Diversão e Arte

Fome de ler

Organizados livremente, dentro e fora das universidades, os clubes dos livros reúnem amantes da literatura que, juntos, discutem e investigam minuciosamente cada título

Nahima Maciel
postado em 31/01/2010 11:23
No prefácio do recém-publicado Palavra e sombra, o crítico Arthur Nestrovski avisa ao leitor: "Se literatura fosse transparente, não seria preciso crítica. Se o mundo fosse transparente, aliás, nem seria preciso literatura. Palavras e coisas coincidiriam de modo absoluto, na luz de uma verdade sem sombra". Mas como, felizmente, não coincidem, é preciso muito mais que a voz de um único crítico para abrir as portas do mundo literário a leitores viciados e curiosos. Muitos não se contentam com a solidão em fechar subitamente a contracapa de um livro depois de semanas mergulhado na história e precisam se desligar aos poucos dos personagens. Assim costumam nascer os clubes de leitura. Há várias modalidades desse tipo de iniciativa, mas uma característica é comum a todas: para participar, é preciso ler o livro e integrar as discussões. O Correio saiu em busca de alguns clubes de leitura de Brasília. As iniciativas são mais frequentes do que se imaginava e mais abertas do que o esperado. Com exceção dos grupos acadêmicos da Universidade de Brasília (UnB), os clubes - ou círculos - recebem qualquer leitor ávido por se envolver um pouco mais na descoberta da literatura. Leitoras compulsivas, as meninas de Bárbara Morais (de óculos) marcam encontro pelo OrkutA universitária Bárbara Morais, 20 anos, e as amigas se classificam como leitoras compulsivas. Nunca tiveram problemas em ler de tudo, especialmente os best-sellers infanto-juvenis, como Harry Potter, Crepúsculo e Senhor dos anéis. Foi, aliás, na comunidade Twilight Obsession, que as meninas se conheceram. Mas elas acharam que já era hora de começar a visitar os clássicos e um clube de leitura seria um bom empurrãozinho. Assim nasceu o Clube de Leitura DF, cuja comunidade no Orkut reúne cerca de 60 pessoas. Nos encontros mesmo, realizados uma vez por mês para discutir o livro selecionado, a média costuma ser de 10 leitores regulares. Ou melhor, leitoras, porque até hoje nenhum menino foi às reuniões. "Acho que os meninos são meio desanimados com isso", especula Beatriz Morais, 13, irmã de Bárbara e mais nova do grupo. "Às vezes, a gente se envolve tanto com um livro que é legal saber o que outras pensam, sentem-se a mesma coisa e da mesma forma", diz Juliana Martins, 18. "Sou viciada em literatura e a única pessoa com quem podia discutir era a Bárbara. Mas só ela não dava, né?", completa Valéria Alves, 20. Pela estante do clube já passaram Mulheres perfeitas (Ira Levin), Persuasão (Jane Austen), Morro dos ventos uivantes (Emily Bronte) e Um estudo em vermelho (Arthur Conan Doyle). As meninas admitem que o cinema pauta um pouco as escolhas. Se tem filme baseado em livro, elas pesquisam para saber se vale a pena, mas nunca deixam a qualidade cair. Tem sempre que ser um clássico - e aí Jane Austen ganhou com folga graças às dezenas de adaptações já feitas de suas obras. A regra é sempre ler o livro antes de ver o filme. E todo mundo concorda que a decepção é certa. "O livro é sempre melhor", diz Fernanda Lopes, 19. Traduções também são evitadas. Não raro as edições originais - se em inglês - circulam pelas mãos das garotas. "Antes, em casa, falavam que era saudável ler. Agora 'é para de comprar livro'", conta Bárbara. O vício pode ser saudável, mas pesa no bolso. Os pais costumam custear o hobby saudável da filha, mas Bárbara não se contenta e reserva também 20% da mesada para comprar livros. O Clube do Livro - DF é aberto e as reuniões são marcadas pelo Orkut, mas para entrar é preciso mandar e-mail ou receber um convite. Contato: clubedolivrodf@gmail.com Roda para o autor O Círculo de Leitura da Pró-Arte foi fundado há mais de duas décadas para reunir as senhoras da sociedade brasiliense interessadas em literatura. O livro é escolhido pela diretora do círculo, Gracia Cantanhede, e o título é publicado no boletim da Pró-Arte, que chega à casa das associadas. Após o tempo consagrado à leitura, uma vez por mês, Gracia organiza palestras para refletir sobre a obra e convida um especialista no tema ou o próprio autor, quando este é de Brasília. "O círculo sempre foi uma das principais atividades da Pró-Arte. Estou sempre de olho quando tem lançamento, um escritor bom. Em 2009, elas leram Milton Hatoum, que ninguém conhecia. Assim, a gente dá a oportunidade para as sócias que têm o hábito de ler e comentar", diz Gracia. "É sempre uma experiência enriquecedora. O mais importante é que a gente entra em contato com obras, fica sabendo de escritores novos e diversos estilos, isso sempre é uma experiência inteligente", completa Iara Camaroca, 62, que ficou muito impressionada com a leitura de A distância entre nós (Thrity Umrigar). No Círculo da Pró-Arte, não há restrição de autores ou temas nem uma linha pré-definida do tipo de literatura a ser estudada pelas associadas. Literatura antiga A característica pode assustar os pretendentes a integrar o Círculo de Estudos Clássicos de Brasília. Obras antigas e, em latim, estão entre os objetivos do grupo fundado por professor Gilson Sobral, professor do Instituto de Letras da UnB. No programa, entram apenas literatura muito antiga - como a grega clássica, por exemplo - e livros antigos escritos em latim. "Mas não tem nenhum pré-requisito para frequentar", avisa Alex Cojorian, diretor do círculo. As inscrições são abertas a todos e os encontros, divididos em duas sessões distintas. Uma é dedicada exclusivamente às obras em latim. A outra, mais acessível e procurada, concentra-se na apresentação das obras antigas. Cada integrante lê o que quiser - desde que se encaixe na definição de literatura escrita em grego e latim até o ano de 1500 - para depois apresentar a obra aos demais. Sófocles, Platão e Aristóteles são os mais visitados pelos leitores. "Nosso objetivo é, fundamentalmente, a cultura clássica para leigos. Leigo é sempre um amador curioso, que já tem um pouco de curiosidade e quer saber mais, ter mais convívio", garante Cojorian. "Esses grupos têm característica peculiar: agregam pessoas de todas as idades, com formações variadas, não têm só gente de literatura, são bem diversificados." Inscrições e participações são gratuitas e o interessado só paga se quiser fazer um dos cursos realizado pelo círculo. Os encontros acontecem nos primeiros e terceiros domingos do mês, sempre às 10h. Contato: circulodebrasilia@gmail.com Atividade intensa e regular As sessões do Clube de Leitura da Câmara dos Deputados costumam ser lotadas. Em sete anos de existência, foram 36 edições, cada uma dedicada a um tema, autor ou literatura de um país escolhido a cada dois meses pelo coordenador Marco Antunes. Neste ano, as leituras serão norteadas pelo aniversário de 50 anos de Brasília, Espanha e as relações entre literatura e futebol. "A Câmara é uma casa em que todos os temas da sociedade precisam estar representados. A gente quer que esse debate nunca desapareça da casa, e o clube é um sistema acessório na formação do servidor. O domínio da linguagem literária é também uma forma de compreensão do mundo", acredita Antunes. Durante os encontros - sempre às sextas-feiras, às 12h -, professores de literatura e escritores ajudam a incrementar os debates enquanto os integrantes expõem suas considerações sobre a obra do mês. "Insisto sempre que a literatura é um fenômeno oral e precisa ser dita, incentivo muito as pessoas a ler em voz alta. Cada um lê um parágrafo, vai parando e faz os comentários", explica Antunes. O grupo é aberto à comunidade e as reuniões acontecem no Espaço Cultural da Câmara dos Deputados. Contato: 3215-8081 Só para acadêmicos O viés acadêmico do Grupo de Leitura ligado ao centro de Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB está tão consolidado que virou curso de extensão. Criado pela professora Regina Dalcastagne há 12 anos, o grupo começou como braço de pesquisa mais abrangente. No cardápio, apenas literatura brasileira contemporânea e hispano-americana. Os participantes - exclusivamente alunos da UnB - encontravam-se para discutir as leituras duas vezes por mês, sempre sob o olhar de um professor. O formato continua, mas a dinâmica mudou um pouco. Apenas alunos da pós e da graduação em letras podem participar. Eventualmente, o grupo aceita alunos de outros cursos e a lotação máxima costuma ser de 30 pessoas. O programa intenso de oito livros por ano pretende cobrir a produção contemporânea brasileira. Em 2009, os alunos leram livros de autores como Samuel Rawet, Ivana Arruda Leite, Marilene Felinto e Sérgio Sant´Anna. "Somos um grupo de estudo e pesquisa, então estamos sempre estudando e discutindo. Um grupo maior, além de contribuir também, recebe a discussão. Às vezes, tem alunos que nunca tinham lido aquele autor. Discutir literatura quanto mais amplidão, mais cabeças e ideias, melhor", diz Suzana Lima, doutoranda em letras, que coordenou o grupo no ano passado.

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