Cidades

A dona da casa

É de Maria Aparecida Emediato uma das raras moradias de madeira do tempo da construção de Brasília, onde vive há 49 anos. E tem outro orgulho: alfabetizou os primeiros candanguinhos da nova capital

postado em 12/12/2009 07:01
Diploma de aeromoça-mirim: velhos temposDas pouquíssimas casas de madeira que sobreviveram ao tijolo e ao reboco na Vila Planalto, a de Maria Aparecida Cardoso Emediato, 78 anos, é a mais conservada entre as que estão habitadas. Entrar na casa bege da Rua 3 do Acampamento Tamboril é voltar aos anos da construção de Brasília. A sala e dois dos três quartos continuam como antes. Quase todo o telhado permanece coberto com folha de zinco, o forro paulista está mantido em quatro cômodos e o piso de tábua corrida da sala, idem.

A proprietária da casa é dona também do orgulho de ter alfabetizado muitos dos primeiros candanguinhos da nova capital. Ela deu aulas na Escola Pery da Rocha França, três pequenos cômodos de madeira, também com telhas de zinco, que receberam os filhos dos operários, dos engenheiros e dos funcionários graduados das construtoras responsáveis pela montagem dos acampamentos que resultaram na Vila Planalto.

Na frente de sua casa, admiravelmente bem-conservada, a professora nem se gaba: %u201CAcho que ela ficou do jeito que está porque tenho preguiça de mexer com obra%u201DAo contrário do que se pode imaginar diante de uma casa tão bem preservada, Aparecida não decidiu que iria conservar a memória da construção de Brasília. ;Acho que ela ficou do jeito que está porque tenho preguiça de mexer com obra. Quando vi os vizinhos desmanchando suas casas, pensei: ;Ah, não vou mexer com isso, não. Não tenho essa vaidade. Depois meus filhos decidirão o que fazer.; Somada à falta de aptidão para administrar pedreiros, houve também um cuidado diário e contínuo com a manutenção da casa. Aparecida mantém um estoque de inseticidas na despensa para, a qualquer sinal de pozinho de madeira, atacar os cupins. Até hoje, apenas o forro de um dos quartos foi trocado. A professora atribui o excelente estado da casa à qualidade da madeira, mas não sabe dizer a qual espécie de árvore ela pertence.

Antes de se mudar para a casa verde (hoje bege) de varandinha, em 1960, a família de Aparecida (ela, o marido e quatro filhos), que havia chegado de Córrego Danta (MG) em 1959, abrigou-se num barracão dividido em cinco residências. ;Até que ele não era muito pequeno. Tinha três quartos, banheiro, cozinha e uma salinha. O problema era que, por ser de madeira, a gente escutava tudo o que se passava nos vizinhos.; Era também um barraco sujeito a chuvas, trovoadas e enxurradas. Uma delas invadiu a moradia dos Emediato num dia em que todas as quatro crianças estavam com febre de sarampo. ;Ela entrava pela porta da sala e saía pela porta da cozinha;, lembra. Assustada, Aparecida colocou os filhos no berço (que era mais alto que as camas) e ficou rezando para que a água não alcançasse os garotos. Parou bem próxima do colchãozinho.

Na sala de estar, as cinco crias: tradiçãoA casa bege, como as outras cinco do Acampamento Tamboril, foi construída para abrigar funcionários graduados da empresa americana que veio construir as estruturas metálicas dos ministérios. Como não cumpriu os prazos, Juscelino Jubitschek rompeu o contrato e os americanos foram embora.

O jeitinho
Vendo as casas vazias, Maria Aparecida, que era filha do prefeito da cidade onde nasceu, tomou uma providência bem brasileira: enviou um bilhete a um deputado federal correligionário de seu pai pedindo que a ajudasse a conseguir o direito de ocupar uma delas. O marido, Eli Emediato, era funcionário administrativo da Companha Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), o que por si só talvez fosse suficiente para que a família conquistasse a permissão para trocar o barraco coletivo pela habitação unifamiliar.

Com quatro dos cinco filhos, nas imediações do Palácio da Alvorada, no final dos anos 50;Os meninos acharam muito bom, parecia que haviam entrado numa mansão. Foi uma festa quando nos mudamos para cá;, lembra-se Aparecida. Foi e continuou sendo uma festa durante toda a infância, a adolescência e parte da vida adulta de Marcos, Tânia, Sérgio, Eliana e Rosana, os filhos de Aparecida e Eli. ;Minha casa vivia o tempo todo cheia de crianças. Havia dia em que eu abria a porta de um dos quartos e encontrava meninos dos vizinhos dormindo aqui. Até hoje, os amigos deles são daquela época.;

Se hoje uma cerca elétrica protege a casa vizinha, naquele tempo nada separava um quintal do outro. Todo o território das redondezas pertencia às crianças, às suas brincadeiras e às bicicletas. O quintal dos candanguinhos da Vila que só terminava no Palácio do Planalto, a 500 metros dali, em linha reta.

Diversidade
Reunidos em sala de aula, os filhos da gente que construiu Brasília representavam o que seria a nova capital, uma síntese do Brasil. ;Lá em Minas, as salas de aula só tinham mineirinhos, tudo com carinhas parecidas umas com as outras e com o mesmo sotaque. Aqui, cada um era de um lugar. Tinha mineiro, gaúcho, cearense, tudo misturado, cada um com um sotaque e com costumes diferentes e passando uns para os outros.; Aparecida se lembra de ter visto uma vizinha paulista queixando-se de um filho que, em vez de falar ;tomate;, ;bolacha;, estava pronunciando ;tumate;, ;bulacha;. E vice-versa. Era a mistura de brasis.

O espírito que movia a Brasília do tempo da construção era bem diferente do de hoje. ;Naquele tempo, a gente não tinha nenhum conforto na escola. Não havia rede de esgoto, tinha mau cheiro, calor. Quando chovia, ninguém conseguia escutar ninguém, por causa das telhas de zinco, e ninguém reclamava. Todo muito trabalhava com gosto, era uma gente esforçada, trabalhadora. O povo que veio para Brasília no começo veio com disposição.;

Por conta de ter começado a dar aulas aos 28 anos, Aparecida só se aposentou aos 63. Durante todo esse tempo, salvo pequeno afastamento, ficou em sala de aula na Escola Classe 1 do Planalto (a antiga Pery da Rocha França) alfabetizando crianças de dia e, por alguns períodos, adultos, durante a noite. Com os filhos casados e separada do marido, Aparecida passa o dia em casa ; onde, não poucas vezes, recebe visitas de turistas e estudantes universitários interessados em conhecer a construção de madeira.

Hoje é dia do aniversário de Maria Aparecida. A festa pelos seus 79 anos vai reunir os filhos, os 12 netos, os três bisnetos, os amigos, velhos pioneiros e o escritor Edson Beú, que lança As cores da memória, retratos da identidade candanga (editora LGE), livro de fotos do patrimônio em madeira de Brasília, feitas na década de 1980. A casa de Aparecida está no livro.

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