Cidades

Violência ameaça a tradicional Festa do Divino, em Pirenópolis

Renato Alves
postado em 03/06/2011 14:39
A violência que toma conta das cidades goianas compromete a mais tradicional festa do estado vizinho do Distrito Federal. Números cobrirão os trajes coloridos dos mascarados das cavalhadas de Pirenópolis. A medida inédita visa identificar os participantes da encenação e coibir crimes, alegam um promotor e um juiz da cidade, distante 140km de Brasília e com pouco mais de 20 mil habitantes.

Representação da luta medieval entre mouros e cristãos, as cavalhadas são o ponto alto da Festa do Divino Espírito Santo. Realizado há quase 200 anos, o evento ganhou o título de patrimônio imaterial do Brasil em 15 de abril de 2010. As celebrações religiosas de 2011 começam hoje ; com alvoradas, missas, procissões e a peça musical ; e vão até o dia 14.

Os mascarados saem às ruas nos três últimos dias da festa, quando também ocorrem as cavalhadas. Figura irreverente, o mascarado satiriza situações sociais e personagens políticos. O anonimato é fundamental na composição do personagem. No entanto, criminosos têm se escondido por trás das máscaras durante os festejos, alega o juiz Sebastião José da Silva.

O magistrado acatou a ação civil pública do promotor Rafael de Pina Cabral e estabeleceu regras aos mascarados. Ele tornou obrigatório o cadastro de quem quiser participar da festa trajando a tradicional fantasia de máscara de boi e roupas coloridas e brilhantes. Ao fazer o cadastro na Secretaria Municipal de Cultura, os foliões receberão uma espécie de adesivo com o logotipo da prefeitura e uma numeração.

Limites
Os mascarados terão ainda horário e local específicos para sair às ruas. Por ordem do juiz Sebastião da Silva, o mascarado flagrado fora do centro histórico da cidade ou do horário permitido (das 6h às 18h30) poderá ser preso acusado de crime de desobediência. O mesmo vale para quem estiver sem o adesivo de identificação.

Em sua decisão, o juiz cita um assassinato ocorrido em 2009. Jane Abreu de Brito, 39 anos, morreu com tiros disparado por alguém usando máscara na noite de segunda-feira da Festa do Divino. A polícia ainda não identificou o assassino. Para o promotor Rafael Cabral, o cenário piorou desde então, principalmente por causa do consumo de crack.

Cabral diz ainda ter relatos de furtos, roubos e até estupros cometidos por mascarados nas edições anteriores da Festa do Divino. Ele acredita que o cadastro inibirá os criminosos. ;O dono do número será identificado imediatamente em caso de delito. O mascarado que quiser apenas brincar se sentirá ainda mais seguro;, afirma.

As máscaras de boi adornadas com flores são as mais tradicionais da Festa do Divino. Com o passar dos anos, os foliões diversificaram o adereço, hoje, pivô de uma polêmica que toma conta do município goiano

Decisão divide a cidade

A identificação dos mascarados tem total apoio dos policiais de Pirenópolis. Sem apresentar estatísticas, a delegada Geinia Maria Etherna cita furtos, agressões e atentados ao pudor como os crimes mais frequentes cometidos sob o anonimato das fantasias durante a Festa do Divino. Segundo ela, as investigações do homicídio cometido em 2009 permanecem sem conclusão devido à dificuldade de identificação do suspeito, que usava máscara no momento do crime.

Além do homicídio ocorrido em 2009, Geinia menciona ainda carros danificados sem que os proprietários tenham a quem responsabilizar; mulheres submetidas à violência sexual; furtos de câmeras fotográficas e filmadoras; lesões a pessoas que nem sequer sabem quem e por quê cometeu a agressão; maus-tratos a animais; crianças e adolescentes ingerindo bebida alcoólica e circulando à noite. ;A nossa intenção é intimidar a ação dessas pessoas que deturpam o espírito da festa e da figura dos mascarados e se aproveitam para cometer crimes e perturbar a ordem pública;, afirma a delegada.

Geinia Eterna garante o sigilo da identidade dos mascarados cadastrados. ;Só a polícia terá acesso a esses dados, e se precisar.; Mas a alegação não convence os moradores mais antigos, como é Pompeu de Pina, 78 anos, 60 deles à frente da organização das cavalhadas. ;A festa e a cidade vão ficar mais tristes. Não podem censurar o mascarado, um crítico dos políticos.;

Pompeu observa que, ;se a moda pega;, as restrições às fantasias chegarão a outra famosa festa religiosa do estado, a Procissão do Fogaréu, realizada na semana santa, na cidade de Goiás, também conhecida como Goiás Velho. ;Já pensou se proibirem os farricocos?;, indaga. Farricocos são os homens encapuzados que representam soldados romanos à procura de Jesus.

Participante quer outra solução

O cadastramento dos mascarados começou na segunda-feira. Até a tarde de ontem, pouco mais de 20 pessoas procuraram o posto montado na delegacia de Pirenópolis para pedir a identificação, a maioria pais de crianças que sairão fantasiadas. Geralmente, cerca de 1,2 mil mascarados circulam pelas ruas da cidade em cada dia de festa. Foliões ameaçam não se registrar e boicotar o evento.

Moradores de Pirenópolis alegam que o fim do anonimato prejudica a identidade das cavalhadas. ;A decisão (judicial) descaracteriza e criminaliza a figura dos mascarados;, reclama Daraína Pregnolatto, coordenadora do Ponto de Cultura Guaimbê, no município goiano. Ela encabeça o movimento contrário às regras impostas pela Justiça.

Daraína sugere outras medidas para resolver os problemas de violência relacionados a alguns mascarados. ;A ação policial geralmente é bruta, autoritária e violenta. É preciso preparar os policiais para lidar com os mascarados, assim como promover ações educativas para valorizar a festa, a figura do mascarado e conscientizar a população.;

Rawston Barbosa da Veiga, 24 anos, veste máscara na Festa do Divino desde os 13. ;Cresci vendo meus tios e meu pai fantasiados. O mascarado é a alegria do povo, ele brinca com todo mundo, pede comida, bebida, dinheiro pra comprar cachaça, tudo num clima de festa;, conta. Ele faz parte de uma turma de 250 mascarados do tipo catulé, que saem com roupa social e máscara de boi.

Para Rawston, a identificação ordenada pela Justiça não vai inibir os crimes. Ele critica o adesivo com o número distribuído pela prefeitura. ;Qualquer um pode mandar fazer igual, a lona de banner é um material simples, dá para fazer em Anápolis ou qualquer cidade mais perto. Se eu me cadastro e alguém comete um crime com meu número nas costas, como fico?;, questiona.

Turmas de mascarados ainda tentam uma audiência com o promotor da cidade para pedir a retirada da ação civil pública que originou toda a polêmica. ;Propomos a carteirinha dos mascarados, com nome, endereço, foto e a turma, para ser apresentada com um documento de identidade. Também seria feito um cadastro, mas sem um adesivo de quase 30 centímetros na fantasia;, explica Rawston. (RA)

Batalha medieval
As cavalhadas de Pirenópolis ocorrem sempre após os festejos da Festa do Divino Espírito Santo, em três dias: um domingo, uma segunda e uma terça-feira. Realizada desde 1826, representam as lutas entre cristãos e mouros durante a ocupação da Península Ibérica (do século 9 ao 15). Dois exércitos com 12 cavaleiros cada se apresentam no Campo das Cavalhadas ; espécie de estádio construído na entrada da cidade ;, encenando a luta, ricamente ornados e com coreografias equestres. Nessa época, mascarados saem às ruas, a cavalo ou a pé, fazendo algazarras.

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