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A primeira cabeleireira

Filha de migrantes japoneses, Virgínia imaginou ganhar muito dinheiro cuidando dos cabelos e unhas das candangas. Mas, quando aqui chegou, não havia mulher. Enquanto esperava, plantou, colheu e ficou encantada com os frutos da terra

postado em 25/11/2009 08:00

Instrumento de trabalho guardado a sete chaves: a primeira tesoura, desde 1957
Quando comunicou à família que todos viriam para Brasília, Tsugio Nakano olhou para a filha mais velha e comentou : ;Você tem curso de cabeleireira, vai se dar bem;. Ele próprio estava orgulhoso: ;Vamos para a capital do Brasil;. Nakano, a mulher e os nove filhos subiram num caminhão e uma semana depois desembarcavam na Cidade Livre, em 17 de outubro de 1957. Pai, mãe, filhos, mobília da casa e móveis para o salão de beleza. Faziam parte da primeira leva de migrantes japoneses que vieram domar a terra ácida e aparentemente estéril do Cerrado.

Não demorou muito para que Virgínia, a filha de Nakano, olhasse ao redor e conferisse: não havia mulheres em Brasília. Naquele tempo, homem cortava cabelo de homem, e mulher, de mulher. O salão, montado na sala da casa, foi fechado, o diploma de cabeleireira obtido na cidade de São Paulo ficou guardado na mala e a jovem nissei foi ajudar a mãe e o pai na lavoura. Começaram cultivando cebolinha, coentro, salsa, rabanete vermelho, nabo e alface, hortaliças de fácil reprodução.

Filhos da primeira leva de migrantes japoneses fazem pose para a históriaSe não havia mulheres para encher o salão de beleza dos sonhos de Virgínia, a terra que foi destinada aos Nakano, nos arredores do Núcleo Bandeirante, não era vermelha nem ácida nem estéril, como temiam os japoneses que deixaram São Paulo para domar a aridez do Cerrado. ;Meu pai ficou encantando com a terra. Ela era boa;, lembra-se Virgínia. (Nakano morreu em 1986, aos 77 anos, provavelmente vítima de um erro médico). Boa e umedecida por brejos entre os córregos Vicente Pires e Riacho Fundo, a terra respondeu de imediato às intervenções dos bravos lavradores nipônicos.

Daqueles primeiros meses de cultivo, ficou um sentimento forte na moça de olhos esticados, rosto de corte quadrado e extrema disposição de trabalho: ;Foi maravilhoso. Vi sementes brotando, couve pequenininha ficar desse tamanho (faz o gesto de uma bola).; Enquanto lá fora Brasília crescia em proporção geométrica, à razão de mil habitantes por mês, a jovem nissei e sua mãe, Kimiro, percorriam as horas do dia e os dias da semana plantando e colhendo as primeiras hortaliças que chegaram à mesa dos candangos.

Até que, um ano depois, Virgínia olhou ao redor e viu que a Cidade Livre havia crescido muito e que já era expressivo o número de mulheres ajudando a amansar a terra vermelha. Ela abandonou a lavoura e passou a se dedicar inteiramente ao salão de beleza. Eram três cadeiras, três consoles, três espelhos, um lavatório e um secador de pé.

A estreia

O salão ainda estava à espera da freguesia, quando uma jovem da aristocracia argentina viu a plaqueta de madeira anunciando que ali havia uma cabeleireira. ;Meu cabelo era longo e não havia chuveiro pra lavá-lo;, lembra Mercedes Urquiza, que, à época com 18 anos, havia deixado as regalias de Buenos Aires para, com o marido, subir o mapa-múndi até o mais inabitável cerrado. Encontrar uma cabeleireira numa cidade bruta foi uma alegria sem tamanho. ;Finalmente, eu iria lavar meu cabelo de verdade;, conta Mercedes com incorrigível sotaque portenho. De verdade, em termos. No Virgínia Cabeleireira, como no restante da cidade, usava-se água trazida em lata do córrego Vicente Pires. ;Se a freguesa quisesse água morna, a gente esquentava no fogo;, conta a cabeleireira.

Virgínia, na porta de um barraco de madeira no Núcleo Bandeirante, 52 anos depois de chegar a Brasília: A clientela era quase toda carioca. Mulheres novas e infelizes, que acompanhavam os maridos na aventura de inventar uma cidade. Estavam insatisfeitas com a mudança da beira do mar para o sertão bravio, do conforto de uma vida montada para o desconforto de uma vida toda por fazer. ;Elas reclamavam muito e eu dizia que aqui ainda ia ficar bom;, lembra-se Virgínia.

Nem por isso, esqueciam-se da vaidade. O serviço mais requisitado era a permanente. ;Elas gostavam muito de encaracolar o cabelo;. Naquele tempo, escova era tão somente o nome de um utensílio de penteadeira. Os cabelos eram torneados a bobes. Tintura era um recurso usado apenas para cobrir cabelos brancos e, para isso, o mercado só oferecia duas tonalidades: preto ou castanho-escuro. ;Fiz muito arranjo de cabelo naquele tempo;, conta Virgínia. Eram os coques altos usados nas festas oferecidas pelo presidente pé de valsa, bossa nova e peixe vivo.

Na entrada de seu salão de beleza: muito permanente, bobes e tinta preta ou castanhaNo ano que antecedeu a inauguração da nova capital, a primeira cabeleireira de Brasília trabalhava em ritmo de candango: das 6h à meia-noite. ;Havia dias em que eu precisava distribuir numeração;. Duas de suas irmãs, Luíza e Ilda, faziam as vezes de manicure e pedicure da clientela. Logo surgiram concorrentes, mas a procura era muito maior do que a oferta. Virgínia continuou trabalhando muito até que, depois da inauguração da cidade, deixou o salão com Luíza e foi ser atacadista de frutas e verduras.

Carnaval japonês
Nesse meio tempo, conheceu um candango-japonês, Moboro, que havia chegado em 1959 e sabia tudo de estufa de banana (processo de amadurecimento da fruta que consistia em deixá-la abafada em um tambor). Virgínia também entendia do assunto. Menina, via sua mãe maturar as bananas que ela e o irmão Armando iriam vender de porta em porta em Adamantina (SP), das 6h às 7h30. Às 8h, as duas crianças iam para a escola. A estufa de banana deu em casamento.

Treze anos e quatro filhos mais tarde, Moboro morreu, vítima de enfisema pulmonar. Virgínia casou-se novamente, com outro japonês, e teve três filhos que se somaram aos quatro do casamento anterior. Entre os anos 1970 e 1980, a cabeleireira número 1 da Cidade Livre montou novo salão na QI 9 do Guará. Depois, mudou-se com toda a família para o Japão. Foi uma década de tanto trabalho quanto no tempo da construção de Brasília, só que, em vez de participar da criação de uma cidade, Virgínia ajudava a fabricar juntas de motores de carro. Até que uma queda da mãe, em Brasília, a trouxe de volta temporariamente. Foi e voltou, voltou e foi até 2005. Aos 70 anos, Virgínia se aquietou. ;Trabalhei muito, me diverti pouco;.

Virgínia é nome de batismo, escolha aleatória de um padre para que Mtsuko Makumori pudesse fazer o curso de admissão, espécie de vestibular para fazer a 7; série do ensino fundamental. ;Agradeço muito ao padre, gosto muito do meu nome, é bênção de Deus;. Talvez Virginia não saiba que o nome que o padre deu a ela, no início dos anos 1950, era o de uma célebre vedete do Teatro Rebolado e das chanchadas carnavalescas, Virgínia Lane.

A Virgínia candanga também gostava de carnaval. Uma das maiores ousadias de uma descendente da conservadora colônia japonesa foi querer brincar o carnaval de 1959 na Cidade Livre. ;Só se for dentro de casa;, decidiu o pai. Virgínia fechou o salão, arrastou os móveis, chamou as amigas, preparou uns salgadinhos com refresco e as jovens japonesinhas fizeram o primeiro carnaval nipocandango da história de Brasília.

Avó de nove sanseis, bisavó de um yonsei, Virgínia continua assombrada com a nova capital: ;Como pode? Parece que foi ontem;. Depois da experiência no Japão, de volta a Brasília, ela costuma ouvir dos filhos: ;Mãe, você veio para o lugar certo.;

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