Diversão e Arte

Esquecida pelo governo do DF e por artistas, Oficina Perdiz enfrenta o fim

postado em 05/10/2011 08:36

Aos 80 anos, José Perdiz acumula dívidas e testemunha a promessa de construção da oficina-teatro se perder no tempo: os dias são ocupados com pequenos consertos

O design moderno e as fachadas imponentes dos prédios que se multiplicam ao redor da comercial 708/709 Norte vão, pouco a pouco, engolindo a frente modesta da oficina do mecânico paulista José Perdiz, quase 80 anos de vida dedicados aos tornos, ás soldas e ao mecenato informal do teatro em Brasília. ;A coisa está ficando feia para o meu lado;, avalia. Os clientes já não surgem como antigamente, atraídos por oficinas informatizadas. O telefone está bloqueado por falta de pagamento e só recebe chamadas. Até a energia elétrica pode ser cortada a qualquer momento. Repleto de vazamentos, o telhado está ainda mais danificado depois que a marquise da construção vizinha avançou três metros sobre o terreno de Perdiz.

O cenário de dificuldades em nada lembra o tempo de glória, em que seu reino de graxa, parafusos e ferragens vivia repletos de atores, figurinos e plateia ; gente que queria um espaço alternativo para mostrar e consumir arte, e foi acolhida pelo mecânico. Para completar o prognóstico negativo, o acordo com a construtora Ipê-Omni, mediado pela Secretaria de Cultura do GDF e pela Promotoria de Defesa do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural (Prodema), para mudar sua oficina-teatro para terreno da 710 Norte está paralisado.

Interessada em expandir e erguer uma área de lazer no espaço onde hoje fica a oficina-teatro, a construtora Ipê-Omni, proprietária do prédio vizinho, aceitou comprar um lote, adaptá-lo às necessidades de Perdiz e transferir seu patrimônio para lá. Mas, recentemente, um mecânico afirmou que utilizava a área destinada à mudança e pediu usucapião. A Ipê-Omni, por sua vez, luta na Justiça pela reintegração de posse. ;Se o processo realmente for adiante, pode levar uns três anos. Estou sugerindo à construtora que providencie outro terreno para transferir o Perdiz. Estou visando a saúde e o bem-estar dele;, afirma o advogado do mecânico, Dennis Mostacatto.

Alheio à discussão jurídica, Perdiz sente falta mesmo é da agitação que o rodeava. ;Tem momentos, à noite, em que fico olhando em volta, dá uma tristeza. Esse lugar era de uma vivacidade;;, relembra. Hoje, as arquibancadas (que ele ergueu com as próprias mãos, em poucas horas) só são ocupadas por tábuas, equipamentos eletrônicos e objetos que faz por encomenda (como uma armação de cenário para um espetáculo).

História de cinema
O teatro nunca foi seu projeto de vida. Num gesto de generosidade, ele cedeu o espaço para que o enteado (filho de sua ex-mulher) encenasse um espetáculo com os colegas da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, em 1975. A peça Esperando Godot, sob a direção de Mangueira Diniz, foi um sucesso, lotou a oficina por três meses. ;Depois, começou uma correria de gente querendo fazer teatro aqui. Dando certo ou não, eles agradeciam e iam embora. Eu decidi: agora vão usar o espaço e pronto. Se der certo, deu. Se não der, paciência. Continuo aqui, trabalhando como torneiro mecânico;, conta.

A iniciativa cultural de Perdiz sempre ganhou eco na classe artística e apoio da imprensa. Nas constantes ameaças de derrubada, as pessoas se mobilizavam e conseguiam evitar o pior. Em setembro de 2002, houve até um cordão humano em torno da oficina. A história de Perdiz foi eternizada em dois curtas-metragens: Oficina Perdiz, de Marcelo Díaz, e Zé(s), que propõe um encontro entre Perdiz e Zé Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina, sob a direção de Piu Gomes. ;Aclamadas e premiadas, as duas produções não conseguiram mudar a situação;, destaca ele.

Hoje, Perdiz vive na oficina e atende, a qualquer hora, clientes e amigos que buscam pequenos consertos. Os artistas, que antes engrossavam o coro de sua devoção ao teatro, quase não aparecem mais. A única preocupação do mecânico é com a filha Júlia, de 14 anos, que vive com sua mulher, no Paranoá.

;É engraçado. Morreu;, desabafa ele, olhando ao redor e referindo-se a oficina-teatro, que já foi destaque nacional no programa Fantástico, da TV Globo. Mas o que foi que morreu? O sonho de ajudar as pessoas a fazerem teatro? ;O sonho do teatro pode se tornar um pesadelo, e já está virando. Mas não há como matar um sonho;, conclui. A Secretaria de Cultura do GDF, por meio da assessoria de imprensa, informa que ;toda manifestação cultural é de extrema importância e deve ser preservada. É preciso, no entanto, observar a legislação vigente;. Ou seja... ainda está em cartaz ;o triste fim da Oficina Perdiz;.

Peleja
Usucapião, derivado do latim, quer dizer ;adquirir pelo uso;. Quando um cidadão usa durante determinado tempo, um bem móvel ou imóvel, tem o direito de requerer sua posse. Existem variados tipo de usucapião previstos em lei. O direito, no entanto, só se aplica a bens privados.
Em 2002, artistas fizeram corrente humana contra a demolição
Sem saída
A Oficina Perdiz sofreu ameaças por estar localizada em área pública. Em 2007, o problema se agravou, quando a construtora começou obras e teve problemas na confecção das marquises, que afetaram o telhado da oficina-teatro. Um ano depois, a Prodema determinou que a empresa deveria providenciar terreno e custear as obras de transferência do espaço.

A hora da sessão coruja

O diário do maldito: o último espetáculo que fez temporada na Oficina Perdiz

O ano de 1991 foi o momento áureo da Oficina Perdiz. Mangueira Diniz voltou a procurá-lo, com o intuito de montar Bella ciao, um marco no teatro brasiliense. Nas contas de Perdiz, a montagem teve 110 apresentações, chegou a fazer sessões extras aos sábados e, pasme, teve sessão agendada (e lotada) às 2h da manhã. ;As pessoas não conseguiam explicar como os teatros de Brasília ficavam vazios e essa oficina miserável lotava. Não é o ambiente, mas a qualidade do trabalho que conta;, ensina o mestre, que, nesse espetáculo, chegou a ajudar na construção dos cenários e até fez uma aparição no papel de um italiano. ;Tinha duas falas. Mas para quem não tem memória, já é um perigo;, brinca.

A última apresentação por lá foi há dois anos, quando o Teatro do Concreto levou ao espaço a peça O diário do maldito. Agora, não há mais como fazer teatro no local por conta da marquise do prédio vizinho que diminuiu o pé-direito, inviabilizando a ;caixa cênica;. Antes, quem chegava lá era acolhido com ou sem dinheiro. ;Sempre tinha um lanche na madrugada. Gastos com energia elétrica e água, então, eu nunca levei em conta;, admite.

Assista vídeos sobre a Oficina Perdiz:

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