Cidades

Com um livro por dia, artista plástico quer espantar a solidão em Brasília

Allan de Lana combina poesia e performance ao deixar, durante este mês, 30 livretos em vários pontos do Distrito Federal. Um fica à mostra até 13 de agosto

postado em 28/07/2014 17:16
De óculos escuros, terno e gravata, Allan de Lana corre pela quadra de esportes da 114/115 Norte, sob o sol do meio da tarde. Cumpre, calçado com sapatos, 10 quilômetros dentro dos limites do retângulo. Deixa, por fim, um livreto no local, cercado de prédios residenciais. Ninguém estava ali para estranhar a excêntrica cena: passava, ao mesmo tempo, o primeiro tempo da ruína brasileira frente à Alemanha.

Allan de Lana deixa um livro por dia em pontos do DF durante performance

Foi o 13; exemplar do livro e unidos caíram todos na solidão distribuído pelo artista plástico. Allan de Lana faz, de 1 a 30 deste mês, as performances que acompanham a poesia. A cada dia, espalha uma cópia da publicação independente em pontos aleatórios do Distrito Federal. Morador de Águas Claras, o autor, de 33 anos, chegou a fronteiras do quadrado, indo aos extremos de Ceilândia e Brazlândia.


Realizar a performance em paralelo a um jogo do Brasil pela Copa do Mundo foi dos únicos destinos pensados com dias de antecedência, segundo Lana. O desejo, explica, era testar se haveria resposta à aparição do executivo corredor. Antes da partida, crianças brincavam na quadra e sob os prédios. ;Não houve qualquer reação. Durante a corrida, ouvi gritos e vaias, mas sabia que não era comigo;, detalha.

Em outras ocasiões, à diferença, o artista plástico colheu com impactos diversos. Chegou a assustar um homem que pescava, próximo à Barragem do Descoberto, na divisa com Goiás. ;Pensei que não fosse encontrar ninguém, por ser no meio do mato;, conta Lana. ;Tentei causar o mínimo de espanto, mas ele me viu e saiu correndo. Pode ter pensado que eu era um fiscal, por causa do meu traje;, acredita.

Na passarela subterrânea da 106 Norte, sem luz, o autor acendeu uma vela. Como as ações são documentadas em foto e vídeo, a chama ajudaria nas imagens.;Um cara passou gritando. Todo mundo atravessava longe. Houve quem fizesse sinal da cruz. É intolerância religiosa. Podia ser alguém deixando um voto bom. Era o meu caso, com um livro doado. O trabalho toca essas feridas do espaço coletivo.;

Às 22h do dia primeiro, o início da série de performances, o artista visitou o Conic, acompanhado pelo irmão. Montava equipamentos quando moradores de rua, abrigados em uma escadaria próxima, questionaram o que fazia e mandaram que tirasse a câmera. Após conversa e esmola, a ação seguiu. ;Dá para entendê-los. É como se eu invadisse o escritório de alguém e começasse a filmar sem autorização.;

Conector de pessoas

;A poesia, em si, é inofensiva, às vezes, em especial para mim, que não sou escritor;, avalia o autor. Assim, buscou superar os versos impressos nas 50 páginas do encartado. Na performance, chega aos locais sempre de terno e óculos escuros. ;É uma referência ao trabalhador da arte. Não dorme, não come. Está 24 horas, todo dia, detido no trabalho, resolvendo questões;, conta ele, também bancário.

Deixados ao léu, os livros ; dispersos na ordem de numeração ; não contam com qualquer garantia de serem apanhados ou lidos. Apenas uma embalagem plástica os protege de intempéries. ;Ainda que entre água, vai sobreviver por algum tempo;, espera o artista. Das 30 cópias, três ficarão com Allan, para acervo. Uma delas está exposta, até 13 de agosto, no Elefante Centro Cultural (706 Norte). ;É um atalho;, brinca. Todos os exemplares foram produzidos por ele, à mão, com custos como impressão e montagem.

Tecnologias cercam a intervenção, apesar da artesania das peças. Ao espalhá-las, Lana coleta horário exato, coordenadas geográficas e frequência cardíaca, divulgados no site dele (www.allandelana.com). O recorde de batimentos, com 190 por minuto, ficou com a corrida durante a derrota da Seleção. Por ora, a viagem mais distante da casa do artista levou a obra até a BR-080, que contorna Brazlândia.

;É, também, um livroobjeto. O foco está no formato, não apenas na literatura, e no uso do espaço público;, esmiúça o autor. ;A arte não é um objeto, uma ferramenta técnica, mas um instrumento de mediação. Caíram todos serve de conector entre as pessoas, foi um dos fatores que me impeliram a continuá-lo. Quem sabe alguém vai a Brazlândia conferir o livro. Pode conhecer um morador de rua de lá.;

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