Cidades

O século bom de Manuel

Sábado, uma grande festa vai comemorar os 100 anos do carpinteiro que fez da família seu único e maior tesouro. Esculpindo madeira como um ourives lapida ouro, tornou os filhos doutores. E lhes ensinou que a maior virtude da vida não é o diploma, mas a honestidade

postado em 01/02/2010 09:00
Encontro de gerações: filhos, netos e bisnetosO telefone toca numa tarde agitada da redação. Do outro lado da linha, o sergipano João Pereira fala, com voz grave e sotaque inconfundível. Aos 96 anos, a história dele foi contada nas páginas deste jornal. Até hoje, o homem baixinho, de memória privilegiada e andar compassado, dirige o carro e chega ao trabalho. Sim, com essa idade, ainda trabalha e guia o próprio carro. É porteiro da entrada privativa do Ministério da Justiça.

Pois bem, esse homem de 96 anos liga para o jornal. Diz: ;Alô, tudo bem?; E continua: ;Tenho uma coisa que você vai gostar de saber. Um amigo vai fazer aniversário agora. A festa vai ser grande demais. É um homem de muito valor, criou a família como poucos. E é forte como um touro. Ele tem muita coisa pra falar;. Pergunto-lhe, curioso: ;Que idade seu amigo vai fazer, seu Pereira?;. Ele responde, desse jeitinho: ;Olha, eu sou mais moço um pouco. Ele tá fazendo 100 anos;. O homem de 96 anos fala do amigo centenário como se fosse um adolescente anunciando a balada de um brother. Simplesinho assim. Esta história precisava ser contada.

Tarde de sexta-feira, 16h, Taguatinga Norte. Fomos ao encontro do homem que completará 100 anos no próximo sábado. Sentado no sofá, lá estava o aniversariante. De camisa de manga comprida, calça clara e sandálias, ele espera as visitas. No aperto de mão, o homem de 1,90m e cabelos cinza já se mostra. O danadinho João Pereira tinha razão. O amigo dele ; Manuel Sabino da Silva ; de fato não é um homem comum.

Elegante, a vida quase toda ; ou a maior parte dela ; foi carpinteiro. Fez portas e telhados como um ourives lapida mais uma joia. E assim, com sua sempre Faustina, 88 anos, criou os sete filhos (hoje são apenas cinco). O homem que aprendeu a ler e a escrever em casa (e não fez mais do que o básico), numa fazenda em Minas Gerais, hoje recebe para sua festa filhos, netos e bisnetos. Tem advogado, contador, médico, psicólogo, psicanalista, funcionário público, caminhoneiro. Tem gente que mora na Asa Sul, no Sudoeste, em Taguatinga e em Paris. ;Durante toda a minha vida dei exemplo pra cada um ser honrado. Eles ouviram direitinho. Nunca bati e eles me respeitam até hoje;, orgulha-se.

A data de nascimento na identidade é 24 de dezembro de 1910: registro efetuado 10 meses e 18 dias mais tardeManuel é um sábio de mãos calejadas (e hoje enrugadas) pelas madeiras que talhou. Todos os dias lê jornal. Acompanha de perto o noticiário. Gosta de política. Votou em todas as eleições. E está horrorizado com os escandalosos acontecimentos que fizeram a terra de JK tremer com a intensidade de um terremoto. ;Meu Deus do céu, foi muita roubalheira! Até admirava esse governo, mas a decepção me fez muito mal.; A filha Maria da Glória Sabino, psicóloga de 65 anos, conta: ;Ele adoeceu de verdade. Teve depressão;. Manuel é do tempo em que honestidade não era virtude. Era regra.

A prosa continua. Ele conta o começo de tudo. ;Nasci em Morada Nova (MG). Meu pai era fazendeiro. Cresci na roça, montando burro brabo;. Aos 19 anos, ele deixou a casa dos pais. Foi para São Paulo, trabalhar com corte de cana, em Guarapava. ;Trabalhei na montagem da usina de açúcar de 1930 a 1932;, conta, com memória impressionantemente sem danos. Aos 24 anos, porém, voltou para Minas Gerais. ;Fui morar em Uberaba e trabalhei como fiscal de higiene no combate à febre amarela. Fiquei nessa função por quatro anos. E viajei muito por conta do meu trabalho. Fui pra Varginha, Três Corações do Rio Verde e toda a região da Zona da Mata.;

Grande amor
Aos 30 anos, em 1940, depois de pelejar por esse mundão, Manuel decidiu que era hora de se casar. E assim fez. Em 27 de setembro daquele ano, Faustina juntou sua vida à de Manuel. ;Eu era bonitão, vaidoso, mas nunca fui mulherengo. Não era qualquer uma que me beirava;, diz, às risadas, com um sotaque mineirinho de tudo. E mais uma mudança, agora do homem casado. Chegou a São Gonçalo do Abaeté. E mais uma vez ele aprendeu um ofício. Virou gerente de uma fábrica de cerâmica. ;Meus dois filhos mais velhos nasceram lá. Os outros cinco, em Morada Nova, pra onde voltei depois.;

Mais uma mudança? ;Menino, se fosse te contar minha vida toda, daria um livro;. Em 1958, pelejando num pau de arara, mais uma mudança ; dessa vez, a derradeira. Era 1958. Brasília, ainda sonho. E ele, admirador do presidente que acreditou num sonho: ;Conheci o Juscelino (Kubitschek) quando ele ainda era prefeito de Belo Horizonte. Era um homem amigo e companheiro;. Disposto a dar uma vida melhor aos filhos e à mulher, deixou as Minas Gerais. ;Deixei a minha família lá e vim sozinho. Seria minha chance de começar tudo de novo;, diz. E começou, em Taguatinga (Vila Dimas), a primeira morada.

Ciclo da vida: a neta Roberta, 27 anos, a filha dela, Maria Eduarda, com 20 dias de nascida, e o bravo centenárioAqui, o mineiro corajoso voltou a ser carpinteiro. ;E fazia trabalhos de marcenaria também;. Brasília virou capital. Em 1962, Maria da Glória, a filha mais velha, veio morar em Brasília. Tempos depois, a pedido de Manuel, voltou para buscar a mãe e o resto da família. O carpinteiro trabalhou como nunca. Suas mãos também calejaram como nunca. Em 1964, com toda a família, muda-se para a QNE 10 de Taguatinga.

Passaram-se os anos. Os filhos de Manuel e Faustina lhes deram 17 netos, que lhes geraram, até agora, 11 bisnetos. Ele continuou trabalhando como carpinteiro, em firmas. Nos últimos anos, nos fundos da casa, montou a sua própria oficina. E nunca parou de trabalhar. Até hoje, mexe um pouquinho nas suas madeiras. Em setembro último, recebeu a maior condecoração do homem que criou uma família com o suor de uma carpintaria.

De terno bem-cortado, ele foi a Diamantina (terra de Juscelino) para receber a Medalha de JK. A comenda, conferida a 60 ilustres mineiros, foi entregue pelo governador Aécio Neves. Manuel nunca se sentiu tão importante. ;Foi bão demais. Só tinha gente bonita, sô. Toda a alta society. O governador me cumprimentou;, diz, como menino que mostra boletim cheinho de nota dez.

Festa sem Faustina
Sábado que vem, pelo menos 200 pessoas irão à festa do homem centenário. Todos se reuniram para bancar o aniversário, que será num clube, nos arredores do Incra 8. Um imprevisto, porém, tirou um pouco (talvez muito) do brilho daquele programado para ser acontecimento mais esperado do clã ; até Cecília Sabino, 60, a filha psicanalista que mora em Paris há décadas, veio com o marido. Há duas semanas, Faustina, que sempre teve saúde boa, sofreu uma isquemia cerebral (derrame).

Manuel Sabino, o sábio carpinteiro: Mas já voltou pra casa. Está com dificuldades na fala e na memória. ;O vestido da festa já estava encomendado;, lamenta a nora, Cleide Sabino, advogada de 52 anos. Faustina não irá, mas sabe que a festa será linda. E torce pelo seu eterno e apaixonado Manuel. ;Ela gostava muito de dançar. Eu, nem tanto. Mas sempre gostei de ver ela feliz. Nunca fui ciumento;, diz o companheiro de 70 anos de vida. E revela, emocionado: ;Nunca brigamos;.

Manuel, depois de uma vida inteira de trabalho, recebe um salário-mínimo de aposentadoria. Filhos e netos suprem pai e mãe sem deixar faltar nada. Aos domingos, o almoço na casa dele, hoje na QNE 11, é sagrado. Ele espera ansioso pela chegada de cada um. E sabe, de cor, até o nome de todos os bisnetos. Durante a entrevista, apresentou três deles: ;Essa aqui é a Giovana; este, o Pedro Henrique e este, o Felipe;.

Saúde impecável ; não toma sequer um remédio ;, os médicos é que lhe perguntam, nas consultas, o segredo de tanta vitalidade. ;Eu digo só que viver é bão. É isso;, explica àquela gente de jaleco branco. Indago se viver tanto pode cansar. Com bom humor mineirinho, ele não perde a viagem: ;Uai, nunca me cansei, não...;

É fácil entender por que Manuel nunca se cansou de viver. Uma cena revela, sem palavras, o sentido desse prazer: basta vê-lo, sentado no sofá da sala, ao lado da neta Roberta Sabino José, de 27 anos, e segurando a bisneta Maria Eduarda, 20 dias de nascida. Um sempre recomeço. O fascínio e mistério da vida. Seu Pereira, lembram-se dele, do porteiro da entrada privativa do Ministério da Justiça que ligou para contar do amigo? Pois é, ele tinha mesmo razão. Manuel, o carpinteiro, é homem bão demais, sô! Gente em extinção. Parabéns! Ah, seu Pereira é convidado de honra da festança do brother.

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