Cidades

Chico Sanfoneiro: o aprendiz da solidão

postado em 08/05/2010 09:06
No Paranoá desde 1959, Francisco Nicácio viu a cidade crescer passo a passo. A sanfona é marca registradaChico era apelido e sobrenome ele não tinha. Já estava na casa dos 16 anos e havia percorrido meio Nordeste, desapegado da família, à procura de trabalho. Não tinha estudo, mas sabia que precisava de um documento que confirmasse a sua existência. Parou num cartório, entrou e anunciou: "Vim me registrar, sou abandonado de pai e mãe, não tenho nada na vida". A conversa deu certo. Logo, estava inventando um nome, dois sobrenomes e uma data de nascimento. De menino, chamavam-no Chico da Aurora, redução carinhosa de Francisco acrescida do nome da irmã que o criou. O adolescente juntou rapidamente as letras e decidiu: Francisco Clemente Nicácio, Clemente, do padrasto, Nicácio, sobrenome materno. Escolheu uma data aleatória de nascimento e aproveitou para decretar a maioridade: "Nasci em 5 de fevereiro de 1933". A mãe havia dito, vagamente, que o filho era de 1935. Pronto. Chico da Aurora, que já havia sido Chico Bento, conquistara um nome completo. Mais tarde, no acampamento da Camargo Corrêa, às margens da futura Barragem do Lago Paranoá, na nova capital do Brasil, ele se transformaria em Chico Sanfoneiro. É esse o nome pelo qual a cidade do Paranoá o conhece desde 1959, quando Francisco Clemente Nicácio chegou para adestrar as máquinas pesadas que ergueriam o muro de pedra, ferragem, areia e concreto que formou o lago . Sozinho, ele havia se nomeado e datado. Sozinho, aprendeu a ler e a escrever, letras trêmulas, leitura trôpega. Sozinho, aprendeu a tocar acordeão. Sozinho, dominou as marchas, o volante e os segredos dos equipamentos pesados - tratores, máquinas de esteira, máquinas de pneu. Tudo aconteceu assim: quando era pequeno, ficava juntando as letras dos livros que casualmente encontrava. Até hoje, gosta de escrever em letra de fôrma. Maiorzinho, aprendeu a dedilhar a sanfona, a tirar música de ouvido. "A música vem da memória e eu passo pra cá", ele diz, passando a mão na cabeça e fazendo o gesto de quem retira do cérebro algo que transpõe para os dedos e dos dedos para as escalas do acordeão. Domando tratores Chico Sanfoneiro aprendeu a operar máquinas pesadas no tempo em que trabalhava na construção de uma ponte no Rio Paraná, no trecho que passa pelo município de Assis, em São Paulo. "Ninguém queria aceitar o emprego de vigia noturno, porque tinham medo de onça."Chico não rejeitou serviço. Nos fins de semana, ficava com as chaves dos caminhões e dos tratores. Era tentação demais. Ele pegava a chave e saía assustando os motores e provocando os pneus. "Pegava a máquina, olhava pra cabeça da marcha, via que a estrada era larga, deixava a bicha tremer todinha e ia devagarinho." Foi a sedução das máquinas pesadas que atraiu o jovem paraibano para Brasília. Ele estava trabalhando no interior do Paraná, quebrando pedra para a construção de uma estrada de ferro. Chico conta que viu, numa revista sem dono, aberta numa página qualquer, fotos de portentosas máquinas preparando o chão da nova capital do Brasil. O valente operário não apreciava o frio do Sul e gostava muito de tratores e de caterpilares. Pegou a mulher (o casamento foi mais uma das aventuras de Chico Sanfoneiro) e veio para o Planalto Central. "Quando estava na Estação da Luz (em São Paulo) pra vir pro Goiás, o pessoal caiu em cima de nós: 'Não vai não, lá só tem índio e onça, vocês vão morrer'." A aventura do casamento aconteceu assim: Chico Sanfoneiro morava em Correntina, na Bahia, ganhava uns trocados a mais alegrando as noites das moças da zona do baixo meretrício. Todos os dias, a caminho do prostíbulo, ele encontrava uma mocinha bonita por quem se enamorou. Ele estava com 17 anos e ela, com 14. Ele a convidou para fugir, ela topou, mas a família da moça não deixou por menos. Mandou a polícia e o juiz atrás dos fugitivos, que já estavam embarcando para outra cidade. "Ninguém judiou de nós não. E eu fui homem. Casei." Adelaide e Chico viveram juntos até a morte dela, há 16 anos. A barragem Depois de trabalhar por pouco tempo na terraplanagem da Esplanada e transportando material de construção de Goiânia para Brasília, Chico foi cavalgar as máquinas pesadas que estavam erguendo a Barragem do Paranoá. "Fiquei abrindo, com a turma, o alicerce do centro da barragem. Lá embaixo era muito largo, e ia subindo e estreitando. Trabalhei até lá em cima. Depois, pegava a máquina grande de pneu e arrastava a terra lá de cima e descia tudo aquilo de lá. Tinha mais ou menos umas 200 máquinas arrastando terra, pedra, areia. Quando jogava areia em cima das pedras, jogava um jato d%u2019água que afundava a areia. E ainda tinha um vazador de água, umas mangueirinhas por baixo da terra, pra não encharcar de água a barragem. E do lado de baixo tinha um aterro muito forte para escorar o pé da barragem." Há um momento de glória na vida do operador de máquinas. No dia em que Juscelino Kubitschek participou do fechamento da primeira comporta da barragem, quem estava no domínio do guindaste era ele, Chico Sanfoneiro. "Quem arriou a comporta fui eu, mas pareceu que foi o presidente Juscelino, que estava do meu lado. Tinha fotos e tudo, mas o povo aqui de casa sumiu com elas." O Arquivo Público também não tem a foto desse dia, 12 de outubro de 1959. Outra das glórias do sanfoneiro foi ter participado do desfile da inauguração da nova capital, ao lado de outros operadores trotando as portentosas máquinas que ergueram Brasília. "Brasília pra mim é tudo. Eu vi Brasília nascer", resume o tocador de sanfona, pai de 17 filhos, 12 vivos, avô de 22 e bisavô de oito, funcionário aposentado da Novacap.

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