Cidades

Fotógrafa registra pioneiros do Núcleo Bandeirante

A fotógrafa Magnólia Correa veio para Brasília com seis meses de idade. Faz 10 anos que ela fotografa pioneiros da cidade, heróis esquecidos da construção da nova capital

postado em 13/03/2010 07:46
Pudesse escolher o hino dos candangos, daqueles que engoliram poeira e cuspiram tijolo, Magnólia Correa elegeria uma música que fez muito sucesso nos anos 1980, em gravação de Zé Ramalho: ;Tá vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar. Foi um tempo de aflição, era quatro condução. Duas pra ir, duas pra voltar. Hoje, depois dele pronto, olho pra cima e fico tonto, mas me vem um cidadão, que me diz desconfiado: ;Cê tá aí admirado ou tá querendo roubar?;;.

A fotógrafa resgata a história de pioneiros: A música expressa a saudade sofrida dos bravos candangos que construíram Brasília, não enriqueceram nem nunca saíram do Núcleo Bandeirante. Se um dia a fotógrafa Magnólia Correa conseguir montar a exposição que prepara há 10 anos, ela vai mandar imprimir num estandarte a música que conta a história de um operário da construção civil na cidade grande. São variações de uma mesma tristeza, porém entremeada de orgulho, que Magnólia tem ouvido, fotografado e gravado para homenagear bravos candangos que, como seus pais, construíram a capital do país.

Mag nasceu na travessia do Rio São Francisco; a mãe, Violeta, estava a caminho de Paracatu (MG) para o parto. Seis meses mais tarde, em 1956, ela chegava à Cidade Livre, no colo da mãe, na companha do pai e dos sete irmãos. Mais de 50 anos depois, ela, a mãe e três irmãos continuam no Núcleo Bandeirante e Mag se dedica a fotografar e a recolher depoimentos dos pioneiros da cidade. O que já lhe rendeu dores insistentes pelo desprezo que a Brasília que deu certo dedica aos candangos que continuaram pobres e pela situação de penúria em que muitos deles ainda vivem.

No primeiro andar de um modesto apartamento de três quartos na Avenida Central, sobre uma loja de confecções, Mag mora com a filha, Ana Paula, odontóloga; com o passarinho, Meu Namorado, e com suas fotografias. Feitos com máquina Nikon analógica, os retratos em preto e branco revelam o rosto cerzido de rugas de brasileiros que vieram para Brasília entre 1956 e 1960 e daqui nunca mais saíram. ;Os que saíram e foram para o Plano Piloto se esqueceram da gente;, diz Magnólia, expressando o sentimento dos velhos candangos. ;Eles nunca receberam uma medalha, um diploma;, reage a fotógrafa. ;Não têm plano de saúde, esperam até dois meses para um atendimento médico no posto e ninguém liga pra eles;, protesta.

Decadência
Passado o período áureo da construção, quando o dinheiro correu generosamente pela Cidade Livre, a maioria dos candangos ficou com as mãos tão vazias como quando eles chegaram ;à terra santa;, como diz Magnólia. ;Muitos faliram com bebidas, cabarés. Mandaram muito dinheiro para os parentes no Nordeste, gastaram tudo o que ganharam.; A história de Mag é uma dessas: o pai, boiadeiro, havia ganho de herança uma boiada significativa. Decidiu trazê-la para Formosa, Goiás, e vir para Brasília, com o propósito de aumentar o patrimônio. Montou um hotel, o Nossa Senhora Aparecida, na Avenida Central, um dos primeiros da Cidade Livre.

A bonança durou pouco mais que o período da construção de Brasília. No tempo em que o governo federal quis acabar com a Cidade Livre, o pai de Mag ganhou um lote na Asa Norte. ;Naquela época, ele já estava bebendo muito, desgostoso com os prejuízos nos negócios. Ele vendeu o lote, gastou um pouco no bar e um outro tanto deu para um mendigo;, conta. Pouco tempo depois, os pais se separaram, Nonô voltou para Minas Gerais e a mãe, dona Violeta, ficou em Brasília, cuidando dos sete filhos. ;Foi muito difícil. Minha mãe montou um bar e restaurante, um irmão foi ser engraxate e o outro foi vender garrafa de vidro.;

Há terror e fascínio nas lembranças que Mag tem de sua infância. As casas de madeira da Cidade Livre eram constantemente destruídas por incêndios. O fogo engolia dezenas de barracos de uma só vez. Mag se lembra de ter de sair correndo com os irmãos e a mãe para o meio da rua. Numa dessas correrias desesperadas, a mãe de Magnólia teve um aborto espontâneo. Quando a cidade foi inaugurada, ao ver a Esquadrilha da Fumaça escrevendo no céu ;Salve, Brasília;, Mag se agarrou à saia da mãe e perguntou: ;O céu também pega fogo? Está acabando o mundo?;. Até hoje, ela carrega as marcas da experiência com incêndios. Antes de sair de casa, confere duas ou mais vezes se fechou mesmo o botijão de gás. ;O fogo me apavora e me fascina.;

Já morreram pelo menos 20 dos candangos do Núcleo Bandeirante que Mag entrevistou nos últimos 10 anos. Com a aproximação dos 50 anos de Brasília, a fotógrafa se animou a tentar conseguir patrocínio para montar a exposição e a divulgar seu trabalho. Espera poder homenagear os bravos da Cidade Livre como eles tanto esperam.

Numa caminhada em duas quadras entre a Avenida Central e a 3; Avenida, na manhã de ontem, Mag encontrou três de seus personagens. ;Ainda há uns 50 que eu poderia entrevistar, mas acho que 100 já é um número bom;. Ex-fotógrafa do Jornal de Brasília e da extinta Empresa Brasileira de Notícias (EBN), Magnólia trabalhou no Comitê de Imprensa do Palácio do Planalto nos governos João Figueiredo e José Sarney. Ela conta que, num dos aniversários de Figueiredo, ela ganhou um pedaço de bolo do presidente e chorou: ;Não foi sentimento de grandeza, foi de lembrar de tudo o que passei;. Resgatando a história dos pioneiros, Magnólia resgata a própria história e dá a ela o reconhecimento de que precisa.

Maria do Desterro Jismilino, 59 anos

Veio criança para Brasília com os pais. O pai era rei dos ovos no tempo em que a Cidade Livre era toda ela uma grande feira. ;Naquele tempo tinha rei dos ovos, rei da cebola, rei da laranja, cada feirante vendia uma coisa só.; Há 24 anos, uma tragédia mudou a vida de Maria do Desterro. O filho, de 13 anos, morreu com uma descarga elétrica quando empinava uma pipa. Coroinha da igreja de Padre Roque, o garoto convidava a mãe para as celebrações, mas ela nunca ia. Depois que o menino morreu, Desterro foi amparada pela Pastoral da Esperança. ;Ela me acolheu, me carregou nos braços, me ensinou como fazer.; A morte do filho a fez constatar que os preços dos sepultamentos eram muito altos. Daí, Desterro começou a pesquisar as normas de enterros e descobriu que é possível diminuir em até 70% os gastos com funerária e cemitério. Desde então, quando morre um candango, a família procura Maria do Desterro para que ela providencie ou dê as dicas para um ritual mais em conta. ;Tem gente que me chama de Maria do Enterro;, ela conta, com um riso aberto.

Bráulio Roberto Basílio, 76 anos

Farmacêutico no Núcleo Bandeirante desde 1959, seu Bráulio conhece todos os fregueses que entram na sua farmácia Santo Antônio, na 3; Avenida. Quando entra alguém que ele não conhece, ou não é da cidade ou acabou de se mudar para lá. O farmacêutico à moda antiga sabe das doenças de cada um de seus clientes. E há muito já aprendeu a lidar com os hipocondríacos: oferece uma vitamina qualquer e o freguês vai embora satisfeito. ;Se ele não leva o remédio, é muito pior;, ele diz, apontando com o dedo indicador para a cabeça. Seu Bráulio diz que tem ;muito a agradecer a Brasília;, mas que gostaria de viver num lugar mais tranquilo, mesmo com atmosfera interiorana que o Núcleo Bandeirante ainda mantém. O farmacêutico mais antigo da cidade conta, com tímido orgulho, que Padre Roque foi a Araguari (MG) celebrar o seu casamento. Depois, todos voltaram para Brasília.

Cidadão
Lúcio Barbosa


Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição, era quatro condução
Duas pra, duas pra voltar
Hoje, depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me vez um cidadão
Que me diz desconfiado:
;Cê tá aí admirado, ou tá querendo roubar?;
Meu domingo está perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer

Tá vendo aquele colégio, moço?
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Fiz a massa, pus cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Veio pra mim toda contente:
Pai, vou me matricular
Mas me diz um cidadão:
;Criança de pé no chão aqui não pode estudar;
Essa dor doeu mais forte
Nem sei por que deixei o Norte
Então me pus a dizer
Lá a seca castigava
Mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a colher

Tá vendo aquela igreja, moço?
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Mas ali valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que Cristo me disse:
;Rapaz, deixe de tolice
Não se deixe amedrontar
Fui eu quem criou a terra
Enchi os rios e fiz as serras
Não deixei nada faltar
Hoje, o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar

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