Cidades

Levantamento do Correio mostra estrutura precária de atendimento ao cidadão

Deficit de médicos e de enfermeiros, falta de material hospitalar e excesso de pacientes são os maiores problemas

Helena Mader
postado em 23/01/2011 08:25
Pacientes chegam aos montes e, na falta de leitos, são atendidos no chão. Médicos e enfermeiros se viram como podem para tentar amenizar a dor desses doentes. Mas a tarefa não é fácil: muitas vezes faltam luvas, seringas e até produtos básicos, como esparadrapo e gaze. A quantidade de pessoas à espera de assistência é tão grande que os profissionais têm que correr para dar conta do serviço. Com pressa, ficam expostos ao erro. Os pacientes que sofrem à espera de atendimento perdem a paciência diante da demora e descontam a raiva nos servidores que estão na linha de frente. Xingamentos e até mesmo agressões físicas fazem parte do dia a dia de médicos, enfermeiros e técnicos. Esse cenário, que se assemelha à medicina de guerra, é um resumo do cotidiano dos funcionários da rede pública da capital do país.

Quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) conhece bem a realidade caótica das emergências e dos ambulatórios do GDF. Mas poucos sabem como é a rotina dos profissionais que se desdobram para trabalhar sem espaço físico, sem material hospitalar e sem os equipamentos necessários para realizar diagnósticos. Como qualquer setor, a rede pública também padece da ação de maus profissionais, que não cumprem a carga horária devida e até desviam produtos essenciais, como medicamentos. Mas a grande maioria dos servidores está comprometida com a qualidade do atendimento e sofre tanto quanto os pacientes por conta do sucateamento do sistema público.

O Correio realizou um levantamento inédito com funcionários da Saúde no Distrito Federal. O diagnóstico mostra os bastidores do funcionamento de centros e hospitais. Como muitos têm receio de expor os problemas do ambiente de trabalho, a reportagem elaborou um questionário, que foi preenchido por 30 profissionais da Saúde: seis médicos, quatro enfermeiros, seis auxiliares de enfermagem, dois nutricionistas, um dentista, nove pessoas da área técnica e dois servidores da área administrativa.

Escondidos pelo anonimato, eles expuseram todos os dramas que enfrentam diariamente e indicaram quais são os problemas mais graves da rede pública. Escreveram relatos impressionantes de momentos que marcaram a trajetória profissional de cada um. Para a maioria dos entrevistados, o deficit de recursos humanos é o que mais complica a rotina dos funcionários do setor. Eles argumentam que faltam médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem para atender os pacientes de maneira adequada. Brasília e o Entorno cresceram de forma rápida, mas o quadro de servidores não acompanhou essa evolução populacional. Dos 30 profissionais consultados, 50% indicaram que a contratação de pessoal para reforçar o quadro deveria ser uma medida de urgência.

É inegável a necessidade de ampliação do número de funcionários. Mas, para três servidores entrevistados pela reportagem, as faltas injustificadas e o não cumprimento da carga horária devida são problemas que agravam ainda mais o deficit. Um técnico do Hospital Regional de Ceilândia diz que é comum ver a sala de repouso dos médicos lotada. ;Muitos deles trabalham na rede particular durante o dia e dormem aqui à noite, em vez de trabalhar;, denuncia. ;Está vendo aquele médico tomando cafezinho ali fora?;, questiona a servidora, apontando para um homem de jaleco. ;Ele é o único ortopedista do hospital no momento e parece que está só enrolando para o plantão acabar. Assim, ele deixa essa fila enorme de pacientes para o próximo médico;, acusou a colega.

Material
A falta de material hospitalar foi apontada por 14 entrevistados como um dos problemas mais graves da rede. Para 20% dos servidores que preencheram o questionário, a falta de equipamentos também complica o dia a dia. Uma enfermeira do Hospital Regional do Gama descreve uma situação em que a inexistência de aparelhos essenciais trouxe pânico à equipe. ;Uma vez, recebemos um paciente em estado grave, mas não tivemos recursos tecnológicos, como respiradores, para salvá-lo;, contou a enfermeira. ;É frustrante demais para um profissional ver o paciente morrer por falta de equipamentos e de material;, acrescentou.

Um médico do Hospital Regional de Taguatinga com apenas seis meses de rede pública também indicou a falta de respiradores como um problema urgente. ;O pronto-socorro não suporta mais do que dois pacientes no respirador. Quando o terceiro chega, não há como resolver. Além disso, corriqueiramente não temos pontos de oxigênio para todos;, relata.

Ao preencher o questionário, outra médica do HRT, servidora da rede há cinco anos, descreveu a situação mais grave que enfrentou nessa meia década de trabalho. ;Era um plantão com box de emergência lotado e recebemos um paciente politraumatizado, com necessidade de entubação. Não havia espaço para colocá-lo no box, nem havia pilha no laringoscópio para visualizar a traqueia. Tivemos que atender o paciente na rua, com luz ambiente, sem nenhuma condição de assistência médica;, relembra a profissional.

Desabastecimento
No ano passado, o Correio publicou denúncias sobre o desabastecimento da rede. No Hospital de Base, por exemplo, várias cirurgias foram canceladas porque a unidade não tinha produtos essenciais, como esparadrapos e cateteres. A urina de pacientes era coletada em recipientes improvisados, como frascos de desinfetante cortados ao meio. Para a quase totalidade dos profissionais do sistema público de saúde, as prateleiras vazias são motivo de angústia.

Uma auxiliar de enfermagem do Hospital de Base, que trabalha na rede há 17 anos, conta que o momento mais degradante de sua carreira foi ter que pedir à família de um paciente que comprasse medicamento e material hospitalar. ;Isso já aconteceu algumas vezes, mas me lembro de um dia em que a acompanhante chorava, dizia que não tinha dinheiro e gritava por ajuda. Às vezes, os funcionários fazem vaquinha para comprar material ou remédio. Não acho isso justo;, dispara a servidora.

Para 30% dos funcionários da saúde entrevistados pelo Correio, grande parte das equipes trabalha desmotivada por conta de baixos salários. No caso de médicos, por exemplo, a remuneração inicial é de R$ 7.393 para uma jornada de 40 horas semanais ; muito abaixo do que recebem recém-formados que buscam trabalho na rede particular. Menos da metade do total de convocados em um concurso realizado no ano passado teve interesse em assumir um posto na rede pública de saúde. Isso mostra o desafio que o atual governo terá pela frente para contratar servidores.

Entre os profissionais que participaram da pesquisa, três servidores de hospitais diferentes descreveram uma situação semelhante: a reanimação de pacientes no chão, por falta de leitos. ;Eu tive que reanimar uma garota de 15 anos no chão. Ela sofreu uma parada cardio-respiratória, mas não conseguimos salvá-la;, relatou uma auxiliar de enfermagem do Gama. Uma enfermeira de Taguatinga dá detalhes de um caso que a marcou recentemente. ;No dia 31 de dezembro do ano passado, vi uma paciente morrer no chão por falta de atendimento. Tentaram fazer reanimação, mas ela não resistiu;, relembra com pesar a profissional, com nove anos de rede pública.


Principais problemas
O Correio preparou um questionário, que foi preenchido anonimamente por 30 servidores. Eles tiveram que indicar os três problemas mais graves da rede pública, em uma lista com 12 opções. Confira quais foram os pontos indicados como mais problemáticos pelos profissionais da área:

; Deficit de recursos humanos (falta de médicos e servidores) - 15 votos
; Falta de material hospitalar - 14 votos
; Excesso de pacientes - 10 votos
; Desmotivação das equipes decorrente de baixos salários - 9 votos
; Falta de espaço e de estrutura física - 8 votos
; Problemas de gestão - 8 votos
; Ingerência política - 6 votos
; Falta de equipamentos - 6 votos
; Ausência de programas de qualificação profissional - 4 votos
; Colegas que não cumprem a carga horária devida - 3 votos
; Falta de tecnologia e informatização - 3 votos
; Falta de medicamentos - 3 votos

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