Diversão e Arte

Livro de Michel Laub reflete a herança do Holocausto

Nahima Maciel
postado em 12/04/2011 10:17

O escritor gaúcho Michel Laub nunca havia pensado em escrever sobre judaísmo até iniciar Diário da queda. Apesar da origem judaica, não sentia, na condição, nenhuma urgência literária. E como não consegue pensar em um livro sem que enxergue nele algo de si mesmo, o judaísmo nunca se apresentara como tema relevante. ;Na minha vida pessoal, esse é um tema muito pouco presente. Mas em algum ponto devo ter percebido que, mesmo sem aparecer na superfície, era algo essencial na minha identidade;, diz. ;E sempre que penso num livro há algo de mim ali. Algo que vai ser torcido e remodelado em função da história a contar, mas que vai continuar existindo.;

Escrito com apoio da Bolsa Funarte, Diário da queda tem muito do próprio Laub. O narrador escreve as memórias em forma de pensamentos curtos e rápidos. Tem como base os diários escritos pelo pai e pelo avô, um sobrevivente de Auschwitz, mas escreve com propósito diferente dos dois. A organização de sua escrita não segue forma cronológica. Ele vai e vem no tempo, repete fatos a partir de diversas perspectivas ; ora como um adolescente, ora como um adulto ; e esmiuça a própria origem judaica.

Quando garoto e estudante de uma escola tradicional judaica, o narrador provoca o acidente de um colega durante uma festa de aniversário. Gói ; palavra usada por judeus para designar não judeus ; , o colega é discriminado por não partilhar a origem dos demais. Sofre sucessivas humilhações e uma delas é a combinação, entre amigos, da queda durante um ritual de comemoração de 13 anos do menino. A maldade poderia ter consequências mais sérias, embora se esgote em algumas costelas quebradas. O narrador, no entanto, faz do acidente ponto de partida para questionar as raízes do mal e traz as reflexões para um universo de culpas e pesos históricos.

Adolescente, despreza a trajetória do avô e não compreende por que o pai insiste em repeti-la. O menino não se sente herdeiro de uma das maiores tragédias do século 20, não aceita estar envolvido nisso e renega o passado da família como mecanismo para construir a própria identidade. ;No fundo, o livro também é o diário do narrador, que é escrito a partir dos diários do pai e do avô, e há também as menções frequentes ao livro do Primo Levi (É isso um homem?). Tudo isso se relaciona com um tema que está presente na obra, relativa ao Holocausto, que é como comunicar ; por escrito, oralmente, enfim ; uma experiência ; de amor, de sofrimento, de ódio ; a quem só conhecerá essa experiência, justamente, por meio do relato.;

É isso um homem? serve de referência para o processo de amadurecimento do garoto e posterior compreensão da herança familiar. O questionamento é duro: depois de Primo Levi narrar o drama de Auschwitz, que mais se poderia dizer a respeito? Mas Laub não tem a intenção de discutir o tema de maneira exaustiva. Na verdade, Holocausto e judaísmo são panos de fundo. O foco é outro. ;O judaísmo, no caso, é a herança cultural transmitida, por meio da qual os sentimentos dos personagens ; amor, ódio, culpa, ressentimento ; manifestam-se. Eu diria que é mais um veículo, quase uma metáfora, do que a essência mesmo da história.;

Herança de ódio
De Michel Laub. Companhia das Letras, 152 páginas. R$ 38,50.No diário do avô, há pouco sobre o fato de ter sobrevivido ao Holocausto. Os verbetes falam do mundo como deveria ser e não dá indicações de como foi realmente a vida do avô, o que irrita no narrador. Ele não entende muito bem a própria origem e briga com o pai por insistir no assunto. Tem ódio da herança que lhe é imposta e arrisca: ;É possível odiar um sobrevivente de Auschwitz? É permitido sentir esse ódio de forma pura, sem que em nenhum momento se caia na tentação de suavizá-la por causa de Auschwitz, sem que se sinta culpa por botar as próprias emoções acima de algo como a lembrança de Auschwitz?;

A essência da história é inventada, mas a leitura sugere que não. Laub é corajoso e astucioso. Quer confundir o leitor. ;O livro é sempre o escritor;, afirma, apesar de não ter avô sobrevivente do Holocausto. Como Laub, o narrador estudou direito na faculdade e optou pelo jornalismo. De propósito, é um autor de relativo sucesso. ;Há uma brincadeira de fazer o narrador ter a mesma profissão que eu para o leitor achar que é tudo verdade. Parece que ele acredita mais assim, o que é bom, porque a primeira tarefa do escritor é convencer o leitor. Como narro em primeira pessoa, facilita a confusão;, avisa. É a maneira de chegar a no tema da memória, essa sim uma espécie de obsessão na literatura do gaúcho.

A memória é matéria essencial. É óbvia no formato diário e menos explícita nas situações vivenciadas pelos personagens. O pai sofre de Alzheimer e o fim das lembranças configura destino certo, enquanto o Holocausto faz parte de uma história coletiva. São perspectivas opostas que Laub sugere e projeta para um futuro, já que o diário do narrador está em construção. ;Meus livros sempre trataram de memória. Esse começou assim também. Em algum momento, percebi que não há assuntos mais ligados ao tema da memória que os do livro: a doença de Alzheimer, que encerra em si a questão da memória individual, biológica, e o Holocausto, que é uma espécie de símbolo ; não o único, mas um dos mais fortes ; da questão da memória histórica, coletiva. A partir daí, direcionei a história para que essa contraposição ficasse mais clara e interessante.;

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