Cidades

A gestação de Brasília

Quem se interessa pela história da capital federal não pode deixar de reverenciar um de seus mais importantes berços: Planaltina, cidade onde um museu erguido pela mais sólida tradição local tem elementos que ajudam a entender, em detalhes, os primórdios do sonho concretizado por JK

postado em 07/03/2010 10:29
Utensílios de cozinha: no tempo dos bons esmaltadosO início desta história está muito longe daqui. É quase impossível imaginar. Mas é preciso que se comece. E ela parte lá de Portugal, pelo idos de 1730. Veio vindo, até parar em Salvador. Da capital baiana, foi rasgando esse mundão de meu Deus até pisar no Planalto Central em cavalgadas incessantes. Aconchegou-se em terras goianas, bem pertinho de onde um dia nasceria Brasília. E daqui nunca mais saiu. Mais do que a saga de uma família, esta é uma história feita de amor e de uma tentativa quase solitária de manter a memória viva. Compreender Planaltina é entender um pouco a terra de JK. Quando a segunda chegou, já se tocava jazz na primeira.

Formosa (GO), 1866. Nasce um certo Salviano Monteiro Guimarães, filho de Pedro Monteiro Guimarães, fazendeiro e comerciante influente da região, e de Francisca de Almeida Costa. O menino fora preparado para cuidar das terras e fazê-las crescer. E assim o fez. Em 1900, chegou a Planaltina. E de lá nunca mais saiu. Sete anos depois, com a visão que tinha, trouxe touros indianos para o Centro-Oeste. E lutou para que a luz elétrica chegasse à cidade. Em 1920, o telefone, aquela coisa grande pendurada na parede, de onde se podia falar e ouvir a voz ao longe, virou realidade no Planalto Central brasileiro. O fazendeiro Salviano casou-se com Olívia Campos Guimarães, moça religiosa, criada no puro linho, educada para ser boa mãe e companheira. Tiveram três meninas e cinco meninos.

O piano: chegou em carro de boiNo casarão da família Guimarães, hospedou-se a primeira comitiva que veio estudar o solo do Planalto Central, para a interiorização da capital do país, ainda no século 19. Em 7 de setembro de 1922, foi escrita a ata do lançamento da pedra fundamental, exatamente ali onde hoje é o museu da cidade e onde no início do século 19 viveu uma das filhas do coronel Salviano, América Guimarães.

Com o marido Francisco Guimarães, que era seu primo em segundo grau, levou a história do pai e da família adiante. Sem saber, começava a contar o assombro que seria, anos depois, o nascimento de Brasília. A história se perpetuou. Era o local de encontros dos oito irmãos (filhos de Salviano e Olívia), dos netos e muito depois Mobiliário está intacto até hojedos bisnetos dos Guimarães. Por ali, uma história se passou. Ali, hoje, essa mesma história clama para não morrer. Em 1973, a família doou o casarão à Secretaria de Cultura do GDF, que tombou, por decreto, o imóvel centenário.

Tornou-o patrimônio de utilidade pública. Em 1974, como Museu Histórico e Artístico de Planaltina, abriu suas portas para quem quisesse entrar. A família juntou os móveis que estavam espalhados nas casas de cada um e montou recentemente a exposição A verdadeira história do Planalto Central, que se encerra em junho.

Um passeio pela casa-museu, de portas e janelas azuis, piso de madeira e cheiro de saudade, é como voltar ao passado. E não só à história muito pessoal da família, mas uma volta a uma cidade que ; antes mesmo de JK chegar e os candangos surgirem, antes de os sonhos virarem realidade na futura capital ; já pulsava e fazia gente anônima e escondida nos confins de Goiás escrever a sua melhor história. É deslumbrante ver o ferro a carvão que o alfaiate Sebastião usava. A máquina de fotografia de Flávio, o retratista da cidade, é outra peça preciosa em exposição.

Geração Guimarães: Sílvia Helena, Salviano, Marilda e Olíbia ajudam a manter viva a memória de um importante ciclo, através do casarão da família, que foi mantido e transformado em museu com visitação abertaConhecer dona Chiquinha, a modista, a mulher de sorriso tímido que fazia os vestidos mais bonitos das filhas e netas de Salviano e de todas as moçoilas de Planaltina. A seringa com a qual o farmacêutico Raimundo aplicava as injeções nos enfermos está lá. Como esquecer, mesmo sem conhecer, a parteira Almerinda? E Eládio Firmino, o homem que tocava o sino da igreja e anunciava casamentos e mortes? De acordo com o número das badaladas, a cidade se animava ou se entristecia. Os sinos de Eládio traziam muita aflição. Ele, franzino, de andar cabisbaixo, nem sabia o poder que possuía sobre vida e morte.

;Nativos;
Manhã chuvosa de quinta-feira. A convite do Correio, parte da família Guimarães acompanhou a reportagem durante uma visita ao museu. A emoção se manifestou em vários momentos. Sílvia Helena Guimarães, 45 anos, advogada e historiadora, bisneta de Salviano e Olívia, comoveu-se: ;Aqui em Planaltina, muito antes de Brasília, já existia música, cultura, política, festas. Em 1920, havia um grupo de jazz, jornal, fotógrafo, energia elétrica, telefone e carro de boi também. Havia vida na cidade;.

No fim do ano passado, depois de anos de pesquisa e comprovação com documentos raros, Sílvia lançou o livro Os Monteiro Guimarães na História do Planalto Central. Na obra, a historiadora conta a saga da família desde a saída de Portugal até os anos 1960 ; data da inauguração da capital. Salviano Antônio Guimarães Borges, 66 anos, arquiteto e ex-professor da UnB, neto do coronel Salviano, continua: ;Planaltina tem uma participação efetiva na construção de Brasília. E até hoje guarda na sua memória a alma do interior de Goiás;. Os cabelos brancos de Salviano indicam mais do que o passar dos anos. Deram-lhe lucidez. ;O candango desconhecido está enterrado no cemitério da cidade. A história do DF começou aqui;, ele diz.

Mãe de Sílvia, prima de Salviano e neta do velho Salviano e Olívia, a advogada Olíbia Terezinha Guimarães, 77 anos, (sim, caro leitor, é muito nome ; até por isso muita história), emenda o que o primo diz: ;Aqui, foi a gestação de Brasília. A Missão Cruls e o presidente JK estiveram nesta casa, antes de a capital existir...; A pedagoga Marilda Guimarães, 67, irmã de Olíbia, prima de Salviano e tia de Sílvia, vaga com olhos longe dali. Depois, como se voltasse de sua viagem de cores, símbolos e cheiros muito pessoais, ela consegue falar: ;Pra mim, isso tudo representa um sentimento de saudade. É um privilégio poder ter vivido com essa família;.

Marilda se lembra de uma passagem muito particular na sua vida. Quando era diretora de uma escola pública na 308 Sul, um dia levou o pai, Francisco Guimarães, para uma visita à instituição. Um jovem repórter queria saber coisas de Brasília. Francisco percebeu que o jovem nada sabia (e o que sabia era equivocado) sobre o antes de Brasília. Ele virou-se para a filha e disse: ;A história depois de Brasília todo mundo já sabe. A de antes está sendo inventada, minha filha. Não podemos deixar isso acontecer;.

Agarrada ao pedido do avô, a historiadora Sílvia se embrenhou em pesquisas. E escreveu não apenas a história pessoal da sua família, mas a saga de um povo ; uma gente goiana, tão perto e ao mesmo tempo, até hoje, tão distante da terra de JK. O nascimento de uma outra cidade, que acaba de completar 150 anos. ;Um sobrinho meu, um dia, perguntou: ;Tia, se quem chegou pra fazer Brasília é candango, o que seriam nossos avós? Nativos?;. Sílvia riu.

O cheiro de América
Andar pela casa de portas e janelas grandes é como voltar ao passado sem arredar o pé do presente. Estranho, quase um sacrilégio, ouvir um celular tocar ali dentro. Não combina. Desligue os celulares e desligue-se do presente que urge. Chegue à sala da casa, um dia de Salviano (morto aos 60 anos, em 1926) e de sua Olívia (aos 69, em 1945), depois herança de América e do marido Francisco, ambos também mortos. Ali, correram suas seis filhas ; Stella dos Cherubins, Olíbia Terezinha, Dinalva, Marilda, Maria Helena e Dione.

Aprecie o piano de América, presente do pai Salviano, em 1925, à filha pianista exímia, educada em colégio interno de São Paulo. O instrumento andou muito para chegar até Planaltina. De navio, partiu da Áustria até o Porto de Santos (SP). De lá, veio de trem até Ipameri (GO). De Ipameri, em carro de boi, penou até chegar a Planaltina. Mas chegou. E foi naquele piano que América encheu aquela casarão da esquina com música, sonho e delicadeza.

Da sala, ande pela casa. Sem pressa. Cada porta é um detalhe. Mesmo que não tenha vivido ali ; ou perto dali ;, imagine o tanto de vida que por ali passou. Lágrimas choradas. Risos de renascimentos. Vida em plenitude. Chegue ao quarto do casal. Depare-se com a cama de América, o criado-mudo. Um bilhete do marido, com letra bem desenhada, quando completaram 25 anos de casados. Ele lhe agradece pela caminhada juntos.

Pare para ver as xícaras de esmalte, o fogão a lenha e sua chaminé. ;A gente colocava os sapatinhos perto do fogão, já que mamãe dizia que Papai Noel ia entrar pela chaminé. Aí, a gente corria pra cama, para ganhar presente de Natal;, conta, saudosa, Olíbia. Marilda, a irmã, relembra sem dizer uma só palavra. Os olhos marejados falam por ela.

Você nunca foi a Planaltina? Então vá. Aproveite hoje, domingo, e siga pra lá. Hoje, a cidade há muito não é mais a mesma. Vivem ali mais de 200 mil pessoas. O trânsito no centro é pesado. A violência já assusta. Mas, em algum lugar, perto de uma praça florida, há um museu. Entre. Deixe-se viajar. E compreenda que, bem perto de Brasília, antes de tudo, uma gente anônima e trabalhadora preparava o futuro. Tocava até jazz. Você não perderá a viagem.

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