Diversão e Arte

Cineasta chinês fala sobre estreia com linguagem renovada nas telonas

Cotado para receber o prêmio de melhor diretor do Festival de Cannes, Jia Zhang-Ke fala ao Correio sobre sua estética muito particular

Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio
postado em 23/05/2015 17:18
Jia Zhang-Ke (C) com as atrizes Zhao Tao (E) e Chang Sylvia durante o Festival de Cannes
Cannes ;Termina amanhã o 68; Festival de Cannes e, entre os favoritos a prêmios, reside um único título com CEP asiático, o drama made in China Mountains may depart, cujo diretor, Jia Zhang-Ke, é encarado pela crítica mundial como um dos responsáveis pela renovação da linguagem audiovisual. Com sua estética em tom de crônica social muito particular, ao mesclar realidade e ficção, numa distensão do tempo, o chinês de 44 anos foi tema de um recente documentário brasileiro dirigido por seu amigo mais famoso, o cineasta carioca Walter Salles: Jia Zhang-Ke: um homem de Fenyang, previsto para setembro nas salas brasileiras. Ao mesmo tempo, o novo longa-metragem de Jia ; centrado num período de 25 anos de três personagens envolvidos num triângulo amoroso ; deve aportar nas telas brasileiras via Festival do Rio e Mostra de São Paulo. Nesta entrevista exclusiva ao Correio, o realizador de produções premiadas como Plataforma (2000) e Um toque de pecado (2013) fala das transformações da China contemporânea e explica por que seguiu um caminho para o terreno dos melodramas.

Entrevista Jia Zhang-Ke


No bolão de apostas para os prêmios de Cannes, que serão anunciados amanhã, seu nome é o mais cotado para a categoria de melhor diretor. E essa vitória pode consolidar um dos movimentos mais radicais da sua obra, no qual você trafega para a seara do melodrama. Por que esse movimento?
Porque o tempo está passando e eu estou ficando mais velho, o que me dá mais distanciamento em torno do meu próprio processo e dos meus anseios. Um destes anseios é falar sobre emoções. Antes, meu cinema era construído em forma de crônicas sobre a relação do indivíduo versus a sociedade ou do indivíduo em contraste com a natureza. Chegou a hora de eu falar sobre o choque do indivíduo contra indivíduo e ver como isso reverbera sobre as emoções. E como meus filmes precisam compreender os meandros do tempo, observando a sinuosidade de seus movimentos, fica mais fácil perceber o quanto a emoção de um conflito pode transformar uma pessoa ao longo dos anos.

Por isso a trama do filme acompanha sua personagem central, Tao (vivida pela atriz Zhao Tao), de 1999 até idos de 2020, num futuro imaginário?
Essa ideia de futuro vem do desejo de refletir sobre o quanto o vício do consumismo é capaz de seguir uma pessoa ao longo dos anos, como um fantasma. Parece estranho eu falar sobre as sequelas do consumo desenfreado. Mas, neste caso, tentei algo alegórico e fazer a projeção para daqui a alguns anos da atitude de Tao em abrir mão de seu filho e deixar o menino ser criado pelo pai rico para que ele tenha uma vida melhor. Mas será que esta noção de ;melhor; representada pelo conforto que o dinheiro trás é mais significativa que a presença de uma figura materna na formação de uma pessoa. Foi por isso que a chave do melodrama girou na minha cabeça e ligou o motor de um painel sobre gerações. O cuidado foi apenas não representar o futuro como uma ficção científica: meu futuro é logo ali, real.

Essa noção do que é o real é clara para você no ato de filmar?
Como eu tenho muita liberdade criativa, por ser o autor dos meus filmes, posso fazer o tráfego entre documentário e ficção com muita facilidade porque as escolhas estéticas dependem apenas de mim e da minha equipe. E enxergo uma organicidade plena na proximidade entre os dois. A complementaridade é total no meu olhar. Veja: a trama de Mountains may depart começa no fim dos anos 1990, período em que adquiri minha primeira câmera Mini-DV. Aquele brinquedinho me deu muita autonomia para filmar à vontade, sem preocupação com película. Logo, gravei muita, muita coisa mesmo sobre as festas chinesas e sobre o agito dos jovens como eu, ou ainda mais moços. Aquelas imagens estão na tela, retrabalhadas. E as que não estão serviram de base para a encenação. Se eu não tivesse essa verve documental, meus diálogos nos roteiros teriam muita precariedade. A qualidade que meus diálogos têm não se devem a mim e sim à observação de como e do que as pessoas falam nas ruas do meu país.

Você falou em roteiro e foi justamente nesta categoria ; melhor roteiro ; que você saiu daqui de Cannes premiado em 2013, com Um toque de pecado, por um júri presidido por Steven Spielberg. Mas curiosamente o filme não teve lançamento oficial na China. O que houve?

Problemas internos do país. Mas o contraditório é o fato de que as pessoas na China viram o filme de maneira não-oficial, em DVDs piratas ou em dowloads ilegais. Em cidadezinhas pequenas, do interior, ele chegou a passar na TV a cabo. Esta é a minha China.

E como é Fenyang, sua cidade-natal retratada em seus trabalhos, inclusive em Mountains may depart?
Eu preciso dela porque, na atual geopolítica da China, ali é um lugar no meio do caminho entre as grandes metrópoles e as cidadezinhas rurais. Ou seja, é o caminho do meio, entre a pós-modernidade e a tradição. Isso é tudo o que eu mais procuro.

O Brasil vai ver, em setembro, Jia Zhang-Ke: um homem de Fenyang, que Walter Salles fez sobre você. Qual é sua expectativa diante do documentário dele?

A expectativa é poder voltar ao Brasil para rever meu amigo. Aqui em Cannes, foi tudo muito rápido com ele.

"Essa ideia de futuro vem do desejo de refletir sobre o quanto o vício do consumismo é capaz de seguir uma pessoa ao longo dos anos"
Jia Zhang-Ke, diretor de cinema

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