Diversão e Arte

Claudio Queiroz, professor da UnB, fala de arquitetura e de capoeira

Severino Francisco
postado em 30/01/2011 08:00
Com a sua fluência barroca torrencial, o paraibano Claudio Queiroz, professor de arquitetura da UnB e mestre de capoeira, é um defensor apaixonado de Brasília. Estudou arquitetura no Rio de Janeiro, morou na Argélia ; onde trabalhou com Oscar Niemeyer ;, foi superintendente do Iphan e se orgulha de ter sido o primeiro a introduzir o ensino da capoeira nas escolas públicas do DF. Claudio viaja por vários pontos do mundo para falar sobre Brasília, Oscar Niemeyer, Lucio Costa e capoeira. Discutiu, aliás, as duas artes em sua tese de doutorado. Nesta entrevista, ele fala sobre a singularidade da capital, as ameaças à qualidade de vida dos brasilienses e a ginga brasileira.



Arquiteto com ginga


Você é arquiteto e mestre de capoeira. O que capoeira tem a ver com arquitetura?
É engraçado porque em minha tese de doutorado eu discuti a relação entre a capoeira, que é expressão da cultura popular, com a arquitetura, que tem uma forma erudita. O que faz a sofisticação da arquitetura é o fato de não ser um campo de conhecimento em si, mas sim o de ser um território do entre, que o filósofo alemão Heidegger chamou de dasein. Ou seja: a arquitetura é formada pelo diálogo com outros campos de conhecimento, harmoniza áreas contraditórias, as tecnologias, as ciências exatas, a matemática e as belas artes. Com a capoeira ocorre algo semelhante. Capoeira não é só dança, luta ou jogo, mas sim as três coisas interagindo de maneira indissociável, da mesma maneira que, na arquitetura, a estética, a racionalidade e a funcionalidade são indivisíveis.

E o que ocorre quando se rompe com a harmonia dos três elementos da capoeira?
As capoeiras que existiam sem som se acabaram, porque eram brutais. Elas ocorriam quando os índios e caboclos fugiam para as florestas, tentando escapar de um pelotão de bugres comandado pelo capitão do mato, um bandeirante que tinha todas as maldades humanas a serviço de uma empresa. Com a abolição dos escravos, ela foi para os centros urbanos e era violenta. Mas aí caiu no berimbau e no pandeiro árabe na Bahia, o que criou um sistema ético e melódico para a capoeira. Cada sistema de ritmo é uma estratégia de luta, esses mantras transformam qualquer sujeito em um monge budista, que descobre o zen caboclo e se descola da realidade. Tem de aprender o ritmo para jogar a capoeira e, finalmente, o jogador se torna o rimo, se torna intocável. Isso é a capoeira, um produto só nosso.

É mesmo verdade que há muitos estrangeiros apaixonados pela capoeira?
Olha, eu tenho sido convidado para realizar palestras em vários lugares do mundo sobre capoeira. Fiz uma palestra no Trinity College de Dublin e o embaixador avisou: aqui as pessoas não resistem a mais de 40 minutos de palestra. Falei uma hora e quarenta minutos e ninguém saiu. Em Estocolmo, na saída de uma palestra, um rapaz sueco me procurou e disse: ;Vocês vão conquistar o mundo;. Eu respondi a ele que nós não tínhamos nenhuma chance, não produzimos armas de contato e tampouco temos dinheiro para distribuirmos o Prêmio Nobel. Aí, ele disse: ;Mas a cultura de vocês é muito sedutora;. Há mais de 500 capoeiristas só em Estocolmo. Perguntei a um deles como havia aprendido a falar o português e ele me respondeu: ;Cantando, mestre;. Eu disse a ele: ;Mas você não entende o significado das palavras;. E ele me explicou que ;entendia a mandinga;. Talvez a difusão do português esteja crescendo assustadoramente por causa da capoeira. Eles aprendem a cantar, a aplicar os golpes e a falar o português.

Como é a história de que você teria sido guarda-costas do Honestino Guimarães na década de 1960?
Ah, isso era uma brincadeira que a gente fazia. Fui o primeiro professor a dar aula de capoeira nas escolas de Brasília. Era uma época em que Brasília vivia o tempo da nova capital, mas também o do Cinema Novo, o da Bossa nova, com muita intensidade. Dava aulas no colégio Elefante Branco e o Honestino Guimarães aparecia muito por lá para se encontrar com a Marlui Miranda ou a Eliane Menezes (que se casou com o fotógrafo Mário Carneiro). Quando havia passeatas estudantis, eu e o irmão do Honestino brincávamos de ser segurança dele. Mas eu tive de sair de Brasília.

Por quê?
Certo dia, uma pessoa tentou pegar o Honestino, houve um entrevero, fizemos um esparramo na rua, livramos o Honestino, mas nós fomos reconhecidos. Eu tive de ir para o Rio de Janeiro, porque a coisa estava perigosa. O meu pai era militar. Só voltei a Brasília 17 anos depois.

Como você se ligou a Brasília?
Cheguei aqui em 1961, aos 13 anos, vindo de Petrópolis, uma cidade montanhosa e monárquica. Tinha visto recentemente o filme Ben-Hur e aqueles postes inclinados, a perspectiva gigantesca, os prédios dando aquele ritmo me fizeram sentir como o Ben-Hur entrando nos circos romanos. Senti a monumentalidade de Brasília, uma cidade republicana no altiplano central do país. Fui perceber que Brasília não tinha fios, o era formidável para soltar pipa. Brasília é uma imensa pipa no céu gigantesco que é o Brasil.

O que distingue Brasília como cidade?
Tenho três filhos, tivemos dois nascidos na Argélia e uma em Brasília. A minha filha chegou a Brasília com 8 anos e aos 18 foi morar no Rio de Janeiro, em Copacabana, para estudar arquitetura. Ela disse que a maior dificuldade era ver o céu, quando saía de casa, pois ficava com dor no pescoço. E outra coisa que incomodava é que ela tinha de andar como cavalo de xadrez, fazendo uma espécie de ziguezague o tempo todo. É o trajeto de qualquer cidade tradicional. Em Brasília, você anda em qualquer direção.

Mas e do ponto de vista da arquitetura?
Le Corbusier já dizia que a arquitetura é um grande espetáculo de luzes e sombras. E Brasília é isso.

Como vê a clássica crítica de que a arquitetura de Oscar Niemeyer é plástica e escultórica e não funcional?
Discordo completamente e não propriamente por causa do Niemeyer, mas pela arquitetura moderna. Lucio Costa escreveu um texto chamado ;As razões da arquitetura;. Entre outras coisas, o doutor Lucio dizia que as pessoas não percebem a grande diferença do moderno em relação ao clássico. Com ela, o plano livre não está mais subordinado às paredes. É como se fosse um esqueleto solto do corpo. Todo prédio pode ser destituído da função original e assumir outra função. A funcionalidade não está mais fixada nas paredes.

Mas há certos prédios que têm problemas de ventilação, que fazem um calor de rachar;
Quem determinou com muita sabedoria a posição dos edifícios foi o doutor Lucio Costa. Ao colocar os ministérios justapostos lado a lado no eixo leste e oeste, ele criou um espaço de dignidade monumental. Oscar Niemeyer criou os edifícios com espaços vazados, se a janela de cá e de lá estiverem abertas, tem a ventilação cruzada, que é muito importante em clima seco e árido, como é o do Planalto Central. Mas as construções foram erguidas e apropriadas no ritmo de Brasília e, muitas vezes, isso compromete a funcionalidade dos edifícios.

Poderia dar um exemplo?
Reclamam que o cheiro da cozinha do Palácio da Alvorada sobe para os outros andares. Mas ocorre que todos os vidros ficam fechados e eventualmente a cozinha é usada nas recepções. É claro que quando você abre as janelas o cheiro vaza para outros espaços. As pessoas vedam as aberturas superiores e colocam ar-condicionado. Não discordo que essas condições possam ser melhoradas, mas é preciso ver o que de fato ocorreu, pois o princípio da funcionalidade é correto.

O que há de mais belo em Brasília?
Se não tivesse sido escolhida Patrimônio Cultural da Humanidade, a escolha do lugar para a criação de Brasília já mereceria ser distinguida. Achou-se um lugar que está no ponto mais próximo do centro do país, situado em um altiplano, o que se torna um ponto estratégico. A Catedral de São Pedro, em Roma, é o domo da cristandade; Brasília é o domo da brasilidade, o lugar onde nasce uma nova civilização.

Em que medida Brasília pode ser situada como marco de uma nova civilização?
Existe um ditado de que Deus escrevia errado em linhas certas, mas, no nosso caso, escreveu certo em linhas erradas. Lucio Costa dizia que Brasília não tinha mar, mas o céu era o nosso mar. Quando eu era superintendente do Iphan, um grupo de jovens me procurou para saber como era possível tombar o céu de Brasília. E eu disse para eles: é simples, basta garantir a preservação dos padrões de arquitetura da cidade. Os primeiros brasileiros, os brasilíndios e negrilindios, filhos da cunhã indigena com os portugueses e os negros, já pensavam em uma capital no sertão. Brasília é uma resposta a um mito nacional. E me derreto de emoção quando vejo a capital do país ser representada na forma deste grande arco tupi atirando na direção de pássaros do céu. É a própria forma do Plano Piloto.

De que maneira isso acontece?
Essas coisas não vêm do consciente, vêm do inconsciente. Vejo o arco tupi e vejo as formas de latente feminilidade das índias, das baianas ou das jangadeiras, no Palácio da Alvorada ou no Palácio do Planalto. Com isso, a gente entende por que, ao visitar Brasília, o escritor francês André Malraux afirmou que as colunas do Palácio do Alvorada seriam ;cariatides libertárias;. Porque as colunas gregas eram colunas submetidas. Eles invadiram as ilhas de Carie, mataram os homens e deixaram as mulheres para o seu deleite e para perpetuar a raça dos helenos. As nossas colunas são libertárias. Nós somos a utopia de multiculturalismo dos norte-americanos e dos europeus.

Qual o maior desafio de Brasília para manter a sua qualidade de vida?
É preciso evitar que o Plano Piloto seja Washington e as cidades-satélites virem Nova York. Quer dizer, é preciso manter a qualidade de vida do Plano Piloto nas cidades-satélites. Águas Claras é verticalizada. É importante cuidar da saúde, mas o governo do Distrito Federal precisa zelar de Brasília na condição de Patrimônio Cultural da Humanidade. Isso não é algo menor.

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