Diversão e Arte

Diretor premiado em Cannes conta como fez renascer o cinema no Chade

Mahamat-Saleh Haroun saiu ferido do país, aos 18 anos, carregado pelo pai num carrinho de mão

Ricardo Daehn
postado em 18/11/2010 08:00
Rebeldes na fronteira do Sudão com Abéché, cidade do Chade onde Haroun nasceu e rodou seu quarto longa: ;O cinema pertence àqueles que ainda não contaram a própria história nele.; A declaração do diretor africano Mahamat-Saleh Haroun ganha dimensão distinta quando inserido o peso do longa Um homem que grita (prêmio do júri no Festival de Cannes) na trajetória da reconstrução da identidade do Chade, país onde ele nasceu. Sintomático que Haroun tenha vindo ao mundo no ano em que o país, uma ex-colônia francesa, conquistou a independência. À frente do quarto filme, que estreia amanhã em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador (e deve chegar a Brasília em duas semanas), Haroun conta que, mais do que orgulho à nação, o prêmio recebido em Cannes (que há 13 anos não acolhia uma fita africana) azeitou um renascimento do cinema no Chade.

;Quando eu voltei ao país, fui recebido como chefe de Estado, com apresentação do balé nacional, vários bombeiros na rua e medalhas no aeroporto. Não é pela palavra, que comporta demagogia, mas pelo trabalho concreto, que recebemos apoio do governo;, diz o cineasta, em entrevista ao Correio.

Atiçar a consciência nacional e resistir à barbárie da guerra civil movem a arte do cineasta. ;Parece que essa guerra já me matou uma vez. Morri quando, aos 18 anos, me feriram e não pude, temporariamente, andar. Contar parte do Chade nas telas é talvez dizer àqueles mobilizados na guerra amoral, há 45 anos, que estou vivo, sim, e que a câmera é um meio de resistência à tragédia imposta ao nosso povo;, salienta o diretor nascido em Abéché e, há 30 anos, morador da França.

Um homem que grita destaca a ruptura, com lacuna de comunicação, entre um pai (ex-nadador de campeonatos) e um filho (a postos para substituí-lo num emprego menor, em luxuoso hotel). ;O filho não vê humilhação na violência social que foi feita ao pai. A ausência de compaixão, às vezes, é o que mais machuca. O esquecimento até pelos mais próximos causa sofrimento;, destaca Haroun.

Mahamat-Saleh Haroun saiu ferido do país, aos 18 anos, carregado pelo pai num carrinho de mãoNova realidade
O diretor desencoraja um determinismo da atual condição do Chade em relação ao antigo domínio francês. ;Sempre tento interrogar o presente e refletir sobre a responsabilidade dos próprios africanos e sobre as perspectivas que eles mesmos abrem;, comenta. Armar o set na cidade natal, na fronteira com o Sudão (que concentra grupos rebeldes), representou riscos de vida para o outrora expatriado que, ferido em 1979, deixou o Chade, carregado pelo pai num carrinho de mão. ;Filmamos com medo nas tripas, mas com a consciência de que aquelas populações feitas reféns, pelo simples fato de serem filmadas, teriam reacesa a vida. Na próxima vez que eu filmar por lá, pode se preocupar, porque acho que terei problemas;, diz, uma vez que sedimentou as bases para uma nova realidade no Chade.

;Tivemos a criação de um fundo de estímulo à produção, e os frutos de trabalhos feitos há mais de 10 anos se apresentam: meu primeiro filme (Bye Bye Africa), gerado em 15 dias, me levou a interrogar o papel do cinema num país que não tem salas. Agora, tratamos da renovação de pelo menos três salas na capital, Ndjamena;, relata ele, que criou uma empresa de produção para burilar jovens (;com a mão na massa;) e investe no Centro para a Formação das Artes Audiovisuais.

;A cinefilia é algo que coloca todos em pé de igualdade, daí projeto muitos filmes para os alunos se nutrirem do desejo pela carreira. Creio que o neorrealismo, a nouvelle vague e o cinema novo servem de pilares aos cineastas independentes. No Chade, não há técnicos de cinema, por isso contratamos gente da França, da Bélgica e de Burkina Fasso. Eu e os atores somos artesãos: fazemos o trabalho como pequenos padeiros, tudo com o coração;, explica Mahamat-Saleh Haroun.

Enfim, um "filme de cinema"

Sem ter a técnica, ;apenas com a sinceridade;, Youssouf Djaoro (o protagonista de Um homem que grita) foi cogitado para o posto de melhor ator em Cannes, além de ter sido destacado no Festival Internacional Chicago, para o deleite de Mahamat-Saleh Haroun. ;Uma das coisas que mais me comoveram, em Cannes, foi ver Tournée (de Mathieu Amalric) ser dado como um verdadeiro filme de cinema. Depois disso, projetaram o meu filme e as pessoas disseram: ;Está aí um segundo ;filme de cinema;. Isso foi do público: parece que as pessoas se acostumaram a ver filmes de tevê no cinema ou assistir à televisão o tempo todo. A consciência do público quanto ao esplendor da imagem da arte, quanto à narração e ao ritmo interno das cenas foi marcante;, avalia o cineasta.

Ciente de ir na contracorrente do cinema dominante, num andamento de descobertas e que dá tempo de convivência com os personagens, o cineasta revela a falta de apreço pelo que seja hollywoodiano. ;Ao se proporem à experiência do filme de Hollywood, as pessoas agem como se estivessem conscientes de como aquele filme é horrível. Então compram pipoca para sobreviver àquela viagem;, diverte-se.

Ilegitimidade de uma obra ; como no caso do drama africano Hotel Ruanda (feito pelo irlandês Terry George e que guarda leve semelhança com Um homem que grita) ; também o afugenta, enquanto espectador e ainda como possível referência. ;Estou mais próximo do filme mudo A última gargalhada (F. W. Murnau), no qual um porteiro de hotel é dado como velho demais para o serviço. Faço um filme que se quer político, nobre em termos sociais;, descreve.

Estudante de liceu francês (no Chade) no passado, Mahamat-Saleh Haroun ; que, no exterior, sustentou com aulas particulares a família de oito pessoas ; conta que, apesar de filho de diplomata (profissão de pouco ;peso; no país de origem), nunca gozou de regalias. ;Nossa sociedade não é excludente e convivi com bairros populares. Não me sinto em nada como alguém que nasceu com uma colher de ouro na boca;, comenta.

Diante da instabilidade política do Chade, o cineasta (que foi jornalista por breve período) contornou as limitações e soube investir na ida à escola francesa de cinema do qual só tinha um endereço recortado de uma revista. ;Era o único lugar em que podia sonhar e estar;, relembra. Passados 15 anos de profissão, ele coleta feitos como o prêmio especial do júri no Festival de Veneza (com Daratt, 2006) e o prêmio do Júri em Cannes, em 2010.

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