Cidades

Disputada na Justiça, área nobre é pivô de uma briga de R$14,7 bilhões

postado em 06/11/2011 07:25

Ao lado do prédio onde era a sede do Jockey, estão os contêineres de uma empresa que funciona no local e aluga os equipamentos

A 10 quilômetros da rodoviária de Brasília, um terreno equivalente a 30 superquadras do Plano Piloto, vizinho a Vicente Pires e com acesso pela EPTG ou pela Estrutural, é explorado por empresários e famílias que aproveitam uma pendência na Justiça para usufruir de área nobre e bem localizada, onde até a água e a luz ficam penduradas na conta do governo. No espaço de 210 hectares ; ou 2,1 milhões de metros quadrados ;, funcionava o antigo Jockey Club de Brasília. A sociedade acabou há mais de uma década, a propriedade do lote ; uma doação oficial ; voltou para o governo em 2004, mas até hoje a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap) não conseguiu reaver a posse do lugar. Enquanto isso, pagando preço de banana, alguns poucos privilegiados conseguem manter negócios em uma terra que vale ouro. Se for transformado em um bairro residencial, por exemplo, o terreno pode movimentar estimados R$ 14,7 bilhões em negócios.

Visto do alto, o descampado onde era o Jockey parece uma área perdida no tempo em uma cidade que precisou expandir-se exponencialmente ; na última década, a população do DF aumentou em 600 mil pessoas. A gleba que alterna terra batida com mato alto, além de poucas construções decadentes, contrasta com o amontoado de casas de Vicente Pires e da Estrutural, vizinhas ao lote onde era o antigo clube. Aparentemente ocioso, o espaço, no entanto, virou sede de pelo menos quatro negócios que, segundo sustenta a Terracap na Justiça, funcionariam clandestinamente.

As baias instaladas na área são fonte de renda dos tratadores de cavalos

Na propriedade em litígio atua uma importadora de pneus, uma cooperativa que faz a matéria-prima para mangueiras, além de uma firma que aluga contêineres. Não é só. Tratadores de cavalos remanescentes da época em que o clube foi criado para sediar corridas ainda nas décadas de 1960 e 1970 moram até hoje no local. Esses cuidadores se instalaram no lugar, construíram suas residências, se casaram e tiveram filhos. Muitos deles permanecem na área. Trinta e seis famílias vivem do aluguel de baias para abrigar animais de empresários, funcionários públicos e até de policiais militares, que também se aproveitam das pendengas judiciais para pagar uma pechincha pelos serviços.

A Atlântico Sul Pneus é uma das empresas com endereço no Jockey. Em funcionamento desde 2007, a firma aluga o prédio que era usado pela administração do clube, logo atrás da arquibancada de onde os apreciadores de corrida assistiam às competições. O lugar, um edifício azul desbotado de pé-direito alto, reúne os escritórios da importadora e também o galpão de mil metros quadrados, onde são estocados os pneus.

O depósito foi um achado. Os donos da firma pagam apenas 60% do valor de mercado, oportunidade que encontraram anunciada em jornal. ;Quando a gente decidiu montar o negócio, o aluguel no Jockey era imbatível. Não sabia que tinha essa briga na Justiça. Aí, quando veio a Terracap querendo o lugar, a gente começou a tentar um lote no Pró-DF. Conseguimos e daqui a um tempo vamos nos mudar para lá;, explicou Anna Câmara, uma das sócias da importadora.

Ao lado da Atlântico Sul Pneus funciona a Contenge Engenharia Locações, que usa parte do terreno do Jockey para recauchutar contêineres que a empresa aluga. No dia em que a reportagem esteve no endereço, dois funcionários da empresa lavavam as estruturas metálicas, que estavam dispostas a céu aberto. Ao lado, um grupo de uma cooperativa da Estrutural se dividia na reciclagem de lixo usado para fazer mangueira. Ali, o material que chega em carretas é separado e processado em caldeiras fumegantes para a reprodução da borracha.

Briga
Os empreendedores que exploram o local se negaram a dizer quanto pagam para funcionar no terreno do Jockey. Mas tanto os representantes da Atlântico Sul quanto integrantes da cooperativa confirmaram que os valores são repassados a Fernando Mattos, veterinário que briga na Justiça pela posse da terra. Um dos sócios do antigo clube, ele é quem administra os negócios arrendados em área pública, como consta no registro em cartório. Representantes da Contenge não quiseram falar sobre o assunto.

Em 2002, uma decisão da 6; Vara de Fazenda Pública do DF revogou a doação do terreno ao Jockey por descumprimento de contrato. Na época, o juiz Esdras Neves de Almeida considerou que, pela ;acurada análise do feito, tem-se como inequívoco o descumprimento pelo réu dos encargos a que livremente se submeteu quando da doação do bem;. Esdras referia-se à acusação da Terracap, que naquela época denunciou o Jockey por fracionar a área em oito unidades imobiliárias e arrendá-las, o que configura desvio de finalidade, segundo as obrigações contratuais.

O Jockey recorreu da decisão e em 2004 o TJ negou o recurso de apelação do clube, confirmando o ganho da causa à Terracap. Em segunda instância, o tribunal negou embargo declaratório proposto pelo Jockey e manteve, por unanimidade, a decisão que prevê a devolução do terreno à estatal. Em maio de 2009, quando o governo se preparava para fazer uma operação de desocupação da área, o veterinário Fernando Mattos conseguiu uma liminar da 5; Turma Cível do TJ permitindo que ele permanecesse no lugar até que houvesse uma decisão de mérito sobre a posse do terreno.

Análise da notícia - Mais um exemplo

O uso irregular de terras públicas atravessa a história do DF, onde pelo menos um terço dos domicílios está construído em áreas ocupadas ilegalmente. O caso do Jockey Club é mais um exemplo desse absurdo que virou rotina. A área é pública, mas empresas privadas pagam aluguéis mais baratos e pessoas exploram diversas atividades sem nem sequer bancar a água e a luz consumidas. Ou seja, há gente ganhando dinheiro à custa do erário. Leia-se: à custa da sociedade. Essa realidade precisa mudar. Não só no Jockey, que é apenas um dos inúmeros exemplos desse tipo de irregularidade. É passada a hora de o Estado e a Justiça resolverem essa questão.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação