Diversão e Arte

Mostra no CCBB apresenta a produção diversificada do cinema tcheco

Ricardo Daehn
postado em 06/10/2011 08:43

Cena do filme Algemas, dirigido por Radim Spacek, atração de hoje na mostra: violência e crise existencial em primeiro plano

;Refletir o passado, de modo poderoso e comunicativo, é um desafio. Obras históricas, em cinema, tendem a soar como algo apagado que se aproxima de um sermão político. Você tem que estar convicto do que queira narrar, quando se propõe a lidar com o público contemporâneo;. Na descrição coerente, em entrevista ao Correio, o diretor tcheco Jan Hrebejk (A rosa de Kawasaki), com filme a ser exibido amanhã, no Centro Cultural Banco do Brasil, dá ideia dos conceitos impressos nos filmes da Mostra de Cinema Tcheco, atração gratuita na capital, a partir de hoje e até o dia 16 de outubro, quando seguirá para São Paulo e Rio de Janeiro.

Um caleidoscópio, que contempla tanto a sólida criação premiada do passado quanto filmes recentes, talvez seja boa metáfora para falar de produção forjada na resistência política de uma República Tcheca reformulada sempre aos fragmentos: unida em 1918, a Tchecoslováquia se desmembrou, pacificamente, em 1992. ;Em 1989, quando o antigo regime comunista faliu, eu tinha 16 anos. Tenho memórias da vida num alojamento comunitário. O cinza era coloração predominante daquela época de entediante atmosfera e de mentiras onipresentes. Algemas, centrado num oficial da polícia secreta, é meu filme que traz essa visão;, explica o diretor Radim Spacek, que assina o longa considerado o melhor de 2010 e que será exibido, hoje, às 20h10.

Numa relação de ;amor e ódio;, ele conta que bebe da fonte de David Lynch e Lars von Trier, além de referendar medalhões do porte de Tarkovsky, Orson Welles, Terrence Malick, Christopher Nolan e Roy Andersson. Algemas lembra o clima do clássico O conformista, com personagens destemperados e violentos, que convivem num clima de insegurança e de totalitarismo próximo ao de A vida dos outros.

;Em criança, fui ator e vi muitos bons diretores em cena, isso além de estudar na conceituada Academia de Filmes de Praga. A solidez do roteiro e a integração da equipe definiram muito do filme, com ênfase na fotografia de Jaromír Kacer;, conta o cineasta. Assumidamente influenciado por Martin Scorsese e pelos irmãos Coen, o diretor sublinha o parentesco com filmes de máfia, em especial Cassino (1995). Subversão, vícios, solidão e insanidade (;pensar cria um abismo em mim;, declara o protagonista) estão no bojo repleto de profundo domínio da linguagem de cinema.

Premiado em múltiplos festivais internacionais, o documentário Marcela (2007), que tem como foco a vida (acompanhada, por décadas) de uma cidadã comum é, ao lado da comédia Solitários (2000) ; palco para o desfile de jovens entregues a niilismo, noitadas de relações passageiras e drogas ;, um interessante modo de ingressar na nova safra do cinema tcheco exposta pelo Centro Cultural Banco do Brasil.

Sem julgamentos

Trabalhando com a porção ator do renomado fotógrafo de guerra Antonin Kratochvil, o cineasta candidato ao Oscar (por Herói acidental) Jan Hrebejk, por sua vez, defende A rosa de Kawasaki (2009). A satisfação com o filme adveio da possibilidade de ;evidenciar a ambiguidade dos personagens e o reflexo da destituição do comunismo;. ;Não nos valemos de predeterminados valores ideológicos ou de julgamento. Sem moralismo e com ótica variada de ângulos foi algo importante de ser feito;, analisa.

Em foco, estão bastidores da família do psiquiatria Pavel, que tem pedestal acadêmico garantido, em decorrência de implicações políticas do passado que o transtorna. Parece ecoar um pensamento de Hrebejk, pois há trecho do filme em que um personagem declara ;gente entediante é pior do que assassina;.

Daí, qualquer comparação com o cinema de Costa-Gavras poderia ser lisonjeira, não fosse a evidente falsa modéstia do tcheco. ;Gavras é alguém por quem sou intimidado, assisti a filmes impressionantes, como Z, A confissão e Missing. São fitas muito engajadas, enquanto as minhas apostam mais na tragicomédia, na poesia pincelada por comédia;, ressalta.

Num recorte amplo, em torno da recente produção tcheca, o autor de A rosa de Kawasaki é categórico: ;Nos notabilizamos pela projeção de Milos Forman, Jiri Menzel e Karel Zeman. Poesia narrativa, foco em personagens comuns e mistura de humor e tragédia estão entre as nossas qualidades. A inventidade brotava da escassez de fundos de estímulo. Temos bons câmeras, músicos e figurinistas. Histórias de forte conteúdo social e tensão dramática não têm mais tanta relevância;.

Mostra Cinema Tcheco

De hoje até 16 de outubro, no CCBB, 30 sessões apresentam um painel da produção, entre 1969 e 2010. Hoje, às 18h, Solitários (comédia de David Ondricek, 2000, 104min). Não recomendado para menores de 14 anos). Às 20h10, Algemas (de Radim Spacek, 2010, 146min. Não recomendado para menores de 14 anos. Entrada franca, sujeita à lotação da sala.

Jan Hrebejk, o diretor de A rosa de Kawasaki, destaque de amanhãTradição cinematográfica

Termômetro mais vistoso, se levada em conta a escala na aldeia global, o Oscar demarca a relevância da cinematografia tcheca: até hoje, nove indicações ao prêmio foram conferidas, na categoria de melhor filme estrangeiro. Pioneira (ao lado de Melina Mercouri e Sophia Loren), a atriz teatral Ida Kaminska (a Fernanda Montenegro da antiga Tchecoslováquia) cravou até indicação à intérprete, no premiado A pequena loja da rua principal (1965). Passados 30 anos, depois da coroação de Trens estritamente vigiados (1967), um novo reconhecimento veio com Kolya ; Uma lição de amor (escalado para a mostra no CCBB).

Situado em período posterior à severa intervenção da União Soviética (1968) que sufocou a conjuntura da Primavera de Praga (1966), tentativa fracassada de amenizar a ação dos comunistas (no poder desde 1948), Kolya dialoga com a abertura cultural, situada no rastro da revisão a obras de Beckett e de Kafka; das criações de Milan Kundera e da constituição de um cinema no qual despontaram nomes como Ján Kádar (A pequena loja) e Vera Chytilová (Daisies), preocupados com uma juventude à deriva.

Traços de vanguarda vieram, por sinal, e deram relevância internacional a filmes com prestígio próximo aos da ;nova onda; do cinema francês dos anos de 1960. Saídos da Famu (Academia de Filmes de Praga), diretores impostos ao exílio, como Milos Forman ; notabilizado por filmes como Um estranho no ninho; Os amores de uma loura e O baile dos bombeiros (candidato ao Oscar e incluído na mostra do CCBB) ; responderam pelo consistente escudo democrático.

Num painel em que o cinema tcheco havia sido nacionalizado, em 1945, passada a invasão alemã (pelo segundo conflito mundial) que refreou a produção de longas, o segmento dos filmes de animação (com escolas sediadas em Praga e em Gottwald), acalmou ânimos com obras assinadas por Jiri Trnka (por vezes comparado a Disney) e Jan Svankmajer, num artifício crítico repetido no tumultuo político de 1969.

Na mostra do CCBB, a tradição do cinema de animação está em fitas como Pequeno grilo e cachorrinho, Aventuras da toupeira e no bloco de filmes atuais de estudantes, em Expressa-se. Tantos avanços no ramo do cinema, não à toa, se deram na terra natal do fisiologista Johannes Purkinje (pioneiro nos estudos do olho e da visão) e do técnico Ferdinand Durst, responsável pelas bases dos processos de captação da imagem. (RD)

Três perguntas // Marek Najbrt

Sobreposição das censuras alemã e tcheca, judeus restritos a passeios por cemitérios e um dilema intenso para o protagonista Emil (Marek Daniel) são parte de Protetor (2009), fita de Marek Najbrt, detida no controle germânico sobre a atual República Tcheca. Concentrando mais de um terço dos 700 cinemas do império autro-húngaro, o território tcheco abriga a trama em torno de platinada atriz, que, ano após ano, caminha em corda bamba, pela origem judia. O tema denso, entretanto, não desencoraja o diretor de piadas, como a ligada à suposta traição. O marido diz: ;Ele estava com as mãos em você; . Ao que, a atriz dispara: ;No cinema, isso não quer dizer nada.;

Por que resistiu a retratar a violência na tela, legítima para trama na Segunda Guerra?

Durante a ocupação, os alemães cometeram muitas atrocidades. Nosso objetivo com o filme é contar mais sobre a violência escondida e sobre a pressão que qualquer regime totalitário impõe sobre cada pessoa. Nossos heróis, na maior parte da história, não sofrem tanto fisicamente, mas a psiquê e os comportamentos são distorcidos devido a circunstâncias históricas. Isso muda, fundamentalmente, as vidas delas.

O que foi mais duro, na reabertura de feridas de uma nação?

O período da Segunda Guerra ainda tem reflexo na sociedade tcheca e nos pensamentos dela. Muitas pessoas estão convencidas de que se trata de um antigo passado que não precisa ser mais analisado ;, um erro fundamental. Praga dos anos 1930 é muito parecida em vários aspectos à cidade atual: uma cidade cheia de arquitetura moderna e de pessoas com pensamentos avançados. Pessoalmente, estou convencido de que o homem precisa conhecer e explorar a sua história, embora, infelizmente, isso não exclua a possibilidade da repetição de erros e excessos.

Como está a produção atual no país?

Na primeira década depois da Revolução de Veludo (a partir de 1989, e que culminou com a cisão entre Eslováquia e República Tcheca), testemunhamos o fim da interferência do Estado na produção, bem como a instauração do cinema independente. Foi um período de experimentação, confusão e alguns sucessos, algo tragicômico. Mais estabilizada, a produção contemporânea tende ao drama, na linha de Protetor.

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