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Crise diplomática no "Dia da Fúria"

Palestinos atendem a apelo do Hamas e travam confrontos com a polícia em Jerusalém Oriental. Enviado dos EUA adia viagem a Israel

postado em 17/03/2010 07:00
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-->O jornalista Abdullateef Barakat, 28 anos, viu um rapaz caminhar perto dele sem um dos olhos. Entre 10h e 18h de ontem (hora local), Jerusalém Oriental ; a parte árabe da cidade santa ; transformou-se em um barril de pólvora. Armados de pedras e coquetéis Molotov, jovens palestinos entraram em confronto com cerca de 3 mil policiais israelenses nas regiões de Al-Esawiyyeh, Cidade Velha, Ras Alamood, Monte das Oliveiras e Qalandia.


;Nós nos sacrificamos por Al-Aqsa;. ;Allahu Akbar (Deus é grande, em árabe);. ;Queremos viver em paz, parem de combater nossas santidades.; Eram os gritos que dividiam espaço com as ambulâncias. Pelo menos 60 palestinos foram detidos e 91 pessoas ficaram feridas. O ;Dia da Fúria;, convocado pelo movimento fundamentalista islâmico Hamas, mobilizou milhares de palestinos e passou incólume pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que visitava ontem a capital. Os protestos tinham como alvo uma decisão do governo de Israel de inaugurar a sinagoga da Hurva, reconstruída próximo à Mesquita de Al-Aqsa.

A reativação do santuário judaico, 62 anos depois de ter sido destruído pelos jordanianos, se soma ao agravamento da crise entre Estados Unidos e Israel, deflagrada pela expansão de assentamentos judaicos em Jerusalém Oriental. George Mitchell, enviado especial dos EUA para o Oriente Médio, adiou para o fim de março a visita que faria ontem a Israel. Já a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, exortou mais uma vez o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a provar seu compromisso com a paz. Segundo ela, as autoridades de Washington e de Jerusalém realizam intensas conversações sobre como reparar o dano provocado pelo anúncio sobre as colônias. ;Estamos engajados em consultas muito ativas sobre os passos que demonstrariam o comprometimento necessário ao processo;, comentou. Em nota citada pela agência Associated Press, Mark Regev ; porta-voz de Netanyahu ; garantiu que ;Israel tem provado, ao longo dos anos, o compromisso com a paz, em palavras e ações;.

Para Barakat, a justificativa não é o suficiente. ;Centenas de jovens saíram às ruas para prevenir os israelenses de destruírem a Mesquita de Al-Aqsa;, disse ele ao Correio, por meio da internet. ;Nós nos sentimos como se Israel estivesse travando uma guerra contra o islã;, acrescentou. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, pediu calma. ;Eu reafirmo, sem engano: os assentamentos são ilegais sob o direito internacional;, disse. Ki-moon sublinhou que ;o status de Jerusalém é tema de negociações finais;.

Em visita à Cisjordânia, o analista político iraquiano Alon Ben-Meir, professor de relações internacionais da Universidade de Nova York, minimizou os efeitos da crise. ;Essa não é a pior fase na relação entre EUA e Israel, que já dura mais de seis décadas. As ligações israelo-americanas têm experimentado altos e baixos no passado, particularmente com o presidente George H. Bush e o primeiro-ministro Yitzhak Shamir, mas os laços permaneceram profundos, com colaborações nos setores militar, tecnológico, cultural e de inteligência;, afirmou. Ben-Meir admite que o anúncio de Netanyahu sobre os assentamentos representa um insulto aos esforços dos EUA pela paz. ;Estou confiante de que a fúria passará e Mitchell reagendará a visita.;

Ex-negociador para o Oriente Médio nos governos republicano e democrata, Aaron David Miller crê que o adiamento da viagem de Mitchell é uma ;pequena nota de rodapé; em uma história de tensões entre EUA e Israel. ;O que importa é se um acordo sobre o tema das fronteiras será ou não alcançado;, comentou, por e-mail. Miller lembra que os temas atuais não inferem apenas discordâncias sobre a política, mas uma questão de confiança. ;Se isso não for reparado, as relações sofrerão. Hillary Clinton usou palavras mornas. Mas ainda estamos longe de qualquer esforço sério para reparar o dano feito;, concluiu Miller, analista do Woodrow Wilson Center, em Washington.


Entrevista - Atef Ibrahim Mohammad Adwan


;Estamos convocando a terceira intifada;
Seu nome de guerra é Abu Sharif. Sua história revela livre trânsito na alta cúpula do movimento fundamentalista islâmico Hamas, acusado de matar mais de 500 pessoas em 350 atentados, desde 1993. Por meio do deputado palestino Mushir El-Masry, o Correio chegou ao também parlamentar e líder do Hamas Atef Ibrahim Mohammad Adwan. Em entrevista exclusiva por telefone, da Cidade de Gaza, ele exortou os moradores de Jerusalém Oriental a iniciarem a terceira intifada (levante palestino) e admitiu que qualquer foma de resistência ; incluindo operações suicidas ; é respaldada pelo direito internacional. Ex-ministro dos Refugiados e professor de ciência política na Universidade Islâmica, Adwan já foi preso várias vezes por Israel, sob a alegação de realizar ações terroristas, e trabalhou como conselheiro político e econômico do xeque Ahmed Yassin, líder espiritual do Hamas morto em 22 de março de 2004.

Por que o Hamas declarou o ;Dia da Ira; e qual o impacto da sinagoga de Hurva sobre os palestinos?
Quando terminar de ser reconstruída, ela será chamada de ;A Grande Sinagoga;. Ela estará no mesmo terreno da Mesquita Al-Aqsa, que é o local mais sagrado para os muçulmanos. Essa atitude de Israel tenta pressionar os judeus a mudarem suas mentes e a pensar: ;Essa é a mesquita mais sagrada para os palestinos e nós podemos construir prédios no mesmo terreno;.

A reabertura da sinagoga se insere no mesmo contexto da expansão dos assentamentos judaicos em Jerusalém Oriental?
Sim, eles (israelenses) estão tomando nossas casas, nossas terras e, ao mesmo tempo, nos forçam a nos mover de um lugar para outro. Atualmente, não podemos ver nossos parentes, não podemos ir ao mercado ou à universidade. Eles estão fechando todas as estradas e revistando todas as nossas mulheres. Algumas vezes atrasam nossos compromissos em até duas horas.

Como o senhor vê a crise diplomática envolvendo Estados Unidos e Israel?
Não é a primeira crise nem a última. Mas sabemos que os israelenses e o lobby judeu nos Estados Unidos estão trabalhando para resolver esse problema. Acreditamos que essa crise não vai se prolongar por muito tempo. Mas ela continuará até que os EUA consigam pressionar Israel a mudar sua política de assentamento. Isso será bom para nós. Mas não temos boa confiança nos Estados Unidos. Eles nada fizeram durante o genocídio.

O Hamas está considerando o início de uma terceira intifada?
Estamos convocando os palestinos de Jerusalém Oriental a fazer a terceira intifada, que é muito importante para mudar o curso desse conflito. Sem a nova intifada, nossos locais sagrados serão destruídos pelos israelenses. Não podemos nos dar ao luxo disso. Nós, muçulmanos, temos que respeitar e proteger nossos locais sagrados. Israel não está respeitando as tradições humanitárias. Não podemos ficar de pé vendo tudo ser tomado de nosso povo.

Uma terceira intifada legitimaria as chamadas ;operações de martírio;?
O direito internacional e todas as leis da humanidade conferem o direito a aqueles que estão sob ocupação de resistir aos invasores por todos os meios. Especialmente se os ocupantes usam a força excessiva. Neste momento, eles cometeram todo o tipo de crime contra nosso povo, principalmente durante a Guerra de Gaza, quando mataram 1.400 inocentes. Eles destruíram mais de 25 mil pequenas casas.

O presidente Lula visita Ramallah hoje. De que modo o Brasil pode ajudar no processo de paz?
Havia uma negociação de paz aberta 18 anos atrás. Nós acreditamos que o Brasil pode convencer os israelenses sobre a ameaça da ocupação para a nossa terra. Queremos construir nossa pátria, como qualquer pessoa neste mundo. Se Israel deseja realmente alcançar a paz, pode fazê-lo. Mas precisa pôr fim a essa guerra contínua. Queremos obter a paz, que seria boa para nosso povo, nossas crianças e nosso futuro. (RC)




Ouça entrevista com Atef Ibrahim Mohammad Adwan (em inglês)




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