Economia

Entrevista: para Rubens Ricupero, um pouco de sobriedade não faz mal

postado em 16/01/2011 08:00
Dono de um dos mais impressionantes currículos entre os homens públicos brasileiros, o embaixador Rubens Ricupero é a elegância em pessoa. Com a mesma voz mansa que usou para conduzir os primeiros passos do real, ainda em 1994, o ex-ministro da Fazenda faz cortantes análises sobre o estado das relações internacionais e da economia global. Sem receio de descontentar um certo ufanismo vigente entre muitos analistas desde que a volta do crescimento e a melhora de indicadores sociais deram mais evidência ao país, ele põe sob perspectiva a posição nacional no mapa mundial e avisa: o Brasil continuará tendo uma participação modesta no concerto das nações.

"Melhor do que já foi, mas longe dos atores principais. O governo exagera ao ressaltar a importância que o Brasil está adquirindo no cenário internacional. Um pouco de sobriedade faria bem", recomenda. Ricupero chefiou a embaixada brasileira em Washington e não esconde sua admiração pelos Estados Unidos. Também contrariamente ao que diversos especialistas têm assegurado, ele acredita que os EUA permanecerão na liderança mundial, apesar de lutarem para diminuir os brutais efeitos da crise econômica. "A sociedade norte-americana é muito fértil e criativa e tem uma fantástica capacidade de recuperação e inovação."

Ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), o atual diretor da Faculdade de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) crê que, embora os países em desenvolvimento já tenham recuperado o caminho da prosperidade, puxados pelo extraordinário desempenho chinês, o planeta vai enfrentar mais uns quatro anos de "vacas magras". A receita para o Brasil aproveitar a nova onda que virá com a recuperação internacional é, na visão do diplomata, apostar na eliminação do deficit público, o que permitiria a redução dos juros e a desvalorização cambial, com os prováveis ganhos nas exportações. A seguir, a entrevista concedida ao Correio.

O mundo vai aprofundar a tendência de hegemonia dos Estados Unidos e da China?

Teremos uma diversificação de grandes atores, mas não em pé de igualdade. Seguramente haverá destaque para EUA e China, com alguns países intermediários vindo em seguida: Índia, Rússia, Brasil, Indonésia, Paquistão, Egito, Austrália e alguns tradicionais, como Inglaterra, França e Canadá. A posição brasileira fica um pouco comprometida porque não temos poderio militar.

O G-20 vai se consolidar como o principal fórum econômico?

O G-20 já está institucionalizado como a instância política mais alta para a coordenação dos grandes temas da economia internacional. Isso não significa que será mais fácil encontrar solução para problemas em que há um conflito marcante de interesses, como o equilíbrio entre países superavitários e deficitários ou o câmbio. A saída não está no número de participantes, mas o grupo dos 20 é mais representativo dos países de peso do que o dos 7 ou o dos 8.

Esses fóruns não são marcados por muita conversa e pouca ação?

O G-20 teve um papel importante no momento mais agudo da crise, na coordenação de estímulos e mudanças na regulamentação financeira. Na ação mais concreta, conseguiu triplicar os recursos do FMI rapidamente. Além da expansão das linhas existentes, o Fundo criou um programa chamado New Arrangements to Borrow, que representou um aporte de US$ 580 bilhões. Os quatro países do Bric conquistaram mais poder ao aportar US$ 96 bilhões juntos. Isso não é conversa fiada. É um dos avanços concretos obtidos pelo G-20. Houve resultados consideráveis em temas convergentes. Quando há conflito de interesse, é mais difícil.

A crise ainda vai durar muito tempo?

Não vamos sair dela tão cedo. O estudo que Kenneth Rogoff, ex-economista chefe do FMI, e Carmen Reinhart fizeram sobre mais de 60 crises mostra que as mais difíceis de acabar são as que combinam um estouro de bolha imobiliária e o colapso do sistema de crédito, exatamente como a atual. Em geral, elas demoram de 7 a 10 anos. Na melhor das hipóteses, teremos mais uns 4 anos de vacas magras pela frente.

É uma crise em ondas?


Isso está sendo confirmado. Ninguém imaginava que o ano passado seria dominado pelos problemas na Zona do Euro, que ameaçam a própria sobrevivência da moeda. Essa é uma crise com vários desdobramentos. Começou com as hipotecas nos EUA, depois passou para os derivativos e afetou a saúde dos bancos. Dos EUA, ela passou para a Europa e já houve vários países assolados. É uma crise com diversas encarnações.

Quais são os principais entraves para a retomada da prosperidade global?

Depende para onde se olha. No mundo em desenvolvimento, sobretudo na China e na Índia, os pacotes de reativação deram certo e a economia está crescendo em níveis impressionantes. Isso tem ajudado os produtores de matérias-primas na América Latina e na África, incluindo o Brasil. Esse lado do mundo está indo bastante bem. O problema são as três grandes economias desenvolvidas: EUA, Japão e Europa. Nelas, o processo será mais lento, porque o grau de endividamento da sociedade é muito alto. Para expurgar isso do sistema, demora algum tempo.

Pacotes de estímulo ao crescimento ainda são necessários?

No caso dos EUA, seria importante um novo estímulo ao emprego. Economistas como Paul Krugman têm mostrado que o estímulo norte-americano, em proporção do PIB, foi muito menor do que o da China, por exemplo. O problema é que o Congresso dos EUA não quer nem ouvir falar em aumentar gastos. Como eles se endividaram muito para salvar os bancos, não estão dispostos a fazer mais dívida para estimular a criação de vagas. O nível de desemprego lá é de 9,5%, muito alto num país acostumado com uma taxa de 5%.

O aumento do dinheiro em circulação nos EUA não vai estourar lá na frente na forma de inflação?

Neste momento, os países desenvolvidos acreditam que a ameaça maior a eles não é a inflação, mas sim o perigo da deflação. Eles não estão preocupados com a alta de preços. A atividade econômica está muito fraca. Um dos sinais de inflação é a explosão do mercado de trabalho, como ocorre no Brasil. Quem deve se preocupar é o governo brasileiro.

É justo exigir que a China aumente as importações ou valorize a moeda para contribuir com o crescimento dos outros países?


É justo pedir que a China jogue de acordo com as regras. Os chineses têm tido um êxito enorme nas exportações, mas, em boa medida, por desrespeitarem a normas: manipulam a moeda, têm um sistema de crédito subsidiado para as grandes empresas, têm favorecimento de todo tipo em matéria tributária. O comércio internacional exige que todos cumpram regras equitativas. É de inteira justiça exigir que a China tenha uma postura diferente da atual. O Brasil comete um erro ao culpar apenas os EUA. Atrás do problema cambial, o que há é a China.

Pode haver alguma mudança a curto prazo?

É muito difícil. Os chineses estão obcecados em gerar empregos e têm preocupação com os setores exportadores menos eficientes, que, provavelmente, não conseguiriam se manter no mercado se respeitassem as regras. Eles fazem tudo para proteger esses segmentos. Com isso, prejudicam os outros países, inclusive a nós.

O euro tem futuro?

O euro terá que vencer provas muito difíceis. Acredito que vai sobreviver. É quase inconcebível hoje em dia uma nova guerra entra a Alemanha e a França. Da mesma forma, é difícil imaginar que se abandone o euro. Seria um fracasso fatal para a psicologia europeia.

O dólar vai continuar sendo a referência internacional?

O dólar ainda vai ser a moeda de reserva global, mas vão se intensificar as discussões sobre um novo sistema monetário. O ideal seria uma quase moeda inspirada nos Direitos Especiais de Saque do FMI. A vantagem é que não seria uma divisa dependente de nenhum país. Seria coletiva. É um pouco a ideia do lorde Keynes em Bretton Woods, que queria criar o Bancoor, mas foi derrotado pelos norte-americanos. A longo prazo, caminha-se para isso. A curto prazo, não vejo possibilidade de substituição do dólar. O iuan, da China, não é candidato, porque não é conversível. É muito difícil alguém fazer operação de câmbio com o iuan no mercado livre porque há muito pouca moeda disponível. O dólar só é o padrão porque existe uma enorme quantidade dele no mundo.

Os EUA estão declinando ou o restante do mundo é que está subindo?

Os dois movimentos se completam. No fim da Segunda Guerra Mundial, com a Europa e o Japão destruídos, a economia norte-americana representava mais de 50% do PIB mundial. Hoje, é 25%. Mas, em termos militares e estratégicos, os norte-americanos estão disparados na frente de qualquer país. Sozinhos, eles gastam em defesa mais do que todos os outros somados. Hoje, o poder mundial é o somatório de muitas coisas, como tecnologia, ciência, indústria, finanças, esportes, medicina, instituições, democracia e capacidade de criar símbolos e valores por meio de imagens. O que torna os EUA singulares é que eles são um ator decisivo em todos os setores.

Então, é um exagero afirmar que os EUA vão passar a hegemonia no mundo para a China?

É preciso ter uma certa prudência nisso. Não dá para pegar o cenário atual e projetar como uma tendência inelutável para o futuro. A sociedade norte-americana é muito fértil e criativa e tem uma fantástica capacidade de recuperação e inovação. Não se sabe se os chineses vão conseguir, com o sistema deles, igualar essa capacidade. Outro dia, eu li um artigo de um chinês que dizia: "Nós somos bons, estamos nos desenvolvendo, exportando, mas quem inventou os dois produtos mais importantes nos últimos tempos, o iPod e o iPhone, foram os norte-americanos. Não foram os chineses". Nos anos 1970, os analistas diziam que os EUA tinham acabado, depois do Vietnã, de Watergate e da dianteira da União Soviética em armas nucleares. No fim, foram os EUA que venceram a Guerra Fria.

Como fica o Brasil na ordem mundial daqui por diante?

Modestamente. Melhor do que já foi, mas longe dos atores principais. O governo exagera ao ressaltar a importância que o Brasil está adquirindo no cenário internacional. Um pouco de sobriedade faria bem. A melhora é resultado de 19 anos de medidas que conquistaram a estabilidade política e econômica. O país colhe agora os resultados do bônus demográfico. O primeiro ano em que a taxa de fertilidade do brasileiro caiu abaixo do nível de mera reposição foi 2003, o primeiro do governo Lula. Isso tem muita influência no consumo, distribuição de renda e bem-estar. Além disso, a ascensão da China favoreceu muito os produtos básicos que nós exportamos, que aumentaram muito de preço.

O caminho para o desenvolvimento brasileiro está pavimentado?


Não estamos na dianteira dos países nem em crescimento econômico nem na solução dos gargalos. Ainda estamos longe de resolver problemas básicos. A FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) calculou que o Brasil será o país com maior expansão agrícola no mundo, com aumento de 40% até 2020. Com a produção atual, mal se consegue levar os produtos até os portos. Os navios ficam semanas esperando. Como vai ser com 40% a mais? Estamos muito atrasados. Investimos menos de 2% do PIB em infraestrutura, um terço dos 6% nos anos 1970.

O que a presidente Dilma Rousseff deve fazer?

Espero que ela faça o que prometeu: corte de gastos, combate à inflação, redução da dívida pública interna, eliminação do deficit público. Até agora, o discurso foi animador. Mas é preciso ver como ele vai se transformar em políticas efetivas.

Essas medidas seriam um mapa para o Brasil aproveitar melhor a recuperação global?

Sim. Nossa situação inspira cuidados. O sinal começa a ficar amarelo. O consumo está muito forte e o mercado de trabalho está esticado ao máximo. Os reajustes salariais têm sido altos. A inflação é uma realidade. Se não se tomar cuidado, ela pode estragar aquilo que conseguimos com esforço. É preciso controlar as despesas do governo e não permitir o aumento artificial do consumo dos particulares. O momento é de colocar o pé no freio.

A política comercial brasileira vai mudar?


Não vejo possibilidade de haver grandes alterações no comércio sem se resolver o problema do câmbio, que condiciona tudo. Todos os países que se desenvolveram baseados nas exportações tinham um câmbio favorável. O nosso é muito desfavorável, com o real forte. Só se resolve essa questão com a eliminação do deficit fiscal, para que se possa reduzir os juros. Juros e câmbio são inseparáveis. O rombo nas contas públicas nem é tão grande. Se nos EUA, é de 11% do PIB, aqui está em 2,5%.

O governo deve apostar em acordos bilaterais de livre comércio?

Se não resolvermos o câmbio, vamos continuar exportando basicamente itens agrícolas e minério, dependendo cada vez mais do consumo chinês. Nas commodities, as tarifas já são zero ou próximo disso. Aí, não faz sentido fazer acordos, que se destinam mais a quem exporta produtos industrializados. Também é preciso mexer nesse sistema tributário insano, que pune a exportação de artigos industriais e incentiva a venda dos básicos. O Brasil vende cada vez mais soja em grão e não óleo de soja, que está se transferindo para a Argentina. A presidente tem que avocar para si a integração de todos os elementos com impacto no comércio exterior.

O senhor é a favor de uma medida mais drástica para o câmbio, como a quarentena para a entrada de recursos no país?

Medidas para desestimular o ingresso de capitais especulativos são boas, mas não solucionam o problema se não se resolver a questão dos juros. Com os juros altos, vai continuar entrando muito dinheiro aqui.

O que o senhor espera da política externa de Dilma Rousseff?


A minha impressão é que, dentro de uma continuidade básica, deve haver a correção dos excessos dos últimos tempos. A presidente condenou a posição do Itamaraty em relação aos direitos humanos no Irã, mostrou sensibilidade na questão dos prisioneiros políticos em Cuba e fez um aceno positivo em relação aos Estados Unidos. Fala muito alto o fato de ela ter mudado o comando do Itamaraty. A escolha do Antonio Patriota para o lugar de Celso Amorim é positiva. Ele já foi embaixador em Washington e conhece a importância das relações com os EUA. Acho que Patriota vai ter uma atitude mais serena. A condução da política externa deve ser menos ideológica.


Frases

"Não estamos na dianteira dos países nem em crescimento econômico nem na solução dos gargalos. Ainda estamos longe de resolver problemas básicos"

"É preciso controlar as despesas do governo e não permitir o aumento artificial do consumo dos particulares. O momento é de colocar o pé no freio"

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