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Livro reúne correspondência inédita de Dom Pedro I com a Marquesa de Santos

postado em 16/04/2011 08:01
Quem ama com verdadeiro amor é franco e sincero, e não teme desavenças quando fala a verdade;, diz ;O Demonão; em carta endereçada a ;Titília;. É o início de mais uma missiva derramada de paixão, enviada a uma mulher enciumada. Poderia ser o desabafo de um casal comum. Mas este é o primeiro parágrafo de uma das 94 cartas escritas pelo imperador Dom Pedro I à sua amante Domitila de Castro, a Marquesa de Santos: um relacionamento tempestuoso, fogoso e que recorta trechos de um momento histórico relevante do Brasil do século 19. O romance, narrado em cartas entre 1823 e 1827, tinha correspondência até então inédita, que só foi encontrada, na íntegra, ano passado, pelo pesquisador paulistano Paulo Rezzutti.

;A data da independência vai continuar sendo a mesma;, brinca o arquiteto e urbanista graduado pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo. Mas afirma: ;Essas cartas lançam novas luzes sobre o perfil de D. Pedro como ser humano, uma pessoa como nós. E também prova que ele não era completamente sujeito à amante: recusa favores e não era um administrador doido, que fazia o que queria;, diz o compilador dos escritos, sobre a descoberta feita no Hispanic Society of America, museu nova-iorquino que cataloga artefatos raros de Espanha, Portugal e América Latina.

A outra face
D. Pedro, nos momentos mais calorosos, assinava como ;O Demonão; ou ;Fogo Foguinho;, e a chamava carinhosamente de ;Titília; ou ;Meu amor.; Dizia-se um amante fiel, devoto, sincero. Mas, nas vezes em que os arroubos de ternura rareavam, dirigia-se solenemente como ;O Imperador; e a tratava apenas como ;Filha; e ;Querida Marquesa;. Domitila era divorciada. Segundo dizem historiadores, conheceu o príncipe regente perto do cemitério dos Aflitos, atual bairro da Liberdade, em São Paulo. Apesar do matrimônio de cinco anos com a arquiduquesa Leopoldina, D. Pedro era dado a aventuras extraconjugais. Uma jura de fidelidade à amada, porém, confirma que o relacionamento foi duradouro: ;Eu já não namoro a ninguém depois que lhe dei minha palavra de honra;, ele escreve na carta de número 50. Pedro I levou Domitila à corte, no Rio de Janeiro, fez dela marquesa e dama da imperatriz Leopoldina. Um escândalo.

A reprodução das 94 mensagens vem numa edição que acrescenta mais 17, com algumas poucas respostas de Domitila, e correção de pequenas imprecisões. Rezzutti se deu ao trabalho de comentar e incluir referentes gramaticais e geográficos em passagens confusas. ;Foi mais fácil achar as cartas do que entender o que elas estavam dizendo. Mesmo depois do livro publicado, algumas coisas estão nebulosas. Você não acha suporte histórico para contextualizar algumas coisas. Transcrever não foi tão complicado, a letra dele não é difícil. O difícil é quando ele muda de humor. Ele era epiléptico, e, em alguns instantes de nervosismo, você percebe a exaltação dele pelo tipo de escrita. A preocupação com ciúmes, questões de Estado;, diz o organizador, que dá como exemplo um trecho da carta n; 6: ;Cumprindo com o prometido, e com os deveres não só de amante, mas até de amigo: lhe dou parte que passei bem; mas sonhei alguns sonhos que me mortificaram, todos relativos à nossa cara Pátria, à qual desejamos sumas venturas. À noite lá irei, e o mais cedo que puder, para ter o gosto de gozar da sua tão amável companhia, e que até se faz precisa para a existência. Deste seu desvelado amante;.

O estudioso recorreu a dicionários da época e relatos de viajantes estrangeiros para decifrar algumas expressões. ;Sege;, por exemplo, na terceira carta é uma ;carruagem pequena, de um só assento.; Na vigésima quarta, ;colaça; significa ;pessoa que compartilhou a mesma ama de leite;.

Mitos
A reunião das correspondências, espera Rezzutti, pode ajudar a reconstruir o passado de D. Pedro e Domitila. ;Quando estava pesquisando, comecei a levantar quais eram as fontes iniciais dos mitos: que ela mandava nele, que ele não ligava para nada. É uma construção que vem quando acaba o império. No segundo reinado, tenta-se fazer uma nova imagem social. Começam a demonizar o antigo reinado, o império. E inicia-se o mito de que ele era um banana e ela, uma aproveitadora;, acredita.

O autor compara o seu trabalho aos livros do jornalista Laurentino Gomes, os best-sellers de não ficção 1808 e 1822. ;O meu é diferente, porque fiz um levantamento de fontes primárias, em cima de material escrito pelo próprio punho do imperador. Não estou denegrindo esses livros, até porque esse que eu fiz nunca encontraria a dimensão assustadora que eles obtiveram. Talvez ficasse apenas em nível acadêmico;, aponta.

Agora, Rezzutti ocupa o seu tempo com um romance sobre a Bucha, sociedade misteriosa da Faculdade de Direito de São Paulo, e uma biografia exclusiva sobre a Marquesa de Santos. ;Ela foi amante dele durante sete anos. Mas D. Pedro morreu em 1834 e ela, em 1867. Tem toda uma história de São Paulo em que ela está envolvida e que não é relatada. Sobre a ajuda que ela dava aos estudantes da Faculdade de Direito, a participação na Guerra do Paraguai, quando chegou a ajudar com dinheiro, armar tropas e hospedar soldados na fazenda que tinha perto do Rio Tietê. A imagem de amante não deixou que tudo isso viesse à tona;, acrescenta o escritor, criador do sebo on-line Bazar das Palavras, voltado a obras raras sobre a história do Brasil.

;Ontem mesmo fiz amor de matrimônio para que hoje, se mecê estiver melhor e com disposição, fazer o nosso amor por devoção. Aceite, meu benzinho, meu amor, meu encanto e meu tudo, o coração constante. Deste seu fiel amante;
O Demonão

;Dê-me recados a sua mãe e a seu pai e a seu mano Carrollos e a Nhá Cândida, agradeça-lhe o cuidado que têm em mim. Se precisas [de] alguma coisa deste aleijado, mandes dizer que ele fará todas as diligências para desempachar como quem é de você seu.;
Fogo Foguinho

;Eu parto esta madrugada e seja-me permitido ainda esta vez beijar as mãos de V. Majestade por meio desta, já que os meus infortúnios, e a minha má estrela, me roubaram o prazer de fazer pessoalmente. Pedirei constantemente ao céu que prospere e faça venturoso ao meu Imperador enquanto a Marquesa de Santos, Senhor, pede por último a V. M. que, esquecendo como ela tantos desgostos, se lembre só mesmo, a despeito das intrigas, que ela em qualquer parte que esteja saberá conservar dignamente o lugar a que V. M. a elevou assim como ela só se lembrará do muito que deve a V. M. Que Deus vigie e proteja como todos precisamos.;
Marquesa de Santos

(Última carta da marquesa para o imperador. Na madrugada de 26 para de 27 agosto de 1829, ela partiu, definitivamente, para o Rio de Janeiro).

Titília e o Demonão
Cartas de D. Pedro I à Marquesa de Santos organizadas por Paulo Rezzutti. Geração Editorial, 356 páginas. R$ 39,90.

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