Ciência e Saúde

Prêmio de química é dado a cientista que descobriu os quase-cristais

postado em 06/10/2011 09:40 / atualizado em 18/09/2020 17:34

A teimosia ; ou melhor, a firme convicção em suas ideias ; levou Daniel Shechtman (leia a entrevista) a ser ridicularizado pelos colegas. Mas também foi ela que permitiu ao israelense de 70 anos alcançar o topo, o máximo do reconhecimento por sua ciência. O professor do Technion (Instituto Tecnológico de Israel, em Haifa) tornou-se ontem o Prêmio Nobel de Química e receberá 10 milhões de coroas suecas (cerca de R$ 2,7 milhões) das mãos do rei Carl XVI Gustaf, da Suécia, em 10 de dezembro. Na manhã de 8 de abril de 1982, Shechtman exclamou: ;Eyn chaya kazo; (;Não pode haver tal criatura;, em hebraico). Ao observar uma mistura de alumínio e manganês no microscópio de elétron, acabava de descobrir os quase-cristais, estruturas dotadas de uma simetria até então inimaginável. Diante dele, surgiram círculos concêntricos, cada um feito de 10 pontos brilhantes, separados por uma mesma distância. Ao refrigerar rapidamente o metal fundido, ficou ainda mais impressionado. Os átomos acabavam de sofrer um rearranjo, de modo contrário às leis da natureza.

Shechtman (C) reage ao ser saudado por colegas: da rejeição da comunidade científica ao reconhecimento máximo

À época pesquisador do Instituto Nacional de Padrões e de Tecnologia dos Estados Unidos (Nist), em Gaithersburg (Maryland), Shechtman percorreu o corredor em busca de um colega com quem pudesse compartilhar o achado. Como não encontrou ninguém, retornou ao microscópio, girou o material e percebeu que o mesmo exibia uma ;impossível; simetria quíntupla. Quando finalmente contou aos outros cientistas o que havia encontrado, o israelense foi alvo de ceticismo. Todos afirmavam que ele tinha observado um cristal ;gêmeo;. O chefe do laboratório até lhe deu um livro de cristalografia, sugerindo que Shechtman o lesse. O especialista não desistiu de suas ideias e acabou expulso do grupo de pesquisas.

Depois de completar seu pós-doutorado em Technion, o cientista contou com a ajuda do colega Ilen Blech para tentar interpretar o padrão de difração do quase-cristal, a fim de traduzi-lo no modelo de um cristal. No verão de 1984, viu a revista científica Journal of Applied Physics recusar seu artigo sobre o estudo. O físico norte-americano John Cahn e o cristalógrafo francês Denis Gratias refizeram os experimentos de Shechtman e avalizaram sua descoberta. Em novembro de 1984, os três conseguiram emplacar os resultados da pesquisa na Physical Review Letters. O texto caiu como uma bomba no meio científico, por questionar que a estrutura de todos os cristais é dotada de padrões periódicos e repetitivos. Os padrões observados por Shechtman nos quase-cristais jamais se repetiam.

Evidências

Em entrevista ao Correio, por e-mail, o chinês Xiangbing Zeng ; especialista em quase-cristais pela Universidade de Sheffield (Reino Unido) ; destacou a escolha do Nobel de Química. ;A importância da descoberta dos quase-cristais está no fato de que ele era ;proibido; pela lei da cristalografia, segundo a qual um cristal não pode possuir simetria rotacional quíntupla;, explicou. ;São necessárias evidências concretas e coragem verdadeira em alguém que desafia tais doutrinas, aparentemente impecáveis e indestrutíveis no início da década de 1980.;

De acordo com Zeng, o Nobel de Química para Shechtman é o reconhecimento a uma façanha com profundas consequências não apenas na comunidade científica. ;A descoberta também evoca a imaginação e a fascinação do público em geral. Observem as muitas belas imagens de quase-cristais e você entenderá o que eu digo;, sugeriu. ;Eram como os mosaicos do mundo árabe reproduzidos ao nível dos átomos: uma forma regular que jamais se repete;, resumiu o Comitê Nobel.

Durante o anúncio do prêmio, em Estocolmo, Sven Liden ; membro do comitê ; admitiu ontem à imprensa que Shechtman ;reescreveu o primeiro capítulo dos manuais sobre os sólidos;. O israelense mudou completamente a concepção de um sólido para os químicos. Desde seu achado, os cientistas têm sintetizado centenas de quase-cristais em laboratório. Em 2009, eles localizaram pela primeira vez uma forma ;natural; de quase-cristal no Rio Khatyrka, no leste da Rússia. Era a prova incontestável de que Shechtman estava certo.


Veja vídeo com Daniel Shechtman


Único e proibido

Teorema da cristalografia
De acordo com esse teorema, apenas certas simetrias são permitidas: a de um quadrado, a de um retângulo, a de um triângulo ou hexágono, mas não a de um pentágono. Os quase-cristais negam essa lei.

Estrutura atômica dos quase-cristais

Círculos concêntricos compostos cada um por 10 pontos brilhantes separados exatamente pela mesma distância. A disposição do material segue uma ordem regular e obedece a regras matemáticas. Assim como os cristais clássicos, sua estrutura jamais se repetia.

Simetria ;impossível;

Os quase-cristais possuem uma simetria de ordem 10, totalmente incompatível com os conhecimentos científicos e até então considerada impossível. Os cristais só podiam ter simetrias de ordem 2, 3, 4 ou 6. Caso contrário, haveria um caos, com átomos em choques uns contra os outros. Os quase-cristais possuem a simetria rotacional de um icosaedro, similar à de uma bola de futebol.

Aplicações

Por serem extremamente rígidos, resistentes à deformação, adesivos e pobres condutores de calor e de eletricidade, os quase-cristais são usados no revestimento de frigideiras e como material isolante para fios elétricos. Também podem ser encontrados nos aços mais resistentes do mundo, além de serem usados em lâminas de barbear e em agulhas ultrafinas utilizadas em cirurgias nos olhos.

Potenciais

Cientistas também trabalham com os quase-cristais para desenvolver motores a diesel. Eles ainda testam o material em dispositivos emissores de luz, os chamados LEDs.

ENTREVISTA // Daniel Shechtman

Qual foi sua reação ao saber que havia se tornado Nobel de Química?
Bem, assim como para todo mundo, ter ganhado o Prêmio Nobel foi algo impressionante e uma notícia maravilhosa. Eu sinto que me foi dada uma bandeira da grande comunidade de cientistas. São milhares deles, que começaram a estudar os materiais à base de quase-cristais.

Quando e como o senhor fez a descoberta dos quase-cristais?

A descoberta aconteceu em 1982 e foi anunciada em 1984. Então, por que a comunidade (científica) não aceitou a notícia? O Nobel de Química é um grande modo de aceitação, após uma grande onda de rejeição. Isso ocorrerá de forma lenta. As pessoas que não podiam aceitar a descoberta agora se tornaram crentes. É claro que tivemos uma mudança de paradigmas na definição dos cristais. Então, isso é algo honroso para mim.

O que o Nobel representa para o senhor? Qual é o significado da láurea?

O Prêmio Nobel é o máximo reconhecimento por uma façanha científica. É claro que se trata de uma notícia maravilhosa. Tanto para mim quanto para a comunidade científica. Eu espero. Você sabe; A comunidade científica estuda os quase-cristais. É uma grande comunidade, e o prêmio é realmente para a ciência. Eu sou apenas a ponta de lança para muitos cientistas ao redor do mundo.

Como o senhor definiria os quase-cristais, em uma linguagem mais simples?

Isso é definitivamente difícil de se fazer, porque a ciência (dos quase-cristais) é complicada. Eu sugiro que os leitores acessem a internet, pois há muita informação na rede. Também entrem no site do Technion, a minha universidade (www1.technion.ac.il/en). Eu tenho visitas em meu escritório e precisarei falar com elas. No site, há uma grande explicação ali.

Por que os quase-cristais são um tema tão controverso? Por que sua configuração chegou a ser considerada impossível?

Isso aconteceu porque a comunidade científica que estabeleceu a cristalografia trabalhou com a difração dos raios X. E a difração dos raios X é muito acurada. Meus estudos usaram a microscopia de elétrons. Trata-se de uma ferramenta que os cientistas não aceitaram como precisa.

 

Ouça a entrevista

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