postado em 13/10/2009 09:28
;Não consigo reconhecer instantaneamente quase ninguém, exceto os membros de minha família, mas mesmo assim levo segundos para reconhecê-los.; O que parece inacreditável para a maioria dos brasileiros é rotina na vida de Karen de Cássia Grein, 21 anos, que mora em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O mesmo ocorre com Francisco Miguel de Moura, 76. ;Se fecho os olhos, não consigo visualizar o rosto de ninguém. Já experimentei, tentando lembrar. Lembro do corpo, do caminhar, do chapéu, do cabelo, do riso e da voz, principalmente. Mas do rosto, não;, detalha o escritor, que mora em Teresina, capital do Piauí.Tal como Dr. P, personagem do livro O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, de Oliver Sacks, Karen e Francisco têm prosopagnosia, uma desordem de imagem na qual o cérebro é incapaz de reconhecer faces. Em 2006, o geneticista alemão Thomas Grüter diagnosticou que 2,5% dos 689 voluntários que participaram de sua pesquisa apresentavam o distúrbio. Um estudo feito em 2004 pela University College de Londres e pela Universidade de Harvard chegou a resultado semelhante: 2% da amostra, composta por 1,6 mil pessoas.
O neurocientista Brad Duchaine, da University College de Londres, acredita que os resultados da pesquisa podem ser aplicados a toda a população mundial. Se isso for correto, significa que 136 milhões de pessoas ao redor do planeta sofrem de prosopagnosia, cujo difícil nome vem das palavras gregas prosopo (rosto) e agnosia (desconhecimento). Até pouco tempo atrás, neurologistas acreditavam que apenas pessoas que sofreram lesões cerebrais poderiam ter o problema. Porém, as pesquisas de Grüter e Duchaine revelaram que há casos nos quais a pessoa apresenta ;cegueira para feições; desde a infância, sem ter nenhum dano no cérebro.
No caso da prosopagnosia adquirida, derrames, doenças degenerativas ou ferimentos causam danos a alguma das regiões cerebrais especializadas em processar faces. Já nos casos hereditários, que normalmente ocorrem em mais de um membro da mesma família, a desordem é, aparentemente, resultado de um problema genético. No entanto, ainda não se sabe qual gene seria o responsável pelo distúrbio.
Francisco se encaixa na categoria dos que têm prosopagnosia hereditária. ;Minha mãe (já falecida) me dizia que não decorava o rosto das pessoas, tinha dificuldade de reconhecê-las. Eu, observando, vi que acontecia o mesmo comigo;, afirma. Já Karen garante que não há familiares com o mesmo problema, mas destaca que desde a infância notou que tinha dificuldade em reconhecer os outros. ;Quando criança reclamava muito com minha mãe dessa dificuldade. Passei por alguns exames em Curitiba, onde morava, mas não chegaram a nenhuma conclusão e acabaram me indicando a psicólogos, para ver se não era de fundo emocional ou psicológico;, explica.
Memorização
Ken Nakayama, professor de psicologia de Harvard, concorda com Duchaine e Grüter ; que tem o distúrbio ; ao ressaltar que a prosopagnosia está relacionada a dificuldades de memorização. ;As caraterísticas da prosopagnosia são um problema de percepção e de memória visual que leva a uma inabilidade de reconhecer faces;, sintetiza. Ou seja, a pessoa enxerga rostos, mas não consegue se lembrar deles. ;Acredito que quando olho algum rosto não sou muito diferente dos outros. Às vezes, sinto que sou até mais sensível que muitas outras pessoas para perceber estados de humor, por exemplo. Mas minha dificuldade é formular a imagem de faces;, esclarece a gaúcha Karen. Isso ocorre porque o prosopagnóstico não consegue construir a imagem do conjunto facial, apenas de partes específicas, como cor dos olhos, formato do nariz e tamanho da boca. ;Não consigo guardar a imagem facial de ninguém. Não conseguiria fazer um retrato nem de alguém minha família. Não consigo ter em mente o meu próprio rosto;, conta a jovem.
Então, como alguém com o distúrbio faz para reconhecer familiares, amigos e pessoas a quem já foi apresentado? ;Para mim, ouvir a voz das pessoas é essencial;, diz Francisco. ;Também observo a roupa, o cabelo, os olhos etc.; Karen desenvolveu técnica semelhante. ;Tento ao máximo buscar características para reconhecer as pessoas. Me apego bastante a cabelos, vozes e perfumes;, detalha. Já Grüter, o pesquisador alemão, reconhece as pessoas ;pela voz, pelos trejeitos e pelo modo de andar;. ;Quando é uma pessoa que eu conheço há bastante tempo, consigo reconhecê-la pelo rosto também. No meu dia a dia, isso funciona bem a maior parte do tempo, mas, é claro, nem sempre dá certo, o que pode causar algumas situações constrangedoras;, admite.
As situações constrangedoras vão desde o prosopagnóstico ser considerado uma pessoa antipática e esnobe ao passar por conhecidos na rua e não cumprimentá-los até não saber quem é aquele parente que ela não vê há alguns anos. Para Francisco, essa desordem visual poderia prejudicar sua vida como escritor em uma noite de autógrafos, por exemplo. Porém, ele aprendeu a superar essa dificuldade com bom humor. ;Quando vou assinar o livro de qualquer pessoa, pergunto descaradamente: ;Qual é seu nome completo?;. Aí, emendo uma desculpa: ;Na hora em que estou autografando me dá um branco... Nem do nome de meu pai eu me lembraria, se vivo fosse e viesse a essa fila;.;
O mundo irreconhecível
O que é prosopagnosia?
É um distúrbio de imagem que faz com que o cérebro seja incapaz de reconhecer faces
Como se diagnostica?
Com testes neuropsicológicos, como testes de desenhos e questionários, além de exames clínicos por imagem, como ressonância magnética
Esse distúrbio tem algo relacionado a problemas de memória?
Tem, porque a região afetada pelo distúrbio é a área de processamento de face, relacionada à memorização facial
O que pode causar a prosopagnosia?
Traumas encefálicos (como bater a cabeça), derrames, aneurismas, encefalites (inflamações agudas no cérebro), envenenamento, entre outras causas. Os pesquisadores também descobriram que a prosopagnosia pode ser hereditária
Quais são os problemas que podem surgir por causa desse distúrbio?
Descontentamento, isolamento ou distanciamento social. A pessoa pode ficar com vergonha de ter esse problema e se afastar dos outros
Há outras doenças que podem ser confundidas com a prosopagnosia?
A prosopagnosia pode ser confundida com problemas de visão
Existe tratamento?
Como é uma lesão grave, é raro obter resultados notáveis. Se o cérebro da pessoa for estimulado, ela pode conseguir avanços e passar a reconhecer os outros com menos dificuldade
Fonte: neuropsicóloga Nilce Lima