Diversão e Arte

Novo livro de Ruy Castro traça a história do samba-canção

O gênero nunca recebeu muita atenção dos historiadores da música brasileira

Nahima Maciel
postado em 24/11/2015 07:30

As boates tinham ambiente intimista próprio para dançar a dois

Uma coleção de edições da revista Manchete publicadas na década de 1950 foi o início de uma ideia que consumiu três anos de pesquisa e resultou no livro A noite do meu bem. A obra mais recente de Ruy Castro narra o surgimento do samba-canção, um gênero que, segundo o autor, nunca recebeu a devida atenção dos historiadores da música brasileira. O ano de 1946 é o escolhido por Castro para dar início à saga de um estilo onipresente na produção nacional do século 20.

Quando o então presidente Eurico Gaspar Dutra decidiu fechar de vez os cassinos brasileiros, sem saber, também deu o tiro de partida para a criação de um novo modo de vida social noturna do qual o Rio de Janeiro seria a capital. Nascida como alternativa aos cassinos, a boate viria a ser o palco de excelência do samba-canção e por ela desfilariam os grandes nomes da música nacional. Ali, não haveria espaço (nem dinheiro) para as orquestras típicas dos cassinos. O ambiente intimista e o palco pequeno que comportava, no máximo, um piano, uma bateria e um contrabaixo, além do cantor, se tornariam a marca de uma era. Na boate, era possível ouvir música, conversar, dançar, beber e comer.

Negócios, relacionamentos e decisões políticas eram tomadas em um ambiente pelo qual circulava a alta sociedade carioca. Eram três os pontos nevrálgicos desse circuito: o Golden Room do Copacabana Palace, a Vogue e, já no final do ciclo, a Sacha;s. É a partir do perfil do público dessas boates e de seu pessoal ; o que incluía desde chefs e garçons até compositores e cantores do naipe de Dalva de Oliveira, Linda Batista, Nora Ney, Emilinha Borba, Dolores Duran e Dick Farney ; que Ruy Castro constrói A noite do meu bem. Além de contar a história do nascimento de cerca de 600 sambas-canção compostos entre 1946 e 1965, o autor faz também uma verdadeira etnografia da grã-finagem do Rio de Janeiro da época.

O gênero nunca recebeu muita atenção dos historiadores da música brasileira ENTREVISTA // RUY CASTRO

Por que, na sua opinião, a historiografia teria desprezado com o samba-canção?
O samba-canção era uma coisa tão onipresente na música brasileira! Durante toda a segunda metade dos anos 1940 e quase todos os anos 1950 foi o ritmo dominante na música brasileira. Mas ele não constituiu um movimento, não havia uma campanha pelo samba-canção, ele apenas existia de maneira avassaladora. O próprio baião, que começou mais ou menos depois da guerra, era uma coisa que mobilizava as pessoas, era como se fosse uma novidade. Depois veio a bossa nova, natural dos anos 1950, constituindo uma parte desse movimento. O samba-canção não era um movimento, era apenas a música mais popular do Brasil, ele se confundia com a música brasileira de modo geral. Por isso foi meio ignorado pelos historiadores. Você tem história de tudo na música brasileira: do samba, do samba-enredo, da marchinha de carnaval, uma bibliografia monumental sobre a bossa nova, muita coisa sobre jovem guarda, tropicalismo, mangue beat, rock. Não tinha um sobre o samba-canção.

E isso porque vai de Dalva até hoje;
Você vê: aquele tesouro de canções, um patrimônio musical que o samba-canção deu ao Brasil, foi ignorado até hoje. Como pode?

Você também faz uma espécie de etnografia da grã-finagem no Rio. Por que isso é importante?
Etnografia é exatamente a palavra que deve ser usada. O etnógrafo, geralmente, é um estudioso de povos primitivos, observa costumes, se mete no meio daquela comunidade e fica tomando nota de tudo, de como comem, o que comem, como bebem, como se comportam, como são suas mulheres, quais são seus rituais. De fato, é como se eu tivesse feito uma etnografia da noite e da grã-finagem. É como se estivesse estudando os xavantes, só que no Vogue: o que comiam, o que bebiam, como essa ou aquela bebida foi incorporada aos costumes, as roupas, a própria moral, inteiramente particular entre aquelas pessoas, sem cobrança, sem estresse, sem dramalhão. Todo mundo tinha por volta de 30 anos, todo mundo bem de vida ou rico, bonito, bem vestido, elegante, sofisticado e todo mundo sedutor. Como não ia rolar uma série de coisas entre essas pessoas que formavam um grupo comparativamente reduzido. E tudo isso ao som dessa música e nesse ambiente que parece ter nascido como habitat ideal para essa trilha sonora.


O samba canção juntou diferentes camadas sociais em um mesmo espaço noturno e boêmio?
Perfeitamente. Essa coisa de a historiografia musical brasileira ignorar o samba-canção, será que seria por um preconceito? Porque o samba-canção é música de elite, de ricos, de boate? Em que você, para tomar um whisky, gastava quase um salário mínimo, significa que era música de rico? Mas o rádio disseminava isso, o Brasil inteiro se apaixonou pelo samba-canção desde o final da guerra e não queria ouvir outra coisa. Tem gente até que, preconceituosamente, dizia que era música de empregada. Então como é? É música de empregada ou de grã-fino? Não tocava nas boates, nas quais as empregadas não podiam entrar? A partir de 1950, a instituição da boate se tornou uma coisa tão importante no dia a dia do brasileiro que as pessoas faziam grandes sacrifícios para ir às boates.

E no resto do Brasil, isso se estendia?
Imagino que sim, porque tinha arremedos de boate. Posso garantir a você que aqui no Rio não tinha boate no Flamengo, em Botafogo, em Umaitá, no Leblon e nem mesmo em Ipanema. Tinha em Copacabana. Certamente havia boate em São Paulo, Belo Horizonte e todas as capitais. Mas pela própria distribuição demográfica do Brasil você tinha duas cidades com mais de dois milhões de habitantes e o resto era de 500 mil para baixo. Ou seja, era um país muito rural e interiorano, mesmo as capitais eram cidades pequenas. E a boate era uma coisa de cidade grande. Seja como for, eram boates que tentavam reproduzir os modelos do Rio, inclusive as de São Paulo. A música era gerada no Rio, os comportamentos eram gerados no Rio, o cenário era gerado no Rio e os outros lugares tentavam seguir.

O Vogue e o Sacha;s separam duas eras, são dois marcos da história da noite do Rio?

Acho que sim. O Vogue era a maior boate de todas, o Sacha;s nunca conseguiu ter o grau de influência que o Vogue teve, acho até que por uma questão de contexto. O Vogue coincidiu basicamente com Dutra e Getúlio. O apogeu do segundo mandato do Getúlio se deu praticamente no Vogue. O Vogue era o lugar mais importante do Brasil logo depois do Palácio do Catete. Quando o Vogue pegou fogo e com a chegada do JK houve uma transferência. É como se fosse o Brasil quisesse ser diferente, mais arejado, ser passado a limpo. A partir de certo momento, JK pareceu representar isso em relação àquela política meio viciada do passado. Agora o que aconteceu também foi que outro motivo pelo qual o Sacha;s nunca teve a dimensão do Vogue é que, já no final dos anos 1950, aquelas grandes figuras que tinham começado a frequentar a noite a partir de 1947 a 1957-58 já estavam velhas, saíam menos e aí começou uma paulatina substituição desse primeiro time de grã-finos por uma geração mais jovem e menos glamourusa. Talvez o próprio Brasil estivesse mudando.


Como chegou a essa história de que Dick Farney teria sido o primeiro a gravar Tenderly?

Foi a coisa mais fácil do mundo. Hoje, munido do Google, você escreve Dick Farney e Billboard e aparece. É uma vergonha. Fico até envergonhado de confessar isso porque quando eu estava fazendo o livro da Carmem, há 10 anos, não tinha essa sopa. Eu tinha que sujar o sapato e comprar a passagem para ir lá ver ou pedir a alguém para ver para mim. Isso foi fácil.

E o que foi difícil?
Essa coisa de você localizar aquivos e juntar coleções de revistas depende do seu gosto por buscar informação no passado. Por exemplo: a coleção da Manchete dos anos 1950, que tenho completa, foi utilíssima para mim. Não comprei essa coleção para fazer esse livro, eu tenho essa coleção há 15 anos, são centenas de revistas empilhadas no armário. Comprei há 15 anos, foi uma oportunidade, uma coisa que me interessou, guardei e estoquei. A coleção ficou esperando por um momento para ser usada, um momento que finalmente apareceu. Isso é uma coisa. Você passar a vida inteira sem saber e sem querer se preparando para uma coisa que você vai fazer. Outra coisa mais difícil é você localizar as pessoas que estavam lá naquele período e podem te ajudar. Isso foi o difícil, você localizar uma pessoa, como o Sérgio Figueiredo, que morreu há seis meses e foi importantíssimo para mim. Sérgio foi uma pessoa muito ligada aos políticos, economistas e donos de jornais e era um socialite, frequentava os lugares, observava tudo, fazia o contato entre as pessoas, isso até o fim da vida. Assim como apresentou a Danuza ao Samuel Wainer em 1953, ele também foi intermediário da venda do JB para o Tanure há poucos anos. Nunca deixou de fazer os contatos dele. Então uma pessoa como essa é um informante insuperável.


O samba-canção teria existido não fosse o clima, o ambiente e a vida social e noturna do Rio?
Ele teria existido, mas não com a proeminência que teve. O samba-canção nasceu quando não tinha esse clima ainda, nos final dos anos 1920 e durante grande parte dos anos 1930. Quando você pega os discos e vê a classificação do gênero, em vez de estar samba-canção está samba. Muitos sambas-canção eram chamados simplesmente de samba nos anos 1930 porque o próprio samba era uma novidade. O samba começou com Ismael Silva e o pessoal do Estácio, no final dos anos 1920. O que tinha até então era batuque, maxixe, uma série de ritmos que não se confundem com o que conhecemos como samba. Então o samba-canção, evidentemente, precisou do samba para nascer. E durante os anos 1930 não apenas não foi reconhecido como gênero, porque o samba era uma grande novidade e tomava conta de tudo, como também não tinha um cenário para existir. Cada cassino tinha duas três orquestras e o samba-canção exige outro tipo de ambiente, que foi o que nasceu quando o Dutra fechou os cassinos em 1946 e abriram-se, quase simultaneamente, as boates. Elas tinham um ambiente mais intimista, mais delicado e propício a esse tipo de música, até porque os donos não tinham dinheiro para apagar as grandes formações, então tinha que ser um cantor ou uma cantora e um trio de piano baixo e bateria. Esse tipo de música podia servir para muita coisa, para toda espécie de ritmo dançante desde que fosse uma coisa delicada. Ninguém ia à boate para ouvir uma música barulhenta. Você ia à boate também para conversar. Não tinha que ficar gritando para conversar, você podia conversar direitinho ao pé do ouvido e a música não ia te atrapalhar. E podia parar de conversar para ir dançar. Por que as pessoas dançavam? Porque na maioria das vezes era uma maneira de um homem e uma mulher se encontrarem fisicamente. Esse foi o motivo, aliás, da decadência desse tipo de boate com música ao vivo. Na minha geração, quando fiz 18 anos e comecei a sair à noite, em 1966, minha geração não precisou dançar para ter um contato físico com uma moça. Era só conversar, bater um papo na sala de aula da faculdade ou na mesa do botequim ou na cinemateca do MAM. Era uma coisa que dispensava esse ritual de fazer caras e bocas, de fazer aquele glamour todo.

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