Diversão e Arte

A velha e as histórias do cerrado

Loucas, parteiras, benzedeiras e curandeiras são o mote para a pesquisadora Larissa Malty resgatar as tradições do interior do Brasil

Nahima Maciel
postado em 27/07/2010 07:00 / atualizado em 14/10/2020 11:19

A velha nasceu no Poço, sem beira nem alcance de fundo, um posto de gasolina perto de Águas Emendadas (GO). Lá, pela primeira vez, a pesquisadora Larissa Malty se transformou numa senhora que contava histórias. O público, na época, eram as crianças que participavam de um projeto organizado em parceria com o historiador Paulo Bertran. A velha contava histórias da região enquanto as crianças percorriam as trilhas dos bandeirantes no entorno de Águas Emendadas. Desde então, a ;entidade; não saiu da cabeça de Larissa. Formada em artes cênicas e servidora da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, ela decidiu retomar a velha em um projeto de pesquisa de gestão ambiental iniciado em 2006.

Alumeia - O cerrado que a velha conta De Larissa Malty. LGE, 108 páginas. R$ 29,90. Lançamento em 12 de agosto, às 19h, no Carpe Diem (SCLN 104)Larissa há muito se interessava por parteiras, benzedeiras e curandeiras das comunidades do interior do Brasil. ;Essas senhoras são matriarcas;, explica. Ela retomou o personagem da velha para percorrer várias regiões brasileiras e documentar o universos dessas mulheres. Assim nasceu Alumeia - O cerrado que a velha conta, livro no qual registra a pesquisa e os encontros com figuras centrais em pequenos povoados do país. Travestida de velha e caracterizada como andarilha, Larissa saiu em busca do saber popular que orienta a vida das comunidades.

Para ficar mais próxima desse universo e compreender melhor sua dinâmica, precisou se transformar ; ela também; em uma velha andarilha. ;Sempre fiz pesquisa com teatro antropológico, mas em busca de um teatro que não está dento do teatro, um teatro que acontece com os andarilhos que chegam nas cidades para contar histórias. Eles são personagens reais;, diz. ;Nas aldeias indígenas o teatro não tem um local próprio, um horário certo. Eu queria ver como acontece o teatro fora de hora e fora de espaço. Isso acontece muito no Brasil.;

A pesquisadora também estava interessada no diálogo entre o conhecimento acadêmico e o popular, por isso transformou o projeto em tema de mestrado no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB). Seria, ela acredita, o lugar ideal para aproximar a ciência de um universo no qual a gestão ambiental é uma preocupação natural e consequente.

;Essa velha representa as muitas velhas que questionam nossos paradigmas e nossa forma de valoração dos recursos naturais;, explica. ;Eu não tinha a intenção de catalogar nada. Só queria entender a relação que essas mulheres possuem com a natureza. Se a gente não ver isso, e a gente não tem visto, vamos vender muito barato o nosso país.;

Aceitação
As primeiras visitas às comunidades foram feitas com Larissa transformada em velha. O teatro serviu como acesso para que pudesse registrar a primeira impressão dos encontros. Depois, a pesquisadora acabava por revelar sua identidade. O fato, no entanto, não mudava muita coisa. ;Elas te aceitam como você é;, garante. ;As pessoas têm um respeito pelo que a gente é. Em outros ambientes a gente tem sempre que justificar nossos caminhos. Nessas comunidades a aceitação de quem você é e da sua presença é imediata.; Larissa também reparou que a figura do louco andarilho é recebida com maior naturalidade nessas comunidades do que em ambientes urbanos ou marcados pelo conhecimento acadêmico. A atriz já encarnou a velha e foi barrada em festivais de cultura popular e eventos de universidade porque não queria revelar a identidade. Fazia parte da pesquisa.

Larissa se transforma em velha andarilha para compreender os hábitos de comunidades do interior e descobrir novos personagens (D)No livro, cujo lançamento está marcado para 16 de agosto, Larissa mescla dois tipos de narrativa. A mais formal e acadêmica conta o percurso realizado e investiga os pensamentos e as crenças dos povos do Cerrado. O mito como portador dos fundamentos da sociedade orientou a pesquisadora. Da escuta dos relatos de curandeiras, benzedeiras e parteiras, ela tirou o material para compor sua própria velha e criar uma segunda narrativa, mais poética e coloquial, escrita no ritmo da fala das mulheres que classifica como sábias. ;Esses textos são uma criação coletiva porque é o diálogo entre as velhas que cria o texto;, avisa. Além de fotografias que registram todo o processo de transformação da atriz em velha e os encontros, o livro traz ainda um disco com canções registradas durante a pesquisa com a ajuda do grupo Sons do Cerrado.

Trechos

A velha:

Coloca a semente na cabeça menino,
Que é para ver se pensa melhor.
Coloca a semente nas ideias, pra quando chover,
De repente,
Chuva fina ou chuva grossa,
Você ter ideia boa, menino.
Entre os dois olhos de ver, tem o olho de espiar.
Bota nele essa semente, menino,
Que é pra chuva não perdê viagem
Quando cair na sua cabeça.

O Cerrado é entortado.
Assim meio fora de esquadro
Parece que cresce num rumo
E resolve mudar de lado
E tem um jeito, um cheiro,
Um som que é do cerrado
De um barulhinho comprido,
Dos bichinhos falando de lado antes de ir dormir.
Do vento mexendo com as folhas,
Do rio, que vem fininho, de repente fica alargado.
O Cerrado é entortado.
E tem o povo que beira,
Que beira de todo lado, um povo do pé rachado
Dos pensamento nascente que nem árvore do cerrado
Parece que cresce num rumo
E resolve mudar de lado
Um povo meio entortado
Que sabe o de cumê, o de curar e o de benzer
Que sabe o da viola, sem nunca ter ido pra escola
É um povo que faz questão de fincar o pé no chão,
E olhar bem pro cerrado,
Que é pra ninguém esquecer
Como é bom ser entortado

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