Cidades

Abandonados e até alvo de pichacões, jardins de Burle Marx agonizam

O Correi o percorre oito dos nove trabalhos assinados pelo paisagista na capital do país. Em pelo menos quatro há desrespeito ao projeto original, abandono, lixo ou pichações

postado em 19/07/2011 08:00
Descaso completo: no Setor Bancário Sul, jardim de Burle Marx tem quiosque e consumo de drogas
O paisagismo idealizado por Roberto Burle Marx para compor a arquitetura de Oscar Niemeyer e o projeto urbanístico de Lucio Costa resultou em obras de arte espalhadas pela capital do país. São flores, árvores, esculturas e espelhos d;água que encantam e orgulham brasilienses e visitantes. O valor cultural desses trabalhos foi reconhecido em 14 de julho pelo governo do DF, que determinou o tombamento dos jardins de Burle Marx na cidade por meio do Decreto n; 33.040/2011. Mas a iniciativa trouxe um problema gerado ao longo dos anos: a maioria das criações do poeta dos jardins encontra-se descaracterizada, sem manutenção ou cuidado. Já as preservadas recebem poucos turistas.

O Correio percorreu oito das nove obras que agora fazem parte do Patrimônio Cultural da Humanidade ; a reportagem não conseguiu autorização para visitar a do Palácio do Jaburu, residência oficial do vice-presidente da República. Encontrou lixo, pichações e desrespeito em pelo menos quatro delas.

O maior projeto de Burle Marx é também o que reúne mais problemas graves. Com cerca de 3 mil metros quadrados de área, o Parque da Cidade é o local que sofreu mais alterações em relação ao projeto original do paisagista. ;Tem muita coisa no lugar errado. O Parque era para ser feito por seções. Deveria ter as de esporte, as de cultura, as de lazer, as de alimentação e outras. A de cultura, por exemplo, nunca foi implantada. Ela seria constituída de cinema, lanchonetes e restaurantes;, afirmou a arquiteta e prima de Burle Marx Aurora Aragão Santos.

Além disso, o serviço de aluguel de pedalinho e de bicicletas para duas ou quatro pessoas não funciona mais. Mas o motivo de maior desgosto de Aurora é a Praça das Fontes. Pedaços de garrafas, maços de cigarro, terra e mato substituíram os espelhos d;água e a vegetação nativa tão característicos dos planos iniciais. ;É um descaso que vem de anos. Com o tombamento, acredito que possamos mudar isso. Agora, podemos fazer a revitalização inspirada no que ele pensava. Outro ponto positivo é evitar que objetos sejam instalados no lugar errado;, afirmou a arquiteta, que lutou oito anos com as secretarias de Desenvolvimento Urbano e de Cultura para conseguir a aprovação do decreto.

Nas proximidades do Banco do Brasil, no Setor Bancário Sul, uma barraquinha de pamonha está instalada ao lado de um dos jardins que compõem o paisagismo do lugar. A fonte, também integrante do projeto, era usada, na tarde do último sábado, por moradores de rua. Eles tomavam banho e lavavam roupas, além de usarem a sombra das árvores para consumir drogas. O desrespeito se repete no Teatro Nacional, onde o cheiro de fezes e de urina afasta quem deseja apreciar a vegetação de perto.

Para o paisagista e diretor do escritório Burle Marx & Cia, Haruyoshi Ono, o tombamento não pode se limitar a um instrumento para manter tudo como está hoje. Deve, segundo ele, significar a restauração da vegetação e o respeito às obras. ;A essência do projeto está se perdendo, e as plantas originais foram substituídas por outras. Espero que esse decreto mude isso. Acompanhei 30 anos desse trabalho e quero ver o resgate dele. Somente tombar por tombar não vale nada para nós, o que tem de fazer é retomar o projeto;, enfatiza.

Embora o instrumento jurídico de proteção não garanta a recuperação das obras, o superintendente regional do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (Iphan), Alfredo Gastal, explicou que existe uma abertura do governo para que o trabalho de restauração seja iniciado. ;Os projetos ficaram abandonados ao longo dos anos. Conversávamos com os governos anteriores e nada saía do papel. Esse decreto é uma atitude real da retomada das obras de Burle Marx. Vamos fazer uma parceria com o governo para iniciar a recuperação;, afirmou Gastal.


O <b>Correi</b> o percorre oito dos nove trabalhos assinados pelo paisagista na capital do país. Em pelo menos quatro há desrespeito ao projeto original, abandono, lixo ou pichações
308 Sul ; Praça dos Cogumelos
A construção da 308 Sul começou em 1959, com nove blocos residenciais. É considerada a quadra modelo de Brasília. Todo o conjunto paisagístico é assinado por Burle Marx. Tem área de 65 mil m; e mantém muito do projeto original. Mas há pichações aparentes e, recentemente, a casa de força, que era verde, foi pintada de branco pela CEB.


Jardins do Tribunal de Contas da União
Criado em 1973, o projeto realizado no local reúne os recursos mais característicos de Roberto Burle Marx: o encaixe lúdico dos canteiros, as ilhas de vegetação e os espelhos d;água. Depois da construção dos anexos do Tribunal de Contas da União, em 1994 e em 1998, o tamanho do jardim acabou reduzido, mas mantém o estilo previsto no projeto original elaborado pelo paisagista.


Jardins do Palácio do Itamaraty
A obra foi finalizada em 1965, deixando para a população de Brasília um dos prédios mais bonitos da Esplanada dos Ministérios. Para compensar o clima seco, o paisagista usou espelhos d;água com canteiros semelhantes a ilhas de vegetação. O uso de cascatas e de lagos propicia explorar os reflexos das linhas arquitetônicas de Oscar Niemeyer. A vegetação sofreu alterações, mas a obra está conservada.


Setor Militar Urbano ; Praça dos Cristais
Criado em 1970, o estudo do ambiente local conduziu o interesse do paisagista para os cristais, encontrados em grande quantidade no solo da nova capital. No projeto original, eram usadas 53 espécies de vegetais, incluindo o Buriti, palmeira típica que consolidava o caráter modernista de Burle Marx. Hoje, as plantas não são mais as mesmas, e caminhos foram criados no espelho d;água.


Jardins do Palácio da Justiça
A construção de 1962 seguiu a mesma solução do Palácio do Itamaraty. A fachada é feita em sequência de arcos interrompidos, em concreto armado, que estendem-se em calhas na forma de conchas. Elas vertem água sobre o jardim aquático de espécies de vegetação exóticas, hoje alteradas. Mas o Ministério da Justiça manifestou a vontade de trocar as plantas pelas originais, como idealizado por Burle Marx.


Jardins do Teatro Nacional
Com as obras finalizadas em 1976, o projeto inicial fazia uma composição com espécies nativas. O conjunto usava pedras, velozias, yucas e agaves para dar um clima característico da região. As características originais foram perdidas em diversas partes do local. Ao lado do teatro, onde havia plantas escolhidas por Marx, foi instalado um canteiro de flores semelhante aos das tesourinhas.


Parque da Cidade ; Praça das Fontes
Localizado no centro de Brasília, o Parque da Cidade foi fundado em 1978. É um dos maiores projetos de paisagismo de Burle Marx. Mas desde o começo das obras, não se obedeceu ao que foi idealizado originalmente. Faltam praças, cinema e restaurantes. Postes com fiação exposta, bancos e outros foram instalados sem respeitar o que especificava o paisagista.


Setor Bancário Sul ; Jardins do Banco do Brasil
A área de 21 mil metros quadrados projetada por Roberto Burle Marx sofre com o descaso. A fonte está desligada, e moradores de rua usam o local como ponto para o consumo de drogas. Um quiosque de ferro, pintado em amarelo, foi construído ao lado dos jardins, descaracterizando o plano previsto originalmente pelo paisagista paulista.


Pouca informação
Apesar do desrespeito à maioria dos jardins de Burle Marx, alguns trabalhos se mostram conservados. Um dos jardins em melhor estado no DF é o que fica na Praça dos Cristais, no Setor Militar Urbano. O local foi reformado e tem a atenção do Ministério do Exército, que fez questão de seguir o projeto original durante a restauração. Na tarde do último sábado, no entanto, só duas pessoas apreciavam a paz e a beleza do lugar. O arquiteto Daniel Carvalho, 30 anos, e a farmacêutica Paula Sobrinho, 27, saíram de casa para fazer fotos. ;Estou grávida de oito meses. Aqui é um espaço tranquilo e bonito para fazer um book;, avaliou a mulher.

Na Esplanada dos Ministérios, o Palácio da Justiça e o Itamaraty atraem turistas. Enquanto casais e amigos tiram fotos, outros esperam a vez para conseguir registrar o momento em Brasília com um fundo inesquecível. O que muitos não sabem é que a obra de arte guardada em fotografias é assinada por Burle Marx. Gislene Ribeiro, 39 anos, escolheu a fonte com vegetação nativa do Palácio da Justiça para fazer a prévia do casamento. ;Aqui é lindo, um símbolo de Brasília. Vim pelo cartão-postal, mas não conheço quem fez;, disse.

O servidor público Marco Garbelotti, 40 anos, convidou a família para comemorar o aniversário na cidade e aproveitou a ocasião para levá-los ao Itamaraty, que considera um dos mais belos prédios da cidade. ;Tenho orgulho de ter algo tão bonito para mostrar. Burle Marx também tem projetos de paisagismo em São Paulo, é interessante para conhecer;, afirmou Garbelotti.

Conservação
Tal desconhecimento acontece , segundo Aurora Aragão, porque a divulgação do nome de Roberto Burle Marx não foi tão intensa quanto a do urbanista Lucio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer. ;Ele (o paisagista) inovou, criou uma paisagem diferente e autêntica somente com vegetação brasileira. Aproveitou o que o Cerrado tem de melhor, mas a divulgação do nome é conhecida apenas pelos que se interessam mais pelo assunto ou pelos mais antigos na cidade;, lamentou.

Para Gastal, o Decreto n; 33.040 vai impulsionar também a descoberta do poeta dos jardins para os mais novos e os que ainda não conhecem o nome. ;Brasília tem 50 anos, tem gente que não lembra mesmo da história ou não conhece. O processo de tombamento vem justamente para resgatar isso;, ressaltou.

O levantamento sobre a importância do nome na capital poderá proteger as obras também do desconhecimento de servidores como os da Companhia Energética de Brasília (CEB), que na semana passada instalaram arames farpados sobre a casa de força de uma das áreas verdes da 308 Sul, considerada modelo no Plano Piloto. Além disso, a pintura verde, original do projeto, foi modificada para a cor branca. (MA)


PROPOSTA AVALIADA PARA A 308 SUL
A prefeitura comunitária da 308 Sul participou ontem de uma reunião com a direção da Companhia Energética de Brasília (CEB) para tratar da polêmica que se instalou depois do início dos trabalhos de revitalização da subestação da quadra. Os chefes do órgão propuseram que artistas da cidade façam painéis para pintar a casa de força, que na semana recebeu tinta branca. Antes, a estrutura era verde e a mudança na cor desagradou a comunidade. Além disso, colocaram arames farpados na parte de cima da subestação de energia, mas retiraram depois que o Correio publicou reportagem mostrando a revolta dos moradores. Segundo a empresa, diretores do órgão participam hoje de uma reunião no Iphan para discutir a proposta.

PERSONAGEM DA NOTÍCIA
Renome internacional
Roberto Burle Marx: paisagista de renome internacional, pintor notável, escultor, tapeceiro, ceramista e designer de joias. Nasceu em São Paulo em 1909 e morreu no Rio de Janeiro em 1994, deixando legados por todo o mundo. O primeiro projeto paisagístico foi o jardim de uma casa desenhada pelos arquitetos Lucio Costa e Gregory Warchavchik, em 1932. Desde então, deixou obras de paisagismo em locais como Longwood Gardens (Filadélfia), Universidade da Califórnia, Ibirapuera (SP), aterro do Flamengo (Rio de Janeiro), Caracas (Venezuela), Pampulha (Belo Horizonte) e outros.

Burle Marx estudou pintura em Berlim, na Alemanha, mas nunca teve uma educação formal em arquitetura paisagística. A formação inicial o influenciou diretamente na atuação dele, afinal, ele era conhecido como ;o homem que pintava com as plantas;. O talento ainda foi aflorado pela preocupação ambiental e com a preservação da flora brasileira.

Uma característica marcante do artista era utilizar plantas nativas do Brasil nas criações. Foi Burle Marx quem valorizou as bromélias, por exemplo, e tornou-as populares. Em Brasília, ele aproveitou a beleza do cerrado para compor e proibiu que a vegetação nativa do Parque da Cidade, por exemplo, fosse destruída para dar lugar a qualquer outro tipo de paisagem com o título de mais moderna.


ANÁLISE DA NOTÍCIA
Faltam atenção e respeito
O desrespeito ao legado cultural da capital do país vai além dos ataques aos trabalhos deixados pelo paisagista Burle Marx. Não é de hoje que as autoridades públicas relegam a segundo plano a arte mesclada à paisagem urbana, tão característica de Brasília. Os exemplos têm início nos anos 1960, quando os párocos da Igrejinha da 307/308 Sul destruíram os afrescos de Alfredo Volpi. Os religiosos não gostaram das liberdades formais do artista e jogaram tinta sobre o trabalho.

Exemplos mais recentes respingam sobre a obra de Athos Bulcão. Seja pelos azulejos quebrados da Igrejinha ou pelo painel descaracterizado durante a reforma do Palácio do Planalto, a memória do artista nem sequer conta com uma sede construída para a Fundação Athos Bulcão. Descaso e falta de atenção ao patrimônio artístico e cultural significa desrespeito à história da cidade. A criação de normas ajudam na preservação. Mas é preciso mais, de investimentos à manutenção.


POVO FALA
Você sabe quem foi ou conhece a obra de Burle Marx?
;É o dos azulejos? Ele tem algo aqui no Parque da Cidade? Moro aqui desde 1979, conheço cada árvore do parque, mas não sabia que Burle Marx tinha feito o projeto de paisagismo.;
Rogério Reis, 38 anos, arte-finalista


;O parque é a praia de Brasília. Corro aqui todos os dias, mas esse nome aí, não conheço não. Pensei que fosse o dos azulejos da Igrejinha, dos banheiros. Mas não sei. Acho que se foi ele que criou o pedalinho, aquelas bicicletas e deixou o parque tão agradável. Deveriam preservar as ideias que teve;
Juvan Palmeiras, 38 anos, ultramaratonista

O <b>Correi</b> o percorre oito dos nove trabalhos assinados pelo paisagista na capital do país. Em pelo menos quatro há desrespeito ao projeto original, abandono, lixo ou pichações
;O Itamaraty tem o (jardim) mais bonito do DF. Gosto também das pistas do Parque da Cidade para caminhar, o verde é muito bonito. Mas não conheço, não. Não sei quem projetou.;
Denise Monteiro Silva, 19 anos, estudante


;Conheço. Ele que criou os ambientes mais agradáveis da cidade. Os jardins mantêm a beleza e a conservação do meio ambiente em meio à selva de pedras;
Eufrásio Novaes, 47 anos, servidor público


;Conheço e acho o tombamento muito importante. É difícil ver ambientes com tamanha beleza sendo conservados. Hoje, temos que ter artifícios para manter a beleza dos lugares, e o tombamento é um deles.;
Getúlio Humberto Barbosa, 45 anos, advogado


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