Diversão e Arte

"O Brasil é um Frankenstein", diz Carlos Heitor Cony ao Correio

Escritor e jornalista se mostrou pessimista com o rumo que o país está tomando, relembrou a amizade com JK e atacou a ex-presidente Dilma Rousseff

Rosana Hessel - Enviada Especial
postado em 12/03/2016 11:34

Escritor e jornalista se mostrou pessimista com o rumo que o país está tomando, relembrou a amizade com JK e atacou a ex-presidente Dilma Rousseff

Rio de Janeiro ; Na sala de seu apartamento na Lagoa, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, às vésperas de completar 90 anos, deu uma entrevista exclusiva ao Correio. Em cadeira de rodas conduzido pelo enfermeiro, ele tinha, em sua estante, a foto com o fardão da Academia Brasileira de Letras ao lado de livros e objetos ligados aos tempos em que esteve no seminário católico e que convivem pacificamente com o menorá (símbolo judeu) da esposa, Beatriz, companheira de quase 40 anos.

Depois de um acidente em 2013, em uma viagem para a Alemanha, no qual bateu a cabeça e teve um coágulo no cérebro, ficou com os movimento do lado direito do corpo comprometidos. Uma das coisas que o deixou mais chateado foi quando um cheque seu voltou porque a assinatura não batia. Avesso a comemorações, não planejou nada para o dia do aniversário. Não queria saber de festa.

Vivia recluso, cuidado por três enfermeiros, que se revezam. Mas isso não o impedia de escrever e gravar programa diário de rádio.

O escritor não escondia seu pessimismo com a vida e com o Brasil. ;O país é um Frankenstein, feito de pedaços dos outros e que não tem identidade;, afirma. Ele se dizia contra qualquer governo e, para ele, a então presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fariam um favor ao Brasil se fossem embora do país.

Além da fumaça do charuto, o que mais o agradava eram as cores preta e branca. O colorido o confundia, segundo ele.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio em 12 de março do ano passado.

[VIDEO1]


O senhor que já viveu vários momentos da história do país, agora vai fazer 90 anos, como está vendo esse momento atual da política brasileira?
Eu não sei se eu vivi tanto assim. Numericamente, sim. Temporalmente, sim. Mas eu tive uma vida até certo ponto reclusa, a não ser no trabalho. Tinha a necessidade de trabalhar ; porque eu nunca fui rico, não ganhei herança, não descobri petróleo. Então, tive que trabalhar. E, trabalhando, fiquei um pouco com aquele troço de ;nasci cansado;. Tem um verso que eu ouço muito e pode tomar nota porque serve para você também. ;Meu avô morreu na luta, meu pai pobre cansado, fatigou-se da labuta e por isso nasci cansado.; Esses versos são de Orestes Barbosa. Um letrista famoso. Mas definem tudo. Meu cansaço, minha reclusão, é anterior a mim mesmo.

O senhor é pessimista?
Eu sou pessimista. Considero o otimismo má informação. Só pode ser otimista o sujeito mal-informado. Quanto mais informação você tem, mais você tende a ficar pessimista. Não vou dizer que eu não tenha sido feliz. Dentro da condição humana, procurei ser o mais humano possível. Mas não cheguei lá.

Com este cenário político em ebulição, com tantas mudanças e reviravoltas. Como o senhor avalia o momento que o Brasil está passando?

Eu me defini com um sujeito pessimista. Nunca fui otimista, sobretudo em relação ao Brasil. Sobretudo em relação à vida. Considero a vida uma coisa estranha e eu sou mais estranho que a vida. E o homem continua insistindo. Fez coisas maravilhosas na arquitetura, na pintura, na música e na literatura. Mas dificilmente ele ficou satisfeito. O cenário principal do escritor é a solidão e o silêncio. Sempre que posso, fico escondido. Quando era criança, meu lugar preferido era ficar embaixo da mesa da sala de jantar. Quando minha mãe ia me procurar, me achava embaixo da mesa. Eu ficava em silêncio. De chupeta na boca. Eu via o mundo da cintura para baixo. Como nos desenhos do Tom. Minha paisagem era essa. E quando eu fui obrigado a me levantar, não achei muito divertido, não.

O senhor não gostou do que viu, mas teve uma produção bastante intensa, com 17 romances, contos, crônicas...

Sempre fui um bom trabalhador. Não fui preguiçoso. Se eu não tenho uma obra boa, eu tenho uma obra vasta, mas não me sinto realizado.

Por quê? O senhor ganhou vários prêmios...

Para você ter uma ideia. Eu fui preso seis vezes. Sempre por motivos políticos. As prisões variaram de tempo e de lugar. Geralmente, eram em quartel. Eu fiquei preso desde uma semana até seis meses. Estranhamente, foi talvez o lugar e a temporada mais livres que eu tive. Primeiro, porque estava no lugar certo. Não precisava mais dar opinião nenhuma e não gastava dinheiro. A sensação era que eu estava no lugar certo. Eu lembro que uma das minhas prisões foi no Natal e ano-novo. Fiquei tão satisfeito em estar preso. Sempre tive essa desconfiança de não estar no lugar certo. De ser o homem errado no lugar errado. Sou um homem errado no lugar errado. Ao contrário do right man in the right place. Sou o homem errado e me sinto aparentemente bem no lugar errado.

O senhor foi um dos que defenderam a saída do presidente João Goulart e também apoiou o golpe de 1964 com o editorial Basta! Depois, o senhor deu algumas declarações de que tinha se arrependido de ter apoiado...

Eu não me arrependi, não. Muita gente fala isso. Primeiro, me atribuem ter escrito os dois editoriais famosos do Correio da Manhã. Eu era editorialista. Aqueles dois editoriais Basta! e Fora! não foram escritos por mim. Participei como autor do texto final. Mas não mexi no texto. Tirei advérbio de modo, tirei uma vírgula, botei uma vírgula, mas não fiz o editorial. Agora, o Correio da Manhã vinha numa campanha muito feroz contra o João Goulart. Elio Gaspari tentou descobrir quem é o autor e não descobriu... (risos)

E quem foi?

A lenda é que teria sido eu o autor. Porque eu escrevia muito contra o governo. Não contra o João Goulart. E acharam que o estilo também era meu. Fiz o texto final na realidade, mas o conteúdo não, de jeito nenhum. Eu não teria feito aquilo. Agora, minha obrigação de editorialista era tirar certas palavras muito pouco usadas naquele tempo, como necrópole ou nosocômio, como sinônimo de hospital. Eu não mudei de ideia. Tem gente que acha que eu mudei de ideia. Assim como que não aprovava o governo de João Goulart, que eu achava que era mau-informadamente (sic) socialista, achava também que o golpe de estado e, sobretudo, as medidas ditatoriais mereciam repúdio. E expressei esse repudio em 2 de abril daquele ano, um dia após o golpe, eu escrevi uma crônica, não uma coluna de política. Não me considero colunista. O cronista comenta o fato do dia. E eu comentei os movimentos que eu vi como um cronista. Eu não era político. Eu nunca gostei (de política).

O senhor foi preso na mesma época que Juscelino Kubitschek. Como foi a convivência com o ex-presidente?

Foi na época do AI-5. Eu fui preso antes. Juscelino foi levado para um quartel em São Gonçalo. Mas, aí, a família começou a se mexer, e o doutor Aloísio Sales escreveu uma carta dizendo que o Juscelino tinha pressão alta, diabetes, e conseguiram que ele saísse antes do Natal. O AI-5 foi em 13 de dezembro de 1968 e ele saiu antes no dia 22 ou 23. Ele tinha ido ao Theatro Municipal do Rio para uma festa de formatura e, quando ele estava saindo, um oficial deu um chute na canela e ele não caiu no chão por sorte. Agora, eu fui preso no mesmo dia do AI-5, por volta das 21h, e fui para outro quartel, em São Cristóvão. E fiquei lá até depois do carnaval. Essa foi minha segunda prisão.

E como o senhor teve contato com ele para escrever as memórias de JK?
Nunca tive contato antes de escrever a biografia. Fui convidado pelo Adolfo Bloch (dono da Manchete) para escrever a biografia do ex-presidente. Mas quem assina os livros é o próprio JK. Escrevi em primeira pessoa e ele lia antes e aprovava antes de mandarem imprimir. Na parte final, que era duro. Eu não toquei nos problemas particulares dele com a dona Sara. Dormiu várias vezes no meu carro. Passei por cima disso.

Mas por que ele não se divorciou?
Ele nunca faltou ao respeito com a dona Sara publicamente. Ela, volta e meia, queria o desquite. Mas Juscelino morreu com a esperança de ainda ser chamado para voltar para a política. E ele achava que um homem desquitado, divorciado, seria um elemento contra ele. Por isso, não queria se divorciar de jeito nenhum, mas vivia com a amante dele, a Lucia (Maria Lúcia Pedroso). Viajava com ela. Esteve em Paris com ela, inclusive. Há um famoso equívoco, e muita gente embarca nisso até hoje, de que ele teria ido para Rio no dia em que morreu para se encontrar com a Lúcia. Mas não é verdade. Ele veio ao Rio porque tinha uma reunião com advogado que acabara de chegar de Lisboa. JK estava respondendo a um processo em Portugal. O advogado era o português Adriano Moreira. Uma senhora muito poderosa comprou um terreno perto de Setúbal e fez uma espécie de resort e incluiu dois brasileiros como membros do conselho consultivo, e Juscelino era um deles, com mais 15 pessoas. Ele já tinha cumprido a pena de cassação de mandato. E se fosse preso em Portugal, atrapalharia seus projetos políticos. Ele tinha marcado um almoço no Rio com o advogado e não queria que ninguém soubesse. Tinha uma passagem para Brasília e mostrou para todos, inclusive para mim, mas não foi. Combinou com o motorista e veio o desastre.

Tapete vermelho...
Antes da entrevista, enquanto saboreava um chocolate, Carlos Heitor Cony relembrou sua primeira crônica para a revista Manchete. Tapete vermelho era o título do texto que escreveu sobre a visita da rainha Elisabeth II ao Brasil. ;Ela se hospedou no Hotel Nacional em Brasília. Eu não fui lá, mas minha crônica dizia que essas pessoas famosas, rainhas, presidentes e atrizes, devem achar que o mundo é vermelho porque só pisam em tapetes vermelhos;, afirma. ;Na cabeça deles, o mundo é forrado por um tapete vermelho. As considerações paralelas, o que significa a fama, são secundárias. O fato é que, quando eles morrerem, vão pensar que a terra é toda vermelha;, brinca ele, rindo. ;Foi minha primeira experiência em cor. Antes, no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã era só preto e branco. Não havia cor em minhas crônicas. Mas eu nunca gostei muito de cor. Sinceramente (risos)... Eu prefiro jornal em preto e branco. Porque a vida é preto e branco, embora tenha muita cor;, afirma. ;O mundo colorido dispersa muito ao passo que o preto e branco, ou é preto ou é branco. Ou é bom ou é mau. Ou é bonito ou é feito. Está mais de acordo com a formação antológica do homem. Quando você vê cor, há equívocos;, completa.


Escritor e jornalista se mostrou pessimista com o rumo que o país está tomando, relembrou a amizade com JK e atacou a ex-presidente Dilma Rousseff

Como era a amizade entre o senhor e JK?
Ficamos realmente amigos. Ele praticamente contava tudo e não fazia questão de mentir ou se engrandecer perto de mim. Pude realmente captar esse lado dele. Um dado que discuti muito com ele e que acabou não ficando no texto foi a pior jogada dele, o de apoiar o Castelo Branco. Ele não era um bom político. Se fosse, não teria sido cassado. Era um bom administrador. O melhor que já tivemos e sofreu por isso. Quando acabou a ditadura, ele foi para o MDB porque a Arena era do governo. Se tivesse apoiado o Dutra naquela época, a história seria diferente. Esse foi o maior erro dele, mas ele me convenceu a não incluir no livro. No fundo, acho que ele admitiu, ele não tinha noção exata do que estava acontecendo. Ele não acreditava nem na Operação Tio Sam (a possível intervenção norte-americana caso o golpe de 1964 não desse certo). Ele era um otimista. Agora, se ele tivesse votado no Dutra, não teria havido a revolução de 1964, embora o país estivesse dividido. Ele era um homem que ia para minha casa trabalhar. Ia embora às 3h da manhã. Dispensava o motorista e, muitas vezes, eu que o levava no meu carro quando íamos para São Conrado comer camarão e beber. Quem não comeu camarão na Barra naquela época não é carioca. Bons tempos. Eu também estava me desquitando e chorávamos juntos a situação em que vivíamos. Eu estou sempre chorando.

Mas seus 90 anos, o senhor acha que o Brasil já teve o seu melhor momento ou não?

O pessoal considera, na realidade, a era JK como o melhor momento do Brasil. É possível. Ele era um prefeito que chegou à Presidência da República e via o Brasil como uma grande prefeitura. Quando ele estava no exílio, eu fui muitas vezes a Paris, no apartamento dele, levar dinheiro para ele porque era muito pobre. JK não tinha muito dinheiro. Disseram que ele era a sétima fortuna do mundo. Não era nada disso. Inclusive não teve dinheiro para desenvolver a fazendinha em Luziânia. Ele comprou uma fazendinha no cerrado e precisava comprar fertilizante e não tinha dinheiro porque era muito caro. Os amigos ajudavam. Fui várias vezes visitá-lo no exílio em Paris e fui um dos portadores. Muita gente foi. Ele nesse momento tinha muito medo. Achava que, ao voltar para o Brasil, passaria outra vez por aqueles processos humilhantes que deixavam ele em pé horas e horas fazendo perguntas absurdas. Ele acabou vivendo das colaborações que fazia para a revista Manchete. Às vezes assinava, às vezes não. Mas tinha um salário e morava na editora. Fiquei com a sala dele depois que morreu. Fiquei cinco a seis anos até que Manchete faliu e fui embora.

E agora o que o senhor acha do momento atual?
Agora, eu acho que o país não está tão dividido assim. Há uma unanimidade contra o governo. Mas o pessoal tem medo. Sobretudo, os militares, de um golpe, um impeachment forçado. De qualquer maneira, acho que a situação está muito crítica. Mas não vejo ameaça de golpe. A não ser que aconteça um grande fato. Um cadáver, como o episódio de João Pessoa em 1930.

Ainda mais agora, quando a gente olha para a situação do país, é que dá vontade para chorar, não é?
A situação do país é péssima. Eu acho o Brasil péssimo. Ele não tem uma identidade. O país não conseguiu uma identidade. É um Frankenstein, ou seja, é um monstro muito grande feito de vários pedaços dos outros. O Brasil é mais ou menos isso. Mas na realidade o Brasil é péssimo. Nem mesmo no tempo do Juscelino, que o pessoal fala que era a Idade do Ouro, o país tinha uma identidade.

Qual a sua avaliação da economia do Brasil? Naquela semana tumultuada das delações do senador Delcídio do Amaral e do episódio da condução coercitiva do ex-presidente Lula, saíram os dados do PIB de 2015, que encolheu 3,8% e teve o pior desempenho em 25 anos...

Em relação à economia, os números não mentem. Não é uma questão de opinião, de ideologia. Os números falam por si. Se o Brasil foi desclassificado da turma do grau de investimento e é considerado um mau pagador, se a inflação está alta, tudo isso não é especulação. Isso tudo é o dia a dia que nós vivemos. Então, não adianta interpretar que foi isso ou aquilo outro, se foi a geada, se foi o mercado que retraiu. Nada disso. A economia é um problema de matemática. E acabou.

E como o senhor avalia o governo da presidente Dilma?
Eu nunca pensei muito na dona Dilma. Mas pelo que eu sei da vida dela, ela foi atraída politicamente pelo Brizola lá no Sul. Ela foi uma brizolista. O Brizola era um louco saudável. Louco, mas entendia das coisas. Fui muito amigo dele, mas não votava nele. A Dilma tem essa atração por ele. Eu tenho a impressão que Dilma é uma louca não saudável. Primeiro, se deixou amarrar por um esquema anterior ao dela, que era o esquema do Lula. Depois, sem querer ser machista, como mulher, ela acha que pode falar tudo. E essas falas realmente são desmentidas pela realidade de cada dia. Não me parece que tenha instintos sanguinários. Pode ser que tenha. Mas não me parece. Mas não tem qualquer sensibilidade política. Se tivesse, já teria renunciado ou mudado.

O senhor acha que ela não tem mais as credenciais para continuar no poder?
Não tem. Devido, justamente, de um lado, não ser sanguinária, de outro, não ter sensibilidade política nenhuma. Ela não tem sensibilidade para administrar nem uma lojinha de secos e molhados. Mas é isso. Não vejo muita saída para ela não.

E para o Brasil? O senhor vê alguma saída?
Evidente. O Brasil sofre com isso. O atraso do Brasil, as estatísticas mostram. O país está caindo financeiramente, economicamente. Para você ter uma ideia, no futebol, o Brasil tinha uma identidade. Em 1950, eu estava no Maracanã, quando o Brasil perdeu de 2x1 para o Uruguai. Éramos campeões de fato. Ninguém duvidava que o Brasil seria campeão. No entanto, perdeu. Eu estava na arquibancada do Maracanã e fiquei muito triste. Confesso que chorei. Agora, quando o Brasil recentemente perdeu de 7x1 para a Alemanha, eu não fiquei triste. Fiquei envergonhado. Não ia gastar lágrimas para a minha vergonha. E continuo envergonhado até hoje. Não só por causa do 7x1, mas por outras coisas, com a lama em Mariana, algo impossível de acontecer em outro país. Quer dizer. A culpa é do governo, porque ninguém tem capacidade de fiscalizar uma represa que criou o caos que criou. E por aí vai.

Escritor e jornalista se mostrou pessimista com o rumo que o país está tomando, relembrou a amizade com JK e atacou a ex-presidente Dilma Rousseff


Qual o seu melhor livro, na sua opinião?
O livro que eu mais gosto é adaptação de Moby Dick. Para mim, é muito boa. É a minha melhor obra. Embora não seja um original meu, eu incluiria esse livre entre os meus melhores. Moby Dick é difícil de ler no original.

E o seu livro mais famoso, Quase memória, que virou filme?
A pré-estreia já aconteceu. Mas acho que eu não vou ver. Ouvi dizer que o filme ficou chato (neste momento sua esposa, Beatriz, diz que não ficou). É um livro. E eu falei para o Ruy Guerra quando ele pediu para comprar os direitos. Eu disse: Ruy, não tem um vilão. Não tem uma megera na trama. Não vai dar filme. Não gosto muito da linguagem audiovisual. Eu digo sempre em faculdades e em palestras. Peço que me citem um grande romance que deu um grande filme ou um grande filme que deu um grande romance. Não tem. Se um grande filme não da um grande romance. Um grande romance não dá um grande filme. Haja visto Dom Quixote.

Hoje em dia, o que o senhor gosta de ler?
Hoje, eu estou mais relendo do que lendo. Gosto muito de reler. E fico impressionado com coisas que surgem hoje como novidades e que foram feitas dois três séculos antes. Todo mundo rouba de todo mundo. Há muito roubo. Inclusive, no meu primeiro livro, O ventre. Muitos críticos diziam que eu era muito sartriano. Realmente, se me perguntassem, eu diria que sim. Eu gostava muito de Sartre naquela época, não como filósofo, mas eu gostava muito da ficção. E gosto até hoje. E o pessoal atribuiu o meu primeiro livro como um livro sartriano. E eu concordava. Também passou o tempo. Há uns cinco ou seis anos, uma menina estava fazendo uma tese de doutorado em Curitiba e escreveu um ensaio sobre O ventre, mostrando as citações de Machado de Assis no livro. E não sei como não me processaram. Eu, inconscientemente coloquei no livro. Eu não curtia Machado. Prefiro Lima Barreto. Li Dom Casmurro uma única vez, não tem muito humor. O melhor livro de Machado para mim é Quincas Borba.

Quem é seu autor favorito?
Praticamente não tenho um autor preferido. Tenho um livro preferido. (As viagens de) Gulliver. Jonathan Swift não é meu autor preferido porque ele era meio maluco. Ele queria acabar com a fome mundial fazendo churrasco de criancinhas. Mas Gulliver me parece a melhor história feita pelo homem. É o melhor livro disparado. Eu releio sempre.

O senhor vai muito ao cinema?
Hoje eu tenho ido muito pouco. Vejo filme de televisão, mas tenho a minha filmoteca com os meus filmes preferidos. Tenho um livro do Chaplin. Eu o estudei muito. Gosto muito dele. É um gênio. Tem coisas geniais, mas não é bem um cineasta porque não absorveu os truques. Ele ousou pela transparência, não deu bola para os avanços. Ele resistiu ao som e continuou fazendo filmes mudos até o Luzes da cidade. Ele dizia que o som aniquila a grande beleza do silêncio. Acho isso genial. Chaplin está um ponto acima do cinema. Gosto muito de (Federico) Fellini, John Ford, René Clair também.

Muitos já fizeram esta pergunta sobre as críticas de o senhor receber aposentadoria de anistiado político, apesar de ter apoiado o golpe de 1964. Como o senhor encara essas críticas? Ficou com mágoa?
Hoje em dia, estou afastado dessa luta política factual. Escrevo pouco sobre política e sempre contra o governo. Seja qual for o governo. Não tenho lado. Não me considero de esquerda nem de direita. Vejo, evidentemente, o noticiário, algumas entrevistas. Mas agora, quando tomei posse da Academia, sempre houve contra mim o seguinte problema. Sempre houve aquela dúvida. Porque eu tomava atitudes que ora agradava à direita e ora agradava à esquerda. Por exemplo. Quando eu falava mal de Fernando Henrique, o PT me adorava e publicaram um livro meu ; O presidente que não sabia javanês. Isso quando quase ninguém era contra o FHC. Mas eu não sou do lado do Fernando Henrique nem do lado de esquerda. Hoje estou falando abertamente contra o PT, inclusive, dizendo que uma das coisas para unificar o Brasil seria pegar o Lula e a Dilma e os mandarem embora do país. Até hoje me considero uma pessoa que não tem lado político e é verdade. Não sou de direita, porque não tenho ideias definitivas sobre nada. E não sou de esquerda porque a esquerda obriga a uma disciplina intelectual que eu não tenho. Sobra ser um anarquista triste escuro e inofensivo. E é o que eu sou. Sou um anarquista, mas não de pegar em bomba. No sentido de que não acredita em nada de bom em termos coletivos.

Como assim?

Em termos coletivos, todos os países tiveram uma revolução. Mas revolução mesmo eu só conheço duas. Uma quando o Todo-Poderoso mandou um dilúvio para matar todo mundo. Afogou todo mundo, menos Noé e a família dele. A outra que eu conheço além do dilúvio foi a de Sodoma e Gomorra. Acabou. Essas são as duas revoluções. As outras não mudaram nada. A humanidade continua mesma. Mas há sempre o problema de que alguma coisa ruim haverá castigo. Isso ficou entranhado na persona do homem. Ele pode fazer, mas sabe que, mais cedo ou mais tarde, deverá prestar contas a si mesmo.

O senhor falou que não se sente realizado. O que faltou para realizar nesses 90 anos?
Conseguir alguns sonhos. Nem chamo de sonho. Alguns delírios que me colocassem num determinado lugar certo como eu estive nas prisões. Estou aqui, mas estou certo comigo mesmo com tudo o que aprendi, com tudo o que eu sou, com meus defeitos, com minhas virtudes, mas estou no lugar certo. Hoje, eu tenho dúvidas. Aquele pontinho de dúvida não só em questão política, mas em geral, mulheres, trabalho. Por exemplo. Eu hoje me arrependo um pouco e eu não faria certas coisas que eu fiz por ai. Inclusive, no jornalismo.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação