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O único exilado do futebol brasileiro

Ideais políticos e barba e cabelo por fazer levaram Afonsinho, meia do Botafogo, a sonhar com a Seleção, mas acabar no Olaria. durante o regime militar, ele se tornaria o primeiro jogador a conseguir passe livre

Braitner Moreira
postado em 01/04/2014 16:00
Dirigentes do Botafogo se reuniram com Afonsinho para exigir barba e cabelos aparados: desobediência culminou no exílio profissional (Arquivo Pessoal )
Dirigentes do Botafogo se reuniram com Afonsinho para exigir barba e cabelos aparados: desobediência culminou no exílio profissional


O regime militar não dispensou aos esportistas a mesma patrulha com a qual conviveram artistas, intelectuais e políticos de oposição. Nos anos de exceção, havia pouco espaço para debates sociais dentro dos clubes, e as manifestações públicas dos principais ídolos do esporte ; quando existiam ; serviam apenas para consolidar os ideais da ditadura. Poucos tiveram coragem de se indispor contra o sistema. E o primeiro a afrontá-lo viu sua carreira redimensionada para sempre. O meia Afonsinho, cotado para a Seleção Brasileira, foi parar no Olaria por causa de seus ideais po
líticos.
Em 1970, aos 22 anos, o então meia do Botafogo começava a flertar com uma vaga na Seleção. Com seis títulos no currículo, a faixa de capitão em algumas partidas e uma técnica acima da média, Afonsinho tinha quase tudo para se tornar um dos principais jogadores do Brasil. Faltou-lhe a submissão. A barba e o cabelo cheios, em homenagem aos ícones comunistas, ajudaram a minar a relação dele com os dirigentes do Botafogo. Acusado de não se enquadrar no regime disciplinar do clube, acabou emprestado ao Olaria para que tivesse tempo de rever os próprios conceitos. ;Alguns diziam que era bom que eu saísse, seria uma forma de me enterrar vivo. Uma forma de me exilar;, recorda, em entrevista ao Correio.

Naqueles anos, bastava a Afonsinho atravessar uma rua para entrar no Estádio de General Severiano para treinar ou jogar com o Botafogo. Os seis meses de exílio no time do subúrbio, enfrentados diariamente no banco dianteiro de um Fusca, fizeram com que o atleta repensasse a continuidade da carreira no futebol. ;Só aceitei porque isso me daria um dinheirinho extra para que eu pudesse me formar em medicina, mas, no fim, foi bom. No Olaria, eu renasci;, analisa.

As boas apresentações fizeram com que o Botafogo lhe chamasse de volta, ainda em 1970. O retorno, contudo, durou apenas um treino: Afonsinho compareceu com a mesma barba e o mesmo cabelo de antes. ;Ele estava avisado de que seria proibido de treinar com essa barba;, disse Zagallo, treinador do alvinegro, ao afastá-lo pela segunda vez em menos de um ano. ;Por mim, paro com o futebol imediatamente;, rebateu o atleta, naquele dia. Não cumpriu a promessa e, por isso, entrou para a história do futebol brasileiro.

Passe livre
Vinculado ao Botafogo, mas sem poder jogar pelo clube, Afonsinho deixou de receber salários. Neste momento, decidiu recorrer aos tribunais para conquistar o passe livre, libertando-se de graça do alvinegro para procurar outro clube. Com isso, e para evitar o risco de se tornar refém dos dirigentes, tornou-se o primeiro atleta independente de uma equipe de futebol, alugando o passe para Vasco, Santos, Flamengo e Fluminense.

;No meio da ditadura militar, ter conseguido levar minha carreira até o fim desse jeito, jogando em grandes equipes até os 35 anos, era inimaginável. Eu estava sozinho na minha época, mas, mesmo assim, consegui mexer na estrutura;, comemora Afonsinho, satisfeito das escolhas que tomou durante a carreira. ;A cada dia que passa, fico mais convicto de que optei pelo caminho certo. Fiz muitos amigos em áreas diferentes. O futebol é uma coisa muito fugaz. Então, se ainda sou lembrado, é porque lá atrás eu tomei uma posição;, diz.

Seguido e espionado
Um dos maiores rebeldes da história do futebol brasileiro não demorou a ter dois dossiês registrados no Serviço Nacional de Informações (SNI). ;Se você falava de política e era barbudo, acabava diretamente ligado a Cuba ou a alguma guerrilha. Além da imagem, eu discutia política, algo mais consequente. A ligação era imediata, não tinha como não ser;, relembra Afonsinho.

Perseguição ao Rei


Por exigência de Geisel, punho erguido tirou Reinaldo da Seleção  (Arquivo EM/D.A Press )
Por exigência de Geisel, punho erguido tirou Reinaldo da Seleção

Um dos maiores atacantes da história do futebol brasileiro, Reinaldo, ídolo do Atlético-MG, foi o primeiro jogador a falar abertamente contra a ditadura. Ocorreu em 1977, quando o jornal independente Movimento publicou a entrevista com o craque sob o título ;Reinaldo, bom de bola e bom de cuca;. Nela, o então centroavante da Seleção Brasileira defendeu eleições diretas, anistia aos exilados e pediu o fim do regime ditatorial. Não demoraria a sofrer retaliações.

;Na época, ninguém tinha a coragem de contestar a situação, mas, lentamente, se percebia uma abertura. Alguns setores da sociedade começavam a se posicionar para pressionar os militares;, recorda Reinaldo, hoje com 57 anos, em entrevista ao Correio. ;Resolvi falar porque achei que os jogadores também deveriam opinar. O futebol sempre era considerado o ópio do povo, um instrumento da ditadura. Falei para mostrar que não era bem assim.;

Não era a primeira vez que o Rei da torcida atleticana se mostrava interessado em questões sociais. Antes, ele já comemorava os gols com o simbólico gesto do punho para o alto, ligado aos Panteras Negras dos Estados Unidos ; consequentemente, contra o racismo ;, mas que passava o recado de contestação ao sistema no Brasil. ;Tinha a conotação racial, mas era um gesto político;, confirma Reinaldo, que faz questão de afirmar que não participava de nenhum grupo.

A liberdade tomada pelo jogador irritou os militares, personificados na figura do almirante Heleno Nunes, presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD). A primeira retaliação veio na final do Campeonato Brasileiro de 1977 (ocorrida em 5 de março de 1978), quando ele foi suspenso às vésperas da final, entre Atlético e São Paulo, ;por forças superiores;. O time paulista ficou com o título nos pênaltis.

Pouco depois, na despedida da Seleção para a Copa do Mundo da Argentina, Reinaldo foi levado para conversar pessoalmente com o presidente Ernesto Geisel, no Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul. Recebeu o recado claro: ;Vai jogar bola. Deixa que a política a gente faz;.

No primeiro jogo, porém, fez o gol do empate em 1 x 1 com a Suécia e não resistiu: punho para o alto. Só fez mais um jogo, o 0 x 0 contra a Espanha na segunda rodada. ;Depois disso, o almirante Heleno Nunes foi pessoalmente à Argentina me tirar do time;, recorda.

A perseguição a Reinaldo continuou praticamente até o fim da carreira. Foi alvo de homofobia ; só por ter amigos gays ;, chamado de drogado e perdeu a chance de jogar a Copa de 1982, acredita, por influência política. ;Mas não me arrependo de nada. Continuei participando de todas as ações em defesa da democracia que achava que deveria.;

O futebol sempre era considerado o ópio do povo, um instrumento da ditadura. Resolvi falar para mostrar ue não era bem assim;
Reinaldo, ex-atacante do Atlético-MG
Antes da abertura, a democracia

Coletivamente, o primeiro e único movimento de jogadores contra o regime militar foi a Democracia Corinthiana. Ela surgiu graças à eleição de Waldemar Pires para a presidência do clube paulista, em 1982, no lugar de Vicente Matheus. O sociólogo Adílson Monteiro Alves assumiu a diretoria de Futebol e abriu o diálogo com os jogadores. Liderados por Sócrates e Wladimir, o elenco passou a opinar sobre a gestão da equipe.

Um personagem importante para a Democracia Corinthiana foi o publicitário Washington Olivetto, responsável pelo marketing do Timão naquela gestão. Foi ele quem forjou o nome do movimento ; após o jornalista Juca Kfouri perguntar se aquela era uma ;democracia de corintianos; ; e idealizou a marca do grupo, mesclando as logomarcas do PMDB, partido de oposição do governo, e da Coca-Cola.

;Passamos a utilizar mensagens na camisa do Corinthians para chamar a atenção da população;, explica Olivetto à reportagem. A primeira foi ;dia 15 vote;, em 27 de outubro de 1982, no jogo contra o São Bento pelo Paulistão. O clube fazia, assim, um apelo aos brasileiros para que comparecessem às urnas, dali a 19 dias, para escolher os deputados estaduais. Em seguida, vieram recados como ;diretas já; e ;eu quero votar para presidente;.

;Aquele movimento só foi possível graças ao fato de os dirigentes terem a mesma idade e os mesmo anseios dos jogadores;, opina Olivetto. ;Compartilhávamos a frustração de nunca termos votado para presidente e o fato de não gostarmos do governo militar;, diz o publicitário, ressaltando que os jogadores, principalmente Sócrates, eram a essência da Democracia Corinthiana.

Para o antropólogo José Paulo Florenzano, autor do livro A Democracia Corinthiana ; práticas de liberdade no futebol brasileiro, os jogadores compartilhavam as ideias ;dos movimentos dos operários do ABC paulista, dos setores progressistas da Igreja Católica e dos partidos de oposição;. ;Veio em sintonia com a mobilização da sociedade brasileira pela redemocratização do país;, explica. Mas não durou para ver a abertura, já que foi esvaziada em 1984, com o fim da gestão de Waldemar Pires no Timão.

;Eu teria jogado na Seleção Brasileira se eu tivesse uma carreira comum. Mas, por ter feito as opções que fiz, isso me deixou numa situação diferente;

Afonsinho, ex-meia do Botafogo

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