Diversão e Arte

Antologia mostra a perspicácia de Stanislaw Ponte Preta

Severino Francisco
postado em 31/08/2011 08:13

Sérgio Porto é o pai espiritual da turma do Pasquim. Ele encarnou como poucos o melhor espírito crítico carioca e transformou a gozação em um estilo: ;A prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento;. Impôs-se, nas décadas de 1940 a 1950, no momento em que a imprensa do Rio de Janeiro era dominada por uma constelação de craques. As ridicularias, as arrogâncias e o festival de besteiras não passavam impunes por sua verve, que democratizou a inteligência crítica. Sérgio Porto está de volta com a antologia O melhor de Stanislaw Ponte Preta, ilustrada por Jaguar (Ed. José Olympio).

Pseudônimo

O pseudônimo Stanislaw Ponte Preta foi inspirado no personagem Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, por sugestão de Rubem Braga, nos tempos em que ambos trabalhavam no Diário Carioca, uma escola de linguagem coloquial no jornalismo. Culto, inteligente, elegante, alegre e simpático, Sérgio só aceitou usar o pseudônimo para preservar o lado supostamente mais sério de cronista musical e de escritor. No entanto, o personagem, ilustrado pela primeira vez pelo artista plástico Santa Rosa, ganhou vida própria e soterrou as pretensões graves de Sérgio, que se tornou muito popular, com suas frases de efeito: ;Se o Diabo entendesse de mulher, não tinha chifre nem rabo;.

O instinto popular de Sérgio o levou a praticar o humor em várias frentes. ;Uma feijoada só é realmente completa quando tem uma ambulância de plantão.; As suas crônicas têm a estrutura de pequenos contos, escritos numa linguagem coloquial, fluida e fácil, em tom de conversa de bar. Ele criou alguns personagens que se tornaram célebres. A sábia Tia Zulmira, o calhorda Primo Altamirando, o distraído Rosamundo e o retórico Data Vênia foram os mais famosos. Eles se envolvem em situações típicas do cotidiano.

Sérgio se autointitulava mulherólogo e mulherengo. Nunca deixava faltar em sua gaveta o perfume preferido das atrizes de teatro do rebolado. Os colegas de profissão eram, frequentemente, fontes de gozações e de inspiração para as suas criações. Um dos seus alvos preferidos era o colunista Ibrahim Sued, que perpetrava frases como esta ao anunciar o seu programa de televisão:

;Estarei aqui diariamente às terças e às quintas;. Quando o colunista social Jacinto de Thormes lançou, na revista Manchete, ;As 10 mais bem-vestidas;, o gaiato Stanislaw resolveu inventar ;As 10 mais bem despidas; que, em um segundo momento, viraram as ;Certinhas do Lalau;. Na coluna, ele promoveu beldades do teatro rebolado, tais como Virginia Lane, Gina Le Feu, Carmem Verônica. Todo mundo ficava de olho nas ;Certinhas do Lalau;.

Febeapá
Quando o regime militar de 1964 se instalou, Stanislaw inaugurou o Febeapá, Festival de Besteiras que Assola o País. Garimpava notícias bizarras dos donos do poder nos jornais ou as inventava para ridicularizar a prepotência. Segundo Stanislaw, os militares prometiam prender o dramaturgo grego Sófocles, morto há vários séculos, em razão do conteúdo subversivo de suas peças.

Cronista, roteirista, radialista e apresentador de tevê, Sérgio pagou um preço alto pelo sucesso. Era cardíaco e não resistiu à enorme carga de trabalho. Ele morreu de infarto aos 45 anos.

Essa antologia oferece um bom panorama do humor de Sérgio Porto e mostra que ele tem qualidade literária para resistir ao desgaste do tempo. Mas faltou contemplar melhor tanto o Febeapá quanto as belas crônicas sobre futebol para fazer justiça ao título O melhor de Stanislaw Ponte Preta. A perspicácia e a graça de crítico de costumes, no entanto, permanecem vivas: ;Pelo jeito que a coisa vai, logo o terceiro sexo estará em segundo;.

Leia trechos do livro O melhor de Stanislaw Ponte Preta:

À beira-mar

;Deixa eu jogar neles.; O camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais incisivo: ;Não senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não;. O menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: ; Tá certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.; ; Por minha causa?; ; estranhou o chato.;
Mas que casal é aquele?; ;O homem eu não sei; ; respondeu o meninho. ;Mas a mulher é a sua.;

Mulher de borracha
"É, madame, a mulher de borracha para os tímidos é um bom negócio para o comprador e um grande negócio para o fabricante. E a senhora pode ficar certa de uma coisa: essa humanidade anda tão torta que é bem capaz de um camarada com mulher de borracha em casa se apaixonar pela mulher de borracha do vizinho."

Rosamundo no banheiro
;Como é mulher. Nesta porcaria desta casa não tem toalha?; A mulher trouxe a toalha e enfiou a mão pela porta entreaberta do banheiro. Rosamundo, molhado e pelado, quis fazer um agradinho nela e puxou-a pelo braço para dentro do banheiro. E só então morou no vexame. A mulher que puxara era a do vizinho. Rosamundo tinha entrado no apartamento de baixo.

Perfil da Tia Zulmira
Pouco se sabe a respeito dessa ex-condessa prussiana, ex-vedete do Follies Berg;re (coleguinha de Colette), cozinheira da Coluna Prestes, mulher que deslumbrou a Europa com sua beleza, encantou os sábios com a sua ciência e desde menina mostrou-se personalidade de impressionante independência, tendo fugido de casa aos sete anos para aprender as primeiras letras, pois na época as mocinhas ; embora menos insipientes do que hoje ; só começavam a estudar aos 10 anos. Tia Zulmira não resistiu ao nervosismo da espera e, como a genialidade borbulhasse em seu cérebro, deu no pé.


Sentada em sua velha cadeira de balanço ; presente do primeiro marido ; Tia Zulmira tricotava casaquinhos para os órfãos de uma instituição nudista mantida por d. Luz Del Fuego. E foi assim que a encontramos (isto é, encontramos titia), na tarde em que visitamos, no seu velho casarão da Boca do Mato.


Um home e seu complexo
O psicanalista achou aquilo muito estranho, percebeu que estava dainte de um caso de complexo de inferioridade incurável e deu umas pílulas. Mas deu sem nenhuma esperança porque "Z" era tão sincero em seus complexos que chegou a confessar que só se sentia bem numa lata de lixo, ocasião em que pagou a consulta e se atirou pela lixeira do edifício, com um sorriso de superioridade.


Mas mesmo o lixo tem seu valor, embora a Limpeza Pública não saiba. "Z" foi piorando de tal forma que acabou achando que nem como lixo prestava. E ; um dia ; deu-se o trágico e amargo fim: seu complexo chegou ao máximo. Ia sair de casa e, para colocar a gravata, foi até o espelho.


Qual não foi a sua surpresa? Chegou diante do espelho; olhou; e não viu mais ninguém.

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