa que um certo shampu anda fazendo nas suas madeixas.

A história de um almoxarife do Senado e de uma dona de casa da 110 Sul que, em sete décadas, escreveram suas vidas como se fossem o roteiro de um filme bom. Hoje, comemoram as conquistas, filhos, netos, bisnetos e o amor incondicional que os conduziu até aquiNo rosto, desde mocinha, usa um creme do qual não abre mão nem com reza. Pode até esquecer o remédio, mas o danado nem pensar. O nome? Rugol. Isso mesmo: Rugol. Decoraram, mulheres? Pronto: foi revelado o segredo da pele tão boa. Na quinta-feira passada, ela completou mais um ano de vida. Ele é mais velho que ela três anos. Miudinho ; nunca passou de 1,54m ; adora bater perna na padaria, conversar com as meninas da farmácia e, principalmente, fazer uma fezinha na lotérica. Flamenguista roxo, se esbalda ao contar vantagens sobre as conquistas do time.

Na 110 Sul, toda a quadra o conhece. Principalmente as moças da padaria e da farmácia. O bigodinho branco dele faz sucesso. É seu charme. Ela morre de ciúmes, mas finge que nem liga. Mentirinha. No aniversário dele do ano passado, onde a família se reuniu num restaurante da Asa Sul para uma grande festa (só os parentes fecharam o espaço), ele quis convidar as meninas da padaria e da farmácia. Ela ralhou. Bateu pé. Disse que, se fosse convidá-las, não teria lugar para todos os amigos. Ele, como sempre, obedeceu. O nome dela? Maria de Lourdes Alves Gomes, 88 anos. O dele? Francisco Olímpio Gomes, 91. Tempo de namoro? Três anos. E de casamento? Sessenta e sete. Esta história começou há 70 anos, em 1939.

Rio de Janeiro. Adolescente, Maria morava na Tijuca. Francisco, no Flamengo. Mas, muito antes de se reencontrem no Rio, eles já se conheciam de Macaé, cidade onde ambos nasceram. Uma prima dele foi a culpada pelo reencontro. E o clima de paquera estava solto no ar. Não demorou muito tempo e o namoro, enfim, vingou. No primeiro dia em que começaram a namorar, foram a um cinema, na Rua da Passagem, no Flamengo. Assistiram a um filme romântico. ;Tinha beijo na boca;, ela lembra, meio envergonhada. Aquele filme nunca mais saiu de sua cabeça.

De cinema em cinema, passeios em passeios, passaram-se os anos. E chegou o casamento. Era 1942. Ela tinha 20 anos. Ele, 23. Começava a vida de verdade. Ele trabalhava em dois empregos. Era almoxarife do Senado Federal, no Rio de Janeiro, e tintureiro de lavanderia. ;Lavei e passei muita roupa das atrizes do Teatro Municipal;, ele diz. Começavam os anos 1950. Nascem os sete filhos de Maria e de Francisco. O mineiro de Diamantina Juscelino Kubitschek chega à Presidência da República. A bossa nova ensaia os primeiros passos. Brasília deixa de ser apenas um sonho. O Rio de Janeiro, em pouco tempo, não mais seria capital.

Nova vida
Francisco sabia que teria que optar: ou se mudaria para a terra de JK, cheia de terra vermelha e redemoinho, ou permaneceria no Rio, como tintureiro. Vinte e um de abril de 1960. Brasília virou verdade. Francisco, lá do Rio de Janeiro, ouviu pelo rádio a inauguração. Chamou Maria e lhe disse que a família precisaria se mudar. Seu emprego no Senado só existiria aqui. E ainda lhe pagaria salário em dobro ; oferta do governo para atrair gente à nova capital. A mulher tremeu. Ouviu falar que só havia mato e obras. Mas vieram todos. Começa aqui a segunda parte desta história.

Na rodoviária do Rio de Janeiro, dentro de um ônibus, embarcaram Maria, Francisco e os sete filhos. ;O mais novo tinha 5 anos;, ela lembra. Ele emenda: ;Levamos três dias para chegar;. No desembarque, a desolação. Era o começo de tudo. Na ida para a primeira moradia, um apartamento de dois quartos na 410 Sul, Maria encheu os olhos de lágrimas. Francisco quis voltar. Um colega do Senado lhe indagou e ao mesmo tempo previu a decisão do amigo, caso ele voltasse para o Rio: ;Você vai voltar? Não faça isso. Vai estragar a sua vida;. Francisco lhe deu ouvidos. Pensou duas vezes. Três. Mil vezes. Quarenta e nove anos depois, ele admite, como se assistisse a um filme passar diante da sua retina: ;Hoje, sou louco por Brasília;.

A vida seguiu. Da 410 Sul, mudaram-se para a 406 Norte. Depois, o bloco foi ameaçado de desabar. Todos tiveram que sair dali às pressas. Moraram dois anos no Brasília Imperial Hotel. ;Até hoje, o bloco tá em pé, nunca caiu;, ri Francisco. Voltaram para a 406 Norte. Mais uma ameaça. Mais uma debandada. Desta vez, moraram no Brasília Palace Hotel, por mais dois anos. Maria, decidida, se cansou. Bateu pé. Disse que não ficaria mais nesse vaivém.

Cativar pessoas
A numerosa família decidiu morar no Cruzeiro Velho, numa casa bem espaçosa. Viveram ali muito tempo. Os filhos do almoxarife do Senado cresceram, estudaram, se formaram . Viraram doutores com canudo. Logo ele, que mal havia acabado o primário, via sua família vestir beca e receber diploma. Nasceram os filhos dos filhos de Maria e Francisco. Os filhos dos filhos dos filhos do casal (bisnetos) não param de chegar. Até agora, contam-se 11. Hoje, Maria e Francisco moram num confortável apartamento na 110 Sul.

No Senado, Francisco foi um trabalhador exemplar. Cativou os colegas. Fez amigos para a vida toda. Simpaticamente, apelidaram-no de ;Gigante;, em função da baixa estatura. Nunca faltou. E só saiu dali aos 70 anos, quando lhe disseram que não podia mais ficar. ;Foi na compulsória;, ele diz, 21 anos, ainda entristecido. Naquele tempo, garante o almoxarife, o Senado ;era mais sério; e os políticos, de confiança;. ;Hoje, não tem mais em quem votar;, observa. E lembra, com saudade, do último presidente da Casa que lhe inspirou integridade: ;O doutor Ulysses Guimarães era um homem de respeito;.

Francisco não só foi ;gigante; no Senado. Fez gigantesca também sua vida com Maria. A afilhada, a jornalista Genilda Casemiro Lurenço, 60, que virou filha, diz, emocionada: ;Ele é a luz da casa;. Uma das filhas, a professora Honorata Gomes Neta, 61, se extasia: ;O que mais me orgulha nele é a luta, a coragem de manter a família, atender as necessidades de cada filho e a capacidade de fazer e cultivar amigos ...;

No apartamento da 110 Sul, Maria e Francisco celebram os longos 67 anos de casados. Dormem juntinhos até hoje. E não dispensam um beijinho na boca, nos momento de aconchego. ;Ele nunca precisou dormir no sofá;, ela diz, orgulhosa da união. Ele continua: ;Se contar o tempo do namoro, a gente se conhece há 70 anos. Nesse tempo todo, nunca tivemos uma briga. Sabemos nos entender;, diz Francisco. ;A gente faz que não vê pra não se aborrecer. É preciso ter paciência;, ela ensina. Ele completa: ;Os casais hoje se separam porque não existe mais tolerância;.

Terra escolhida
A prosa seguiu animada. Maria contou histórias. Lembrou-se do começo de Brasília: ;Era tanta poeira, tanto redemoinho, que a gente ia fazer compra na Cidade Livre com um lenço amarrado na cabeça e outro no nariz;. Ele reparou como a capital foi se transformando: ;Era uma outra cidade. Não tinha essa violência toda;. Ela observa: ;No Plano Piloto, não tem mais cinema. Hoje, é tudo em shopping. Lá é muito barulhento...; Mas, ainda assim, mesmo com uma Brasília diferente, eles não pensam mais em voltar para o Rio de Janeiro. ;Aqui, é a nossa terra;, ele garante. Ela concorda.

Fim da entrevista. Fim da tarde de sexta-feira. O fotógrafo pediu para que algumas fotos fossem feitas debaixo do bloco. Maria andou ligeirinho para o quarto. E se demorou mais um pouquinho. Por quê? A danadinha foi trocar a sandália que calçava por um sapatinho branco. Combinou melhor com o vestido florido e a rosa preta que carregava no decote. Mais: o atraso também se deveu pela procurava dos óculos de strass. Não os achou. Uma pena.

E lá se foram os dois, andando de mãos dadas, como se fosse o começo de tudo, primeiro dia, pela arborizada 110 Sul. A vizinhança espiou da janela. Sorrindo, acenou para o casal. A vida passou para Maria e Francisco como um filme bom. E como é bom assistir a um filme bom... Ouvir a história deles é como sair da sala de um cinema completamente anestesiado de prazer. Pensando na própria vida.

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