Cidades

Várias áreas nobres de Brasília estão sob o risco de favelização

O DF abriga diversos assentamentos móveis, a maioria erguida por causa do trabalho realizado pelos quase 3 mil catadores de materiais recicláveis da capital. Grande parte vive em situação degradante e exposta a diversas doenças e à violência

Luiz Calcagno
postado em 02/07/2017 08:00
Mãe e filha no Parque Burle Marx, no Noroeste: sobrevivência por meio da coleta de materiais recicláveis
Júlia*, 24 anos, chega a passar 15 dias em uma área de cerrado no Noroeste, vivendo em um barraco feito de lona e tábuas, sob uma árvore, cercada por papelão, ferro fundido, arames, galões de água e sacos com latas de alumínio. Tira o sustento do material reciclado enquanto a filha, de 2 anos, caminha entre o lixo. Apesar dessas condições, ela tem um apartamento conquistado por meio de programas habitacionais do Governo do Distrito Federal. E lamenta a falta de um galpão de reciclagem que deveria ser construído no Paranoá. ;Para conseguirmos pagar as contas e não perder a moradia, temos de trabalhar. A única saída é ficar aqui. O governo não pode saber ou perdemos o benefício, mas não tenho como ficar em casa, e a minha filha não ficará longe de mim;, afirma.

A jovem faz parte dos cerca de 2,8 mil catadores de materiais recicláveis do DF, segundo a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh). Ela e os vizinhos, que moram nos arredores de um bairro nobre da capital federal, integram outra estatística da Secretaria: estão entre os 3 mil em situação de rua de Brasília. A interseção entre os grupos acontece justamente quando os catadores precisam deixar seus endereços para viver em pequenas favelas móveis, onde é mais fácil encontrar rejeitos para serem vendidos a empresas de reciclagem. O ganho mensal varia, mas, geralmente, não chega a um salário mínimo após jornada de quase 14 horas diárias.

Outra catadora, que se identificou apenas como Neire, 40, conta que paga R$ 350 de aluguel em Samambaia, mas passa a maior parte dos dias em um barraco no mesmo local em que fica Júlia. ;Fazemos fogão de lenha e cada um cozinha sua comida. Puxo o que eles chamam de carrinho de peito e, em um mês bom, tiro até R$ 600. Os fiscais pedem para mantermos o local limpo e organizado. Quando vão derrubar, avisam e retiramos os nossos pertences. Depois que eles vão embora, voltamos novamente;, admite. Na poligonal do Noroeste, há pelo menos três assentamentos, dois no Parque Burle Marx e outro em uma área de proteção ambiental, entre o bairro e a Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia).

[VIDEO1]

Há outras favelas semelhantes em diversas regiões do DF. Só nos arredores da Universidade de Brasília (UnB), existem duas, uma na via de acesso à instituição, saindo da L2 Sul, e outra na altura da 413 Norte. No último local, a reportagem foi recebida com desconfiança. Um jovem de 20 anos que chegava com hastes de metal em uma carroça puxada por um cavalo disse que tem casa, mulher e um filho em Planaltina de Goiás. Ele não volta para casa há mais de seis meses. Analfabeto, chegou em janeiro ao local. ;Não tenho outro emprego. É aqui que consigo o que preciso, papel, latinha, cobre, tudo. Passo mais tempo aqui do que em casa. Senão, a gente passa fome;, lamenta.

Em um assentamento erguido em Taguatinga, no Pistão Sul, ao lado da linha do metrô, com vista para os edifícios de classe média de Águas Claras, vive Aparecida Ferreira de Maria, 33. Ali, ela permance uma semana e um mês, de acordo com a necessidade, acompanhada dos filhos, de 15, 13, 11, 10, 8, 6 e 3 anos. ;Moro de aluguel em um barraco na QNL e recebo R$ 700 de auxílio. Só que, sozinha e com sete filhos, não consigo viver com esse dinheiro. Tento garantir que eles estudem, mas ficam aqui comigo;, relata.

Subumano


A professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) Christiane Machado Coelho destaca que a crise econômica tem repercussões sociais e alerta que, com o desmantelamento do Lixão da Estrutural, a quantidade de assentamentos no DF tende a aumentar. ;Essas pessoas têm dificuldade para conseguir um emprego estável. O ideal é que tivessem alternativas, como capacitação e empregos que as possibilitassem ter outra forma de vida. Eles vivem do que sobra do sistema;, explica Christiane (leia Palavra de especialista).

O consultor em segurança pública George Felipe de Lima Dantas concorda. ;São agrupamentos que vivem em áreas de cerrado em situações subumanas. É um problema laboral associado a um problema social e que envolve um componente na segurança pública. Isso deve produzir nessas comunidades um enorme mal-estar, que é a questão da sensação de insegurança. Há um medo do crime associado a elas, mesmo as pessoas sabendo que os catadores não devem ser temidos. É um setor que, se não é dada a importância devida, é invisível e esquecido. Não acho que seja parte de uma agenda relevante do governo. Suprida a necessidade dessas pessoas de modo mais abrangente e racional, possíveis problemas de segurança derivados da situação também se resolveriam;, avalia.

* Nome fictício

O DF abriga diversos assentamentos móveis, a maioria erguida por causa do trabalho realizado pelos quase 3 mil catadores de materiais recicláveis da capital. Grande parte vive em situação degradante e exposta a diversas doenças e à violência

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Brecha do sistema

;A crise política e econômica que vivemos tem repercussões sociais. O desemprego é alto e, nesse setor, vai se agravar, com o desmantelamento do Lixão da Estrutural. Além disso, há uma precariedade das condições de trabalho das pessoas que vivem do lixo e que têm uma vida móvel. A centralidade de empregos e a falta de vagas e de profissionalização agravam ainda mais a situação. Em um ambiente improvisado, com habitações e uma profissão informal, elas vivem do outro lado da sociedade de consumo, que é o lixo. Vivem onde conseguem dinheiro, nas brechas da civilização, criando ofícios informais onde tem dinheiro.

Há um efeito quase dominó da informalidade e da ilegalidade, que se cria em situações improvisadas e sem nenhuma institucionalização. É um efeito acumulativo. O que está em jogo são o trabalho e a fonte de renda. Estão lutando pela sobrevivência, por uma forma para conseguirem se manter. Essas pessoas estão na rua sem proteção. Há violência, insegurança e instabilidade muito grande. Estão na brecha do sistema e fragilizadas por isso. O ideal é que tivessem alternativas, como capacitação e empregos que as possibilitassem ter outra forma de vida. Elas vivem do que sobra do sistema. Há, ainda, precariedade e demora do Estado em agir.;

Christiane Machado Coelho, socióloga e professora do Departamento de Sociologia da UnB

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação