Cidades

Polícia e Forças Armadas comandavam prostituição no DF na ditadura

A quarta reportagem da série que vasculha documentos da época da ditadura mostra que integrantes da PM e das Forças Armadas foram investigados por frequentar prostíbulos e por faturar com o aliciamento de garotas

Renato Alves
postado em 07/02/2017 06:03
Casas de prostituição concentradas no Km 7 da BR-040, um dos points mais conhecidos no fim da década de 1970 e início dos anos 1980: cerca de 30 boates
Não só havia muita prostituição na capital do país durante a ditadura como ela recebia proteção e era comandada por integrantes da Polícia Militar e das Forças Armadas. Eles também recorriam corriqueiramente aos serviços de mulheres, travestis e michês. A constatação é dos serviços de inteligências dos órgãos de segurança. Em dossiês mantidos sob sigilo por décadas, agentes revelam as investigações sobre colegas envolvidos na exploração sexual, inclusive de adolescentes.
Há ao menos cinco processos tratados como secretos pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP-DF), entre as quase 100 caixas de documentos com informações de 1963 a 1990, guardadas há mais de 50 anos. Todos contêm o carimbo de ;Confidencial; e os timbres de diversos órgãos de repressão. São registros das operações realizadas pelo regime dos generais, até então mantidos sob acesso restrito. A documentação embasa a série de reportagens ;Brasília confidencial;, publicada desde sábado.

Em 1973, as Forças Armadas investigaram o relacionamento de integrantes dos seus quadros com mulheres e homens que vendiam o corpo no Cruzeiro e na área central de Brasília, principalmente na plataforma superior e nas proximidades do Conic. Dois processos sigilosos trataram do assunto, considerado um ;desvio; pelo Serviço de Inteligência. Aos militares investigados como clientes de garotos de programa era atribuído o adjetivo ;pederasta;.


Leão de chácara


Mas integrantes das Forças Armadas também se envolviam no negócio da prostituição, lucrando com ele. Apuração feita de agosto a outubro de 1975 descobriu que um militar lotado no Ministério do Exército fazia as vezes de ;leão de chácara; na Boate Brazinha, ;antiga Caverna;, no subsolo do Edifício Venâncio IV. Mas tal investigação só teve início porque ele vinha ;criando problemas, efetuando disparo de arma de fogo e espancando pessoas;.

O militar investigado havia trabalhado no gabinete do ministro por dois anos. Os investigadores descobriram que, enquanto ele falava grosso e até batia em civis, deixava colegas de farda e da Polícia Militar do DF entrar de graça e até beberem sem pagar na boate ; um eufemismo para prostíbulo, pois na casa noturna mulheres faziam striptease e ofereciam programas sexuais. O serviço velado do Exército deu o caso por encerrado após tomar um revólver e o porte de arma do colega, que não era só segurança, mas também gerente da casa de prostituição.


Proteção de PMs


Outra investigação confidencial, a cargo de militares velados do Estado-Maior da PMDF, comprovou as denúncias feitas por moradores de Taguatinga Sul. Em abril de 1977, eles começaram a enviar cartas para as redações de jornal reclamando de prostíbulos em área residencial, frequentados por policiais militares. Os moradores mostraram indignação com a presença dos PMs e por eles praticarem ;constantemente escândalos, atos obscenos e brigas; em vias públicas da QSD 30, da QSD 14 e da QSD 31, onde ficavam casas com ;quartos alugados a mulheres prostitutas que levam homens à prática do ato sexual;.

O Serviço de Inteligência da PMDF constatou haver uma residência de dois pavimentos, na QSD, transformada em casa de prostituição comandada por uma mulher, conhecida como Dona Pomba. Os militares incumbidos da investigação flagraram, ainda, colegas entrando e saindo de farda do estabelecimento. No entanto, as páginas finais do processo sumiram. Não foram enviados ao Arquivo Público do DF (ArPDF), onde estão abertas à consulta pública as 96 caixas com documentos oficiais e confidenciais da SSP-DF.

Aliciamento


Também não é possível saber se a PMDF tomou alguma providência em relação a um caso de tráfico interestadual de seres humanos, flagrado pela PM de Minas Gerais em abril de 1981. O Serviço de Inteligência da corporação mineira prendeu uma mulher na Rodoviária de Belo Horizonte sob a acusação de agenciar meninas com menos de 18 anos. Em depoimento, a suspeita, de 21 anos, confessou levar adolescentes para a capital para serem ;usadas em hotéis de encontros amorosos;, segundo o relatório da PMMG.

A mulher contou ainda encaminhar as meninas agenciadas em Minas a cafetinas do DF. Em troca, ela recebia ;Cr$ 2.000 (dois mil cruzeiros) por cada jovem virgem e R$ 1.500 (um mil e quinhentos cruzeiros) por não virgem;. Tal esquema, ainda de acordo com a acusada, moradora de Taguatinga, envolvia policiais militares do DF, que garantiam o funcionamento e a segurança dos ;hotéis de encontros amorosos;, mediante dinheiro ou programas com as adolescentes. Mas o dossiê de tal caso também foi enviado incompleto ao ArPDF, não mostrando se a PMDF levou a investigação adiante.

Memória

Michês à noite

Até o início da década de 1990, os michês militares se concentravam nos viadutos sobre a pista entre o Cruzeiro e o Setor Militar Urbano. Com a repercussão negativa, a Polícia do Exército começou a prender os recrutas parados embaixo das passagens de concreto. Em dezembro de 2008, o Correio publicou uma reportagem mostrando que recrutas se prostituíam no Cruzeiro Center, após o expediente, nas sextas-feiras. A mesma reportagem mostrou que ao menos 10 militares do Exército foram presos acusados de envolvimento em assassinatos e tentativas de homicídio no DF, em 2007 e 2008. Eles mataram três pessoas, segundo a polícia. Seis dos suspeitos tinham algum tipo de relação com a vítima. Em depoimentos em delegacia ou na Justiça, contaram que costumavam frequentar points gays.

Para saber mais

;Fatos históricos de maior relevância;
O Governo do Distrito Federal (GDF) publicou edital, no fim do ano passado, reconhecendo os documentos da SSP-DF como ;necessários à recuperação de fatos históricos de maior relevância;. O GDF deu 60 dias para manifestações e, como não houve questionamentos, o acervo agora está digitalizado e disponível a consultas. Uma equipe do Correio examinou mais de 2 mil páginas, cruzou informações e entrevistou alguns dos personagens citados na documentação.

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