Cidades

Mais de 115 mil famílias do DF convivem sem esgoto tratado

Enquanto o conflito burocrático existe e a solução parece distante, as famílias aprendem a viver com as condições

Flávia Maia
postado em 21/02/2016 07:05

A cidade conta com 85% dos domicílios alcançados pelo saneamento, mas há situações em que o crescimento urbanístico foi mais rápido: no bairro Santa Luzia, na Estrutural, os moradores sofrem dentro e fora de casa

A proximidade com o Palácio do Planalto não garante à população do Distrito Federal a ausência de problemas que o Brasil não consegue resolver, como o acesso ao esgoto tratado nas cidades. Embora a cobertura da capital seja recordista no país ; 85% dos domicílios urbanos na cidade têm rede, enquanto no Brasil o índice é de 42% ;, existe uma parcela para a qual o serviço não chega. São mais de 115 mil famílias convivendo com rejeitos a céu aberto ou utilizando fossas rudimentares e sépticas, segundo dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Mais do que a falta de verba, o impasse da expansão do sistema esbarra na questão fundiária. No DF, as regiões sem saneamento são, na maioria, aquelas em terrenos não regularizados. Diante da realidade, o Estado se vê em um impasse: de um lado, garantir a saúde pública com acesso a saneamento; do outro, implantar obras de infraestrutura e consolidar ocupações irregulares.

[SAIBAMAIS]Enquanto o conflito burocrático existe e a solução parece distante, as famílias aprendem a viver com as condições. Nas áreas sem esgoto tratado, os moradores usam fossa para livrar dos dejetos. Nesses locais é comum ver um pequeno buraco coberto com concreto, telhas ou uma ripa de madeira, e um cano alto em frente às casas ; do compartimento saem os gases acumulados, impedindo a fossa de explodir. Outra cena comum são valas cheias de água suja. Como o custo de limpar a cavidade fica para o proprietário da casa, muitos preferem ligar apenas o banheiro ao sistema. Os resíduos de outros cômodos da casa, como máquina de lavar, tanque e pia da cozinha, são despejados para fora por um cano. O resultado é a proliferação de doenças infecciosas e aumento de incidência de mosquitos, como Aedes aegypti, agente de doenças que preocupam o Brasil, como a dengue e a zika. Fora o desgaste do asfalto e a erosão nas áreas não pavimentadas.

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Dos bairros sem esgoto, o de Santa Luzia, na Estrutural, é um dos mais críticos. Embora boa parte da cidade tenha saneamento, o endereço ainda não foi contemplado. Para transitar pelas ruas, os moradores precisam desviar das poças. As crianças brincam entre o lixo e a água suja. O pedreiro Antônio Marcos Costa e Silva, 33 anos, mora há menos de 30 metros de uma estação de tratamento de esgoto, mas não tem acesso ao serviço. Segundo ele, a rede está sobrecarregada e comumente estoura. O cheiro de chorume é constante. Quando os caminhões, rumo ao Lixão da Estrutural, passam pelo local e o líquido parado é remexido, o odor piora. ;Eu moro aqui desde 2006 e nada muda. A gente só aguenta esse fedor podre porque é a única opção;, lamenta. Além de não ter acesso a esgoto, a família de Antônio só conta com água tratada porque conseguiu fazer uma gambiarra. Mesmo assim, ele comenta que os filhos e a mulher sofrem com constantes diarreias. Para o futuro, ele pretende comprar um filtro.

Para melhorar a condição sanitária da família, Luzia Rio Tinto da Silva, 57, também moradora do bairro de Santa Luzia, resolveu aterrar a fossa da casa. Ela fez um acordo com o vizinho da rua de frente, que já tem esgoto, e ligou o da casa dela à dele. ;Por aqui tem mosca demais porque as pessoas jogam carniça, comida podre e cachorro morto na frente da minha casa. Com a fossa, juntava ainda mais. Não aguentava mais pegar virose e ter dor de barriga;, comenta.

Outra região crítica é o Mestre d;Armas II, em Planaltina, o local não tem esgoto. A água tratada vem de uma ligação clandestina feita pelos moradores às adutoras da Companhia de Saneamento do Distrito Federal (Caesb). ;O ruim é que, às vezes, a água vem fraquinha;, conta Francisco das Chagas Silva, 66 anos. O medo de faltar o líquido faz com que o aposentado armazene água em um tambor de 200 litros. A sua fossa é coberta com uma uma telha de amianto.

Regularização e saúde pública

A infraestrutura sanitária levanta o debate entre saúde pública e ocupação ordenada do território. Esse dilema entre oferecer o serviço em áreas de invasão é brasileiro, mas ganha proporção no DF, onde 24,5% das residências - quase 202 mil domicílios - estão localizadas em terrenos não regularizados. Segundo Antônio Harada, assessor especial da Diretoria de Engenharia da Caesb, a empresa não pode colocar a infraestrutura de esgoto em área de invasão. ;A orientação é a de não estimular as invasões dando estrutura para esses locais;, explica. ; A gente tem exceções, como áreas de interesse social, onde há preocupação com saúde pública;, complementa. Endereços com interesse social no Plano de Ordenamento Territorial (PDOT) podem receber estrutura de esgoto - é o caso de Vicente Pires.

Para Leo Heller, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre água e saneamento, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o discurso de que o saneamento favorece a legalização de terras é recorrente. Porém, em sua análise, o direito humano à água e ao esgotamento sanitário deve prevalecer. ;O argumento de que o saneamento favorece a legalização de invasões não é adequado do ponto de vista dos direitos humanos. As populações sem esgoto geralmente são mais vulneráveis. Sem o serviço, as carências serão potencializadas, vai gerar mais pobreza, menos educação, mais doenças, mais desigualdade de gênero;, defende.

Apenas em 2009, com a lei que criou o programa Minha Casa, Minha Vida, que o governo federal instituiu regras admitindo infraestrutura pública em terrenos não legalizados. Enquanto isso, as ocupações irregulares foram crescendo no Brasil e no DF, algumas com mais de 20 anos de existência, e com processos morosos de regularização. Sem critério nacional, algumas comunidades recebiam os benefícios de infraestrutura, outras não, todas dependentes de leis locais e da vontade dos gestores públicos. Na opinião do secretário de Gestão do Território e Habitação do Distrito Federal, Thiago de Andrade, a lei federal trouxe critérios objetivos, como por exemplo, a invasão ter mais de cinco anos de existência. ;A gente tem que trabalhar para garantir os vários direitos difusos, tem que investir em infraestrutura, mas não podemos sobrepor outros direitos, como o de manutenção do meio ambiente e da ocupação ordenada do solo;.

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