Diversão e Arte

Prostituta formada em letras narra em livro experiências com clientes

Lola Benvenutti escreveu "O prazer é todo nosso" a partir de vivências reunidas em blog com postagens sobre a própria trajetória

Tiago Barbosa
postado em 10/08/2014 20:48

Formada em letras e mestranda, Lola estuda propostas para adaptar história ao teatro e ao cinema

Na antessala da maioridade, a estudante Gabriela Natalia da Silva tomou uma decisão no mínimo inusitada para dar vazão ao desejo sexual nutrido desde a infância: adotou um codinome e resolveu cobrar dinheiro para transar. Era o passo mais ousado de um apetite libidinoso com o qual havia perdido a virgindade aos 11 anos em uma transa com um homem de 30 conhecido pelo bate-papo na web. "Eu caçava uns caras na internet que achava que não tinham ;perfil de assassino;. Me descobri muito cedo sexualmente e decidi cobrar. Já tinha curiosidade, era um processo natural", descreve (leia entrevista abaixo). Lola Benvenutti seguiu adiante na cruzada pelo prazer. Criou um blog e passou a relatar as experiências com os clientes. Angariou fãs, fama e reuniu a vivência em O prazer é todo nosso (Editora Mosarte, R$ 33,90, 169 páginas), lançado nesta segunda-feira (11).

Formada em letras pela Universidade Federal de São Carlos (SP), a mestranda Gabriela ampliou a lista de garotas de programa cujas experiências acabaram narradas em livro. O caso mais notável no Brasil atende por Bruna Surfistinha (nome de guerra de Raquel Pacheco), inspiração para o filme homônimo estrelado por Deborah Secco e autora do depoimento biográfico O doce veneno do escorpião. Somam-se ao grupo a ativista brasileira pelos direitos da prostituição Gabriela Leite, a prostituta brasileira com experiência em Portugal Paula Lee, a portuguesa Maria Porto, além das irmãs holandesas Fokkens, gêmeas referências no assunto aos 70 anos (veja abaixo). Entre a internet e a vida real, todas encontraram nas letras o modo de levar aos quatro cantos do mundo os devaneios vividos entre quatro paredes.

As histórias de Lola frutificaram na internet, o paraíso fértil do interesse sexual onde uma em cada quatro pesquisas se referem a sexo e 12% dos sites existentes contêm pornografia - como atestou pesquisa divulgada pela revista norte-americana The Week em março. Os relatos se particularizam pela defesa da prostituição como meio para extravasar a sexualidade. A prostituta foge do estereótipo de ter escolhido a profissão como obra de traumas, falta de oportunidades ou golpe sócio-econômico. Filha de ex-militar e ex-enfermeira, ela bagunça o preconceito sobre a ocupação ao trocar vida acadêmica por deleites na cama: "Não trato a prostituição como um fardo. O sexo torna a pessoa muito melhor", crava.

Em O prazer é todo nosso, a escritora descreve encontros, distribui conselhos amorosos e sexuais, comenta traços e trejeitos de clientes. O tom é quase professoral. E há uma evidente preocupação em extrair prazer de qualquer situação: no striptease masculino, diante de clientes não atraentes ou até de indecisos quanto à própria sexualidade. A linguagem simples e o passeio por dúvidas cotidanas - muitos a procuram para fazer perguntas - aproximam o leitor da prostituição.

"Livros assim mostram o outro lado da história. Até se forem inventadas, aumentadas, é uma voz", pondera a coordenadora-geral da Associação das Profissionais do Sexo de Pernambuco, Nanci Feijó. "É uma forma de elas se tornarem melhores dos que as que não têm como se embrenharem pelo caminho, o das letras", contrapõe a doutora em antropologia pela UFPE Cecília Patrício, de um grupo de estudo sobre Família, Gênero e Sexualidade.

Acostumada a gerar reações pela profissão escolhida, Lola, aos 22 anos, foca na carreira enquanto se decide entre propostas para levar a história ao cinema ou teatro. Dona de um apartamento nos Jardins, bairro rico em São Paulo, pretende continuar com os atendimentos e o blog: "Graças à minha profissão de puta, escrevi o livro. Juntei minhas duas paixões: sexo e literatura". Pelo visto, a fome sexual está longe se ser saciada.

Lola Benvenutti escreveu

ENTREVISTA // Lola Benvenutti

Como foi a escolha da profissão?
Foi natural. Sempre tive uma visão romântica da profissão. E sempre gostei muito do assunto. Me descobri cedo sexualmente. Aí, decidi cobrar. Já tinha curiosidade. Eu caçava homens na internet que não tinham perfil de assassino. Mas tive muita sorte. Nunca me aconteceu nada de ruim. Lembro até da primeira vez, vestia uma calça jeans, não sei como não correram. Eu já tinha defendido meu trabalho de conclusão de curso, decidi criar o blog. Sabia que sofreria preconceito.

E sofreu?
Quem estava afastado não se aproximou. A gente é criado para não achar isso normal. Para a minha mãe, foi difícil. Um professor chegou a publicar um poema no Facebook, dizendo que eu fazia por dinheiro, que grandes intelectuais não se importam com dinheiro, que não era inteligente. Uma mulher com cujo marido saí riscou meu carro. Dia desses, quase era barrada em um bar por ser prostituta. Ser puta é uma luta diária. Você tem que estar armada sempre.

O livro permitiu falar disso?
Vejo-o como uma chance de ser vista como pessoa séria. Não trato a prostituição como fardo. O sexo torna a pessoa melhor. Nele, discuto sexualidade, tenho carinho pelos seres humanos. Acredito que nem toda prostituta é vitimizada. Mas as pessoas tratam de forma deprimente, e as garotas se convencem disso, não se aceitam. Os filhos acabam oprimidos na escola, sofrem. Não enxergo assim. Para mim, foi um modo de realizar minhas vontades.

A prostituição é importante?

A prostituta é fundamental para a ordem social. O cara vai para a casa mais calmo. É alguém que não vai tomar o homem da mulher. Não quer ser amante.

TRECHO DO LIVRO

Bê-á-bá do prazer

Lola Benvenutti escreveu Um dia recebi uma ligação de uma mulher casada que foi bem direta comigo: ; Lola, nunca tive um orgasmo. Pode me ajudar nisso? Esta é uma situação que acontece com frequência, pois muitas mulheres me procuram buscando resolver tal dificuldade. Antes de tudo, preciso dizer que cada corpo é único. Cada mulher sente a relação sexual de uma maneira particular, a partir de sua história pessoal, de sua relação com seu parceiro, do ambiente ao redor, etc. Nesse sentido, a excitação feminina depende de vários fatores ligados ao ato sexual e o fator emocional é muito importante.

A expectativa criada para se ter um orgasmo, por exemplo, pode gerar ansiedade, impedindo que a relação aconteça de maneira natural, espontânea. Sobre o orgasmo, o que posso dizer é que ele, independentemente se sentido por homens ou mulheres, é indecifrável e isso não é clichê. Ele é visto como o ápice da excitação sexual, o resultado de uma série de reações corporais. Mas para que aconteça, é preciso haver uma entrega total da pessoa, sem nenhum tipo de resistência. Digo isso, pois o bloqueio sexual, e mesmo a rejeição da sexualidade, pode estar relacionado a algum fator de ordem moral também.

Por isso, quando se trata de sexo, é muito importante não haver julgamento, crítica ou repreensão. Ao contrário, o momento da relação sexual precisa ser encarado com naturalidade, como um jogo onde todas as fantasias são permitidas a fim de construir um ambiente favorável para a relação sexual. Daí a importância de se conhecer o próprio corpo e da habilidade do parceiro de perceber as reações do corpo feminino e saber estimulá-lo. Além disso, uma boa preliminar é sempre estimulante.

- OUTRAS PROSTITUTAS ESCRITORAS //

Lola Benvenutti escreveu

1 - Gabriela Leite
Apontada como a principal ativista pelos direitos da prostituição no país. Socióloga e prostituta, trabalhou em redutos boêmios de São Paulo e Minas Gerais. Fundou a ONG Davida, a Daspu e a Rede Brasileira de Prostitutas. Escreveu Filha, mãe, avó e puta (Objetiva, R$ 41,90) . Morreu em 2013, aos 62 anos.

2 - Paula Lee
Brasileira foi prostituta em Portugal e permaneceu na carreira quando regressou ao país. Fez périplo por boates, passou a relatar as experiências em blog e lançou o livro Alugo meu corpo (Planeta do Brasil, R$ 39,90), sobre a trajetória.

3 - Raquel Pacheco
Com o codinome Bruna Surfistinha, saiu da casa dos pais adotivos e virou prostituta. Narrou experiências em blog, estrelou filmes pornográficos e publicou O doce veneno do escorpião (Panda Books, R$ 35,90). Filme baseado na vida dela foi o terceiro em bilheteria entre os nacionais de 2011.

4 - Martine e Louise Fokken
As irmãs holandesas trabalharam no bairro da Luz Vermelha, reduto da prostituição no país, onde a prática é regulamentada. Em As senhoritas de Amsterdã (L, R$ 39,90), duas das mais antigas prostitutas em atividade no local descrevem as experiências de mais de 50 anos na labuta.

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