Diversão e Arte

Em filme, Vladimir Carvalho retrata a geração que transformou a música

postado em 08/05/2011 14:35

O estádio Mané Garrincha havia se transformado num território selvagem, um campo de fúria e rock ;n; roll, quando Vladimir Carvalho entrou nos vestiários com uma câmera. Tropeçou em imagens que ainda provocam certo espanto. ;Parecia uma grande enfermaria;, conta o cineasta. ;Era muita gente machucada, um clima de terror;, lembra. Era 18 de junho de 1988. Minutos antes, no palco de 28 metros, diante de uma multidão indócil, Renato Russo era atacado por um fã, que agarrou o vocalista da Legião Urbana pelas costas. Antes, durante e depois do vendaval, o documentarista estava a postos: conservou as cenas da performance trágica ; e crucial, já que a banda não voltaria a se apresentar por aqui ; como quem protege uma relíquia. ;Quando revi o material, percebi a dimensão toda: aquele momento havia entrado para a história.;
Vladimir Carvalho e Ligocki: filme deve ser lançado no Festival de Paulínia, em São Paulo
Arquivadas por 23 anos, essas e outras ;faixas secretas; finalmente serão desvendadas no documentário Rock Brasília ; Era de ouro. Com lançamento previsto para o início de setembro, o longa-metragem apresenta uma faceta pouco conhecida do diretor: o cronista da arte brasiliense. ;Eu acho que este filme vem completar uma trilogia. Narrei a construção da cidade (em Conterrâneos velhos de guerra, 1991), a invasão dos militares na Universidade de Brasília (Barra 68, 2000) e agora vou à cultura de Brasília;, explica.

Uma aventura instigada pela curiosidade. Em 1987, nas aulas de documentário, os alunos da UnB volta e meia sugeriam o tema. Mas, acima de tudo, havia um certo ruído no ar do cerrado. ;Lembro-me das polêmicas no edifício Radio Center, onde as bandas ensaiavam. O que tinha de médico e advogado reclamando da barulheira...;, conta o paraibano de Itabaiana, há 40 anos em Brasília.

No ano do lançamento do disco Que país é esse, 1987, Vladimir notou que seria impossível ignorar as guitarras. ;Quando pintava alguma coisa, eu ia lá registrar;, lembra. Foi assim, gravando a construção de uma saga, que o diretor colecionou cenas de shows da Legião, do Capital Inicial (na abertura de concerto do Sting) e da Plebe Rude (na boate Zoom, em 1988), além de entrevistas com Renato Russo, Herbert Vianna, Fê e Flávio Lemos. Esse arquivo, de cerca de 10 horas, sustentou os planos de transformar essa pesquisa num documentário para ser exibido nos cinemas.

Mas a maquete só ganhou robustez há dois anos, quando o produtor Marcus Ligocki, de produções como As vidas de Maria e a série de tevê Cidades imaginárias, entrou em cena.

Palco
Na época do tumulto no Mané Garrincha, Ligocki tinha 16 anos. Não foi ao show da Legião. Mas acompanhou de perto ; às vezes, perto demais ; uma fase seguinte do rock brasiliense. Era comum vê-lo carregando equipamentos e dando uma força em shows dos amigos roqueiros. ;Se eu tivesse algum talento para música, com certeza estaria num palco;, comenta. Depois de ler a biografia Renato Russo ; O filho da revolução (Editora Agir, 2009), do jornalista Carlos Marcelo, ele viu na trajetória do cantor uma boa premissa de filme. Telefonou para Vladimir e, só então, descobriu que o diretor nutria o projeto de Rock Brasília. A partir daquele encontro, o filme tomou a velocidade de uma canção punk.
Renato Russo: a história de uma turma que tocava rock
Restaurar e ordenar imagens antigas não era, no entanto, o único objetivo. Com recursos do FAC, Vladimir alternou passado e presente ao entrevistar 30 personalidades, que comentam a influência da geração 1980 ; entre elas, Caetano Veloso e Dinho Ouro Preto. Para afinar o tom da narrativa, Vladimir seguiu um ;conselho; do próprio Renato Russo: contar a história da turma. ;Acho que é um filme bastante simples, sem firulas, narrado da forma mais clara possível;, descreve. ;É uma crônica com lances de saga;, observa. Isso porque, na trajetória dos roqueiros da capital, o diretor vê acordes épicos. Uma odisseia com um quê de Ulisses, o mito grego. ;Eles foram para a batalha, várias batalhas. Esses rapazes nos ensinaram uma lição.;

Elvis e Russo
Quando conversa sobre rock, Vladimir não se arrisca a analisar aspectos técnicos. ;De Mozart a baião, gosto de tudo. Mas não tenho ouvido para música;, avisa. As lembranças sonoras, no entanto, são muitas e longínquas. Nessa jukebox sentimental, cabem Elvis Presley, Bill Haley and the Comets e Jovem Guarda. O pós-punk produzido em Brasília, porém, ganha um enquadramento mais largo ao amplificar a rebeldia e o descontentamento de uma geração que estava lá quando a ditadura militar começou a ruir. ;O protesto político estava no inconsciente deles;, observa. ;Eu os vejo através do filme como vitoriosos. O documentário mostra o fim de um ciclo e o começo de outro. E de uma forma bem positiva, mas sem a babaquice dos otimismos. A luta continua;, decreta.


Com pouco menos de duas horas de duração, o filme já está na fase final de produção. O orçamento, diz o produtor, é modesto, mas ainda não foi fechado. Há imagens, por exemplo, que estão em fase de restauro. A meta, ainda assim, é inscrevê-lo no Festival de Paulínia (SP), em julho. A participação no Festival de Brasília, portanto, está descartada por uma questão comercial: a estratégia é distribuir o longa antes das fitas de ficção Faroeste caboclo, de René Sampaio, e Somos tão jovens, de Antonio Carlos da Fontoura, que investem no legado de Renato Russo.

;Seria uma glória entrar com o filme no Festival de Brasília, mas guardá-lo por tanto tempo iria contra a economia do cinema. Talvez se alguém de bom senso eliminar a exigência tão rígida de ineditismo;, provoca Vladimir, que se diz estimulado por lançar o projeto numa temporada quente para o tema. ;É uma sorte para os três filmes. E pode representar o início de uma nova ;era de ouro; para o rock de Brasília;, prevê.

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