Cidades

Saiba como são as noites dos cerca de 70 sem-tetos que moram na Rodoviária

Diariamente, cerca de 700 mil pessoas movimentam o maior terminal da cidade; mas, longe do vaivém de casa, do trabalho e do lazer muitos personagens invisíveis ficam para trás e adotam o local como lar

Ricardo Faria - Especial para o Correio, Ed Alves
postado em 01/10/2017 08:00
Rodoviária do Plano Piloto
Terça-feira, 23h. O ritmo da Rodoviária do Plano Piloto está mais lento. Nem lembra o estresse de cinco horas atrás, período de maior movimento. Todos os dias, 700 mil pessoas passam pelo maior terminal do Distrito Federal. Entretanto, uma pequena parcela desses frequentadores não pega ônibus, não volta para casa... Tem aquele espaço público como moradia ou simplesmente um abrigo para dormir. ;A minha vida é aqui. Já vi de tudo nesta rodoviária. Vivemos em alerta sempre;, conta Sérgio Oliveira Sousa, 46 anos, há 20 nas ruas da capital.
O rosto marcado pelos anos de dificuldade, os poucos dentes na boca e a limitação para andar deixam claro que a idade não reflete a sua aparência, desgastada pelo tempo vivendo ao relento. Sérgio aparenta ser mais velho do que diz e justifica: ;Comemos quando nos dão. Não temos direito a nada. Na rua, vivemos um dia após o outro;.

O paraense garantiu não usar drogas ou bebidas alcoólicas. Disse que deixou a terra natal em busca de uma vida melhor, mas acabou na rua. Segundo ele, antes de chegar ao DF, passou alguns meses em São Paulo e em Goiânia. Hoje, tudo o que deseja é retornar para o Pará e reencontrar o filho, que tinha 1 ano quando o pai partiu, há duas décadas. ;O meu sonho é voltar para a minha família. Eles não fazem ideia da vida que levo e onde estou;, lamenta. Enquanto isso, perambula entre tantas pessoas invisíveis socialmente e desamparadas. ;O senhor pode me pagar uma comida?;, indaga ao repórter, que o leva a uma lanchonete. ;Hoje, a comida não foi suficiente. A sopa só é distribuída aos fins de semana. Cheguei a pegar restos no lixo;, explica, enquanto come um salgado e bebe um suco de caju.

Minutos depois, Sérgio se ajeitava embaixo da marquise da plataforma superior da Rodoviária, com os seus poucos pertences: uma mochila surrada, algumas mudas de roupa, um papelão como cama e um fino cobertor. À meia-noite, chegava a hora do sono dos justos ; ou dos excluídos.
Os personagens do maior terminal de ônibus do Distrito Federal mudam quando cai a noite: saem os passageiros, tomam conta os andarilhos
O piso encardido não espanta quem resolve se abrigar no local para dormir. São cerca de 70 homens e mulheres, jovens e idosos, drogados, alcoólatras, ou simplesmente sem-teto vivendo na Rodoviária do Plano Piloto, um dos cartões-postais da capital do país. Ali, se acomodam, principalmente nas plataformas E e F ; o local fica próximo ao posto da Polícia Militar ;, onde julgam ser mais seguro.

É o caso do aposentado Aristeu Barbosa de Lima, 55. O sotaque interiorano, o crucifixo no pescoço e o chapéu de palha revelam a imagem do homem que mora há mais de dois anos no terminal. O aposentado conta que sucumbiu ao alcoolismo após ser traído pela mulher. ;Eu queria ter uma vida normal, mas o vício não me deixa sair daqui;, lamenta. Desde então, ele não tem notícias dos cinco filhos que deixou no município goiano de Morrinhos. ;A minha desilusão foi muito grande;, diz.

Entre uma abordagem e outra da reportagem, o relógio marcava os primeiros minutos de quarta-feira. Além dos poucos ônibus que circulam de madrugada, o barulho mais alto saía dos rodos dos funcionários que faziam a limpeza do local desde as 22h. Por causa disso, desavenças entre os moradores da Rodoviária e os funcionários da limpeza são comuns.
O trabalho de limpeza durante a madrugada incomoda os moradores do terminal: desavenças

Aguardando a limpeza do chão para se deitar, Adriano (nome fictício), 33, diz que foi morar no local após ser abandonado pela família, que não aceitava os seus vícios. Ele vive há mais de dois anos por ali. Alcoólatra e usuário de drogas, prefere manter-se distante da companheira e dos três filhos, que moram no Itapoã. ;Não tenho vontade de viver. Tudo o que estou passando hoje é culpa minha;, reconhece. Segundo ele, a insegurança das ruas não faz mais parte da sua vida. ;Só sente medo quem tem algo a perder. Eu perdi tudo, não me resta mais nada;, afirma.

Assim como Sérgio, Adriano diz à equipe do Correio que está com fome. ;Muitas vezes, nós bebemos para espantar o frio e usamos drogas para camuflar a fome. Hoje, apertou mais;, explica, entre uma mordida no lanche e um gole no suco comprado em um dos 12 estabelecimentos que funcionam na Rodoviária ao longo da madrugada. Durante a conversa, o olhar distante do ex-motorista de ônibus encontrava o Corujão parado no terminal. O sentimento do homem de voz pausada é de melancolia. ;Eu sinto um vazio do tamanho desta rodoviária quando anoitece.; Ele não sabe dizer se deixará o local algum dia.

Próximo dali, o flanelinha Marcelo (nome fictício), 26, usuário de drogas e ex-traficante, vive há cerca de quatro meses seu ;refúgio;, como ele mesmo define. ;Não me restou alternativa. Tive de vir para cá. Fui ameaçado de morte depois de desavenças com outros traficantes;, relata. Ex-morador de Santa Maria, Marcelo afirma temer pela vida da mãe, que ainda mora na cidade. Com uma pasta recheada de currículos e a Carteira de Trabalho em mãos, ele deseja mudar de vida. ;Não é fácil, vivemos todos os dias em perigo. Estou tirando os documentos que me faltam. Quero encontrar emprego e sair dessa;, revela.

Solidariedade

A sopa distribuída aos moradores de rua é uma iniciativa dos voluntários de ONGs e igrejas. Todas as semanas, equipes se dirigem à Rodoviária do Plano Piloto levando comida e um pouco de solidariedade às pessoas em situação de vulnerabilidade.

Transporte na madrugada

O Corujão é o ônibus que atende a população da 0h às 4h, diariamente. São 18 linhas operadas por 10 veículos
nesse período.

700 mil
Número de pessoas que passam pela Rodoviária do Plano Piloto diariamente

180
Total de linhas convencionais que circulam das 4h à 0h

550
Quantidade de ônibus que trafegam durante o dia

12
Estabelecimentos que funcionam durante a madrugada

Insegurança e abandono

Com a mudança do horário do funcionamento do posto policial instalado na Rodoviária do Plano Piloto, quem mora ou trabalha no local se sente desprotegido. Se antes os plantões eram divididos em três equipes de até 10 policiais, com escalas de 12h de trabalho por 60h de descanso, agora foram substituídos por uma nova estratégia de atuação. Os PMs foram realocados em dois grupos de 15, que trabalham 8h por dia e repousam 40h. A estrutura ficava aberta 24 horas. Agora, fecha à 1h. Após isso, o policiamento é feito com veículos, até as 7h, quando outra equipe começa o próximo expediente do posto.
O posto policial da Rodoviária do Plano Piloto fecha à 1h: motivo de reclamações dos frequentadores

De acordo com informações dos próprios policiais, essa alteração visa aumentar o número de militares das 17h às 19h, período de maior circulação de pessoas no terminal. Mas a medida é contestada. ;Achei absurda a decisão. Ficamos praticamente desprotegidos quando o posto fecha;, reclama um balconista que pede anonimato. ;Ficam dois policiais aqui no posto. Quando tem ocorrência, eles saem. E quem garante a segurança de quem fica aqui;, queixa-se outro trabalhador.

Segundo a Polícia Militar, o policiamento no local continua 24h. Em nota, a corporação afirma que ;o policial fixo no posto engessa o patrulhamento. Por isso, insiste no policiamento móvel, que é a melhor forma de garantir a segurança na localidade;.

No entanto, durante o tempo em que o Correio passou na Rodoviária, Marcos Antônio de Oliveira, 30 anos, foi assaltado na altura do Conic, quando caminhava para o local. ;Três homens me cercaram e levaram minha mochila, celular e cartões;, lamenta. Como a área é de responsabilidade do 6; Batalhão da Polícia Militar (Área Central), cabe aos policiais que estiverem no terminal rodoviário atender à ocorrência. Ao procurar a unidade, a vítima não conseguiu socorro imediato. Passava da 1h de quarta-feira, e os dois PMs do plantão patrulhavam a região. A essa altura, Marcos havia registrado uma ocorrência na 5; Delegacia de Polícia (Área Central). ;Tenho medo de andar aqui à noite. Sinto-me desprotegido na Rodoviária. Agora, é correr atrás do prejuízo;, diz.

Riscos

A transexual Brenda (nome fictício), 23, faz programas há cerca de um ano na região. Os pontos mais frequentes são o Setor Comercial Sul e o Conic. Para chegar até esses dois locais, ela passa pela Rodoviária do Plano Piloto. Ali, sofreu ameaças e perseguições. ;Eles (sem-teto) correram atrás de mim, mas eu consegui chegar a um lugar movimentado e desistiram;, detalha. Questionada sobre os riscos na região central de Brasília, ela demonstra preocupação: ;À noite, é muito perigoso, mas preciso ganhar a vida;.

Sem emprego formal e fazendo programas escondido da família, Brenda encara os riscos e espera conseguir outro trabalho para mudar de vida. ;O meu pai morreu não me aceitando. Parte da família não me aceita. Se souberem como ganho a vida, não sei qual será a reação deles.;
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Assistência social

De acordo com a Secretaria do Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, aproximadamente 200 pessoas, incluindo os cerca de 70 moradores da Rodoviária do Plano Piloto, são atendidas por dia no Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), na 903 Sul. A pasta informa também que realiza cerca de 2,7 mil abordagens com pessoas em situação de rua no DF, oferecendo acesso aos programas sociais, especialmente o Bolsa Família e o DF Sem Miséria. O órgão acrescenta que, após parcerias com outras instituições, mais de 80 pessoas deixaram as ruas da capital federal. Além disso, com o programa Caminhos da Cidadania, muitos abandonam o Buraco do Rato, no Setor Comercial Sul, local conhecido pelo consumo de crack. De lá, voltam para casa e para o mercado de trabalho.

"Três homens me cercaram e levaram minha mochila, celular e cartões;
Marcos Antônio de Oliveira, vítima de assalto na Rodoviária

Para saber mais

Obra de Lucio Costa
Uma das mais imponentes obras da época da construção de Brasília não pertence a Oscar Niemeyer. A Rodoviária determina o traçado do Plano Piloto. A plataforma foi pensada para ser o centro urbano da capital federal. Ela é uma das duas criações do arquiteto Lucio Costa para a cidade ; a outra é a Torre de TV. Localizada no ponto de cruzamento entre os eixos Rodoviário (Norte-Sul) e Monumental (Leste-Oeste), foi inaugurada em 12 de setembro de 1960, por Juscelino Kubitschek. O principal terminal de ônibus urbano do Distrito Federal recebe cerca de 700 mil passageiros por dia, que vão para as regiões administrativas e o Entorno. Além das linhas de ônibus que circulam dentro do DF, o terminal recebe as interurbanas, que ligam Brasília aos municípios vizinhos em Goiás.

Entre as drogas e o desespero

O desemprego e a falta de perspectiva e de estrutura familiar são dois dos principais fatores que levam a maioria dos sem-teto a usarem a Rodoviária do Plano Piloto como meio de conseguir dinheiro na parte do dia e abrigo à noite. Por conta disso, tornam-se alvos fáceis da criminalidade, do tráfico e do abandono social. O consumo e a venda de drogas ocorrem com mais frequência no período noturno, na plataforma superior, próximo ao Conic.

Um exemplo é o jovem Marcos (nome fictício), 25 anos. Morando há quase um ano no terminal, o ex-comissário de bordo demonstra um vocabulário culto e articulado, diferentemente dos demais frequentadores. ;Eu perdi tudo. Fui roubado por uma pessoa que confiava e acabei na rua. A droga foi a consequência natural;, avalia. Baiano, Marcos afirma que a família não imagina a vida que ele levou nos últimos dois anos. ;Não falo. Se me perguntam, digo que está tudo bem. Mas eu não me conformo com essa situação;, diz.
Durante a reportagem, o Correio flagrou o consumo de crack no terminal rodoviário

Enquanto conversava com o Correio, Marcos e dois amigos, também moradores do local, pediram permissão para fumar crack em uma lata de refrigerante vazia e amassada. ;Eu uso faz dois anos. Não sei como mudar a minha vida.; Em poucos minutos, mais de três pedras são consumidas pelo trio.

Deitado em cima de um papelão, Rogério (nome fictício), 42, fuma a pedra sem receio algum. Ele vive há 10 anos nas ruas do Distrito Federal e escolheu a Rodoviária como abrigo. ;É uma vida sofrida. Todos te tratam com indiferença;, conta. Rogério veio da Bahia, onde deixou três filhos que não vê há sete anos. ;Tive de fugir para não morrer. Envolvi-me com a criminalidade;, explica, entre um trago e outro.

Ao lado de Rogério, mais uma pedra era inalada. Desta vez, por Flávio (nome fictício), 32, há três meses no local. ;Vim do Piauí e acabei parando aqui;, informa. Entorpecido, mal consegue falar. ;Eu quero reencontrar o meu filho. Esse é o meu único sonho;, afirma. Resta a eles se cobrirem com um fino cobertor para passar a noite.
Moradores de rua procuram ficar perto dos 12 comércios abertos após a meia-noite: segurança

Procure ajuda

; Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) de Taguatinga QNF 24 A/E n; 2 Módulo A, Taguatinga Norte, perto do Sesi. Informações: 3373-4539, 3563-1046 e centropoptaguatinga@sedestmidh.df.gov.br.

; Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) de Brasília SGAS 903, Conjunto C, em frente ao Colégio Leonardo da Vinci. Informações: 3226-3393, 3223-5286, 3225-7889
e centropopbsb@sedestmidh.df.gov.br.

*Fonte: Secretaria Adjunta de Desenvolvimento Social

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