Ciência e Saúde

Voluntários escolhem formas de se relacionar com crianças sem criar vínculo

Fazendo visitas ou doações, eles dão carinho e oferecem melhores condições de vida aos afilhados

postado em 30/08/2011 10:41
Um dos momentos mais marcantes na vida da assistente social Nathália Pedroso, 28 anos, foi quando conheceu o afilhado, Mateus*, em 2007. Para ela, a conexão afetiva entre os dois foi instantânea. ;Eu não o escolhi nem ele me escolheu. Foi um encontro;, define. O menino, hoje com 13 anos, ocupa um espaço único na vida da madrinha, que não é de batismo, mas de coração. Nathália faz parte do projeto de apadrinhamento afetivo da Aconchego, entidade civil sem fins lucrativos, que apoia a adoção e um tipo diferente de se relacionar com crianças: o apadrinhamento afetivo.

O objetivo do apadrinhamento é melhorar a qualidade de vida de crianças em serviços de acolhimento ou em comunidades. Há várias maneiras de ser padrinho ou madrinha. Em algumas instituições, como a Aconchego, o projeto existe para oferecer uma relação familiar a crianças e adolescentes com possibilidade remota de adoção. Nesse caso, o apadrinhamento afetivo estabelece uma relação de amizade entre padrinho e afilhado, como a de Mateus* e Nathália. Outra modalidade é estabelecer o vínculo com a criança por meio de uma ajuda financeira para a comunidade onde ela vive. As opções variam de acordo com a disponibilidade do candidato a padrinho e do trabalho realizado em cada instituição, mas nem todo mundo sabe a diferença entre os projetos.;Antes de conhecer, eu achava que era mais com doação de dinheiro que se apadrinhava uma criança, mas depende do que você está se propondo a fazer; conta Nathália.

Na Aconchego, o principal trabalho é de preparar candidatos a padrinhos afetivos para entrar em contato com a criança. ;A ideia é habilitar as pessoas para a experiência. Algumas confundem com caridade e não fazem ideia de que não é tão simples quanto parece;, explica a coordenadora do apadrinhamento afetivo da instituição, Monique Coelho. A ressalva é para proteger as crianças. ;Antes de se aproximar delas, os candidatos precisam de um preparo que os leva a tomar essa decisão de forma madura e consciente, para evitar um novo abandono para aquela criança;, salienta a coordenadora.

O curso consiste em quatro reuniões de três horas de atividades entre os candidatos. No último dia, acontece o encontro com as crianças, preparado previamente pelos aspirantes a padrinhos. ;É uma coisa incrível. Você vai lá e participa das atividades com todo mundo e, no fim, tem uma criança sentada ao seu lado, que vai fazer parte da sua vida dali em diante; conta Nathália.

Aprendizado
Mas o aprendizado não se encerra com o curso dos padrinhos. Para Nathália e Mateus*, a relação foi construída aos poucos. ;No começo, ele me rejeitava. Estava me testando mesmo, como que esperando para ver até onde eu aguentaria, até abandoná-lo.; Segundo o psicólogo do Instituto São Paulo de Análise do Comportamento e professor do Uniceub Geison Isidro, esse é um comportamento esperado para uma criança em situação de abandono. ;Ela responde como se tivesse sido abandonada pela madrinha. Existe uma desconfiança. Se todos a abandonaram, a criança espera que a madrinha também a abandone. Se quiser, que prove o contrário;, explica.

Para Isidro, um novo incidente tem impacto muito maior em crianças com histórico de abandono e frustração. Mas ele salienta que cada criança tem sua história, e vai agir de acordo com ela. ;Quando se trata de humanos, não podemos prever o comportamento a partir de uma generalização.; No caso de Mateus* e Nathália, a confiança mútua se construiu durante quatro anos. Eles se veem pelo menos uma vez por mês.;Não imagino a minha vida sem ele. Quando penso no futuro, o vejo comigo. E também espero que isso se torne mais comum, mais difundido, ao ponto de praticamente todo mundo ter um afilhado afetivo.;

E isso não depende de tempo ou dinheiro. As diversas modalidades de apadrinhamento estão aí para provar. A servidora pública Aline Fernandes, 42 anos, costumava fazer trabalhos voluntários, mas teve que parar por falta de tempo. Mesmo assim, ela mostra que é possível ter vínculo com uma criança, ainda que a distância. Desde maio de 2009, ela é madrinha da ActionAid, uma organização não governamental que trabalha em mais de 40 países com o objetivo de erradicar a pobreza.

Um dos projetos da entidade é o apadrinhamento, pelo qual o doador mantém um vínculo com a criança de uma das 972 comunidades em que atua. A partir daí, acompanha, por meio de cartas e relatórios semestrais, o crescimento da criança e o progresso da comunidade em que ela vive. Para Aline, ajudar o desenvolvimento da comunidade do afilhado como um todo é uma maneira de ajudá-lo para a vida inteira.;Acredito que surte mais efeito do que uma doação a uma criança no sinal de trânisto. A ação é direcionada, pois a organização cuida para beneficiar o todo.;

Duas vezes ao ano, a ActionAid programa visitas dos doadores aos projetos, como uma forma de estreitar o vínculo dos padrinhos e madrinhas. A contribuição ajuda a financiar, de forma geral, aulas de inclusão digital, reforço escolar, cursos de dança afro e futebol, artesanato e implantação de hortas comunitárias, entre outras atividades. Aline recebe periodicamente mensagens e relatórios desses progressos e uma foto nova do afilhado a cada dois anos. Mesmo de longe, ela acompanha as mudanças na vida dele e fica feliz em se sentir parte disso. ;Fico muito contente com o retorno. Já pensei em conhecer a criança, mas fico satisfeita com o retorno, pois consigo enxergar que contribuo para mudanças.;

Ver essas mudanças é o mais importante para o servidor público Tarcísio Burigo, 51 anos. Para ele, é importante proporcionar para o afilhado as oportunidades que ele teve na vida. ;Eu tive sorte, mas outros não têm. Então, é bom saber que você está se somando a outras pessoas para ajudar aqueles que não tiveram oportunidades;, diz. O que mais influenciou Tarcisio para ser padrinho da ActionAid é saber que sua ajuda produz mudanças e melhorias na vida de uma criança. ;É gratificante receber as respostas, as cartinhas deles, agradecendo. Porque, aí, você vê que aquela criança, que antes não era alfabetizada, agora está escrevendo, estudando.;

*Nome fictício em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente

Para participar
Existem vários tipos de apadrinhamento. Instituições como ActionAid, Visão Mundial, Aconchego e Abrinq oferecem inúmeras modalidades para que o doador decida qual o seu perfil de padrinho.

A distância
Quem não tem muito tempo disponível mas quer manter um vínculo e ajudar comunidades e crianças pode começar a participar do projeto de apadrinhamento pela internet. Ao decidir apadrinhar, o candidato inicia o processo com apenas um clique, escolhendo a forma de pagamento mais conveniente. Em seguida, o padrinho ganha um kit de boas-vindas, com a foto e as informações do afilhado e da comunidade onde ele vive.
Sites: www.actionaid.org.br e www.visaomundial.org.br

Ao vivo
Em Brasília, há o projeto Aconchego, no qual padrinho e afilhado desenvolvem uma relação afetiva de presença mais ativa. Novos candidatos assinam uma lista até serem chamados para a formação de uma turma de formação. Após o término do encontro, o padrinho poderá visitar o afilhado no serviço de acolhimento e, depois de algum tempo, a criança faz passeios fora da instituição, pode dormir fora e fazer viagens em companhia do padrinho.
Site: www.projetoaconchego.org.br

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