Diversão e Arte

Em livro e CD, Nick Cave transforma as crises de meia-idade em inspiração

postado em 03/10/2010 06:40
Não há como duvidar: Bunny Munro é um canalha. Um vendedor de cosméticos que, amoral e mulherengo, perambula por hotéis baratos como um Casanova decadente. Faz da traição um hábito: enquanto telefona para a mulher, que sofre de depressão, uma prostituta o aguarda na porta do banheiro. ;Ele sente que em algum momento da vida cometeu um erro grave;, explica o narrador. Mas o homem tem corpo fechado para o sentimento de culpa. Esvazia garrafas de conhaque e cartelas de cigarros enquanto a vida se arrasta, sem sentido. Até o dia em que a esposa morre ; e ele começa a ver fantasmas em todo canto.

Esse anti-herói repulsivo (mas humano, e da cabeça aos pés) poderia habitar um livro de Charles Bukowski. Ou uma canção de Lou Reed, porta-voz dos párias e outsiders. Mas ele nasceu da imaginação cinzenta de Nick Cave ; um compositor que, desde o início dos anos 1980, anda à sombra do rock. No livro A morte de Bunny Munro, o australiano de 53 anos criou um personagem que resume os tipos arruinados, condenados, que agonizam nos versos que escreve para as bandas Nick Cave and the Bad Seeds (em atividade desde 1984) e para o Grinderman, o rebento mais recente ; e impertinente ; do compositor.

Por uma coincidência que revela muito sobre as obsessões do roqueiro, o segundo romance de Cave e o segundo disco do Grinderman (que se chama simplesmente Grinderman 2) chegam ao público brasileiro em sincronia. O livro, escrito em 2009, foi lançado pela editora Record. Já o álbum, ainda sem previsão de lançamento no mercado nacional, está à venda nas megastores em edição importada e vazou há uma semana na internet. Juntos, eles esclarecem a ;fórmula; de um estilo que se mantém arisco por três décadas: na literatura e no rock, as crises de meia-idade rejuvenescem a caligrafia furiosa de Cave.

;Não gosto de escrever canções do ponto de vista de pessoas jovens. Isso sempre acaba em desastre;, afirmou, em entrevista ao site Pitchfork. O parentesco entre A morte de Bunny Munro e Grinderman 2 se encontra aí. Obcecados por sexo e à beira da tragédia, os personagens de Grinderman 2 soam como figurantes do livro. ;É um disco dark e malvado. Nada me agrada mais do que incomodar as pessoas;, comentou o cantor, que já morou em São Paulo e hoje reside na Inglaterra. Outra semelhança é que, ao contrário dos discos que compõe para o Bad Seeds, Cave usa o Grinderman como um canal para extravasar uma persona bruta, durona, com um pé na ficção.

Amor e morte
Os temas do álbum, no entanto, remetem ao repertório do Bad Seeds (que segue na ativa e lançou em 2008 o ótimo Dig, Lazarus, dig!). ;Existe humor em tudo o que escrevo, mas é um disco sobre temas sérios: amor e morte, violência e sexo. Eu não gastaria meu tempo compondo uma paródia;, afirmou. O avanço em relação à estreia do projeto ; um quarteto formado por Warren Ellis, Martyn P. Casey e Jim Sclavunos ; está no escopo de uma sonoridade que passa a assimilar elementos de psicodelia setentista, com longos solos de guitarra e escopo de superprodução. A brincadeira ficou séria.

O livro toma um caminho menos extravagante: é narrado com a concisão de um roteiro de cinema. A trama, não à toa, foi concebida para um filme que seria dirigido por John Hillcoat (de A estrada, cuja trilha foi composta por Cave e Warren Ellis). Difícil seria imaginar como os delírios do protagonista ; que vê imagens surreais em qualquer parede de quarto ; ficariam na tela. Elogiado pelos autores Irvine Welsh e Neil Labute, o livro usa cenas curtas, cortantes (algumas delas, com sugestão de trilha sonora) para flagrar os tropeços de um homem mau que, aos poucos, se revela apenas uma pobre alma. Provocador, Cave instiga o público a ouvir o coração dos crápulas ; e a torcer por eles.

A MORTE DE BUNNY MUNRO
De Nick Cave. Tradução de Fabiano Moraes. Editora Record. 352 páginas.
R$ 49,90. ***

GRINDERMAN 2
Segundo disco do Grinderman. Nove faixas, com produção de Nick Launay e Grinderman. Lançamento Anti Records. Importado. ****

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