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Artigo: Liu Xiaobo e os verdadeiros amigos da China

postado em 11/12/2010 08:00


John Ralston Saul

O governo da China, de sua livre vontade, acrescentou à Constituição do país um compromisso com ;o respeito e a proteção aos direitos humanos;. Isso ocorreu em 2004. Seis anos antes, havia assinado o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e, em 2008, conclamou um ;plano de ação nacional de direitos humanos;. Governos estrangeiros não podem ser culpados por esses compromissos. O mesmo vale para o Comitê do Prêmio Nobel da Paz e para o próprio Liu Xiaobo. Ele é o ex-presidente do Independent Chinese PEN Centre, mas está na cadeia porque acreditava nos compromissos da Constituição e do governo chinês.

Nos últimos dias, um simples coro continua a crescer: ;Libertem Liu Xiaobo;. Ele vem de todos os continentes. Para essas palavras, deveríamos acrescentar: ;Liberem sua mulher, Liu Xia, da prisão domiciliar;. E quanto a isso, soltem os 40 escritores encarcerados, incluindo aqueles que constam na lista de escritores da PEN International. E parem de assediar cidadãos leais, muitos deles membos da ONG Independent Chinese PEN Centre. Eles estão meramente exercendo seus direitos constitucionais.

Liu Xiaobo possivelmente descreveria as detenções e perseguições como manifestações externas de uma crise mais profunda. De uma forma ou de outra, Pequim é incapaz de perceber que suas ações estão minando sua credibilidade dentro da própria China. O Mandato do Céu, o lema pelo qual as dinastias imperiales ficaram conhecidas, tem sido perdido graças ao comportamento daqueles que hoje o detêm. Eles o perdem quando deixam de assegurar que a justiça seja feita. Quanto à influência que as autoridades chinesas querem desfrutar no mundo, ela também continua a minar. Todas essas são feridas auto-infligidas.

A liderança e a influência podem exigir uma força econômica ou militar. Mas isso também depende de um elemento fundamental: a confiança. O fato de que Pequim não tem a transparência, que é o resultado da liberdade de expressão e do respeito aos direitos humanos, sufoca a confiança de que a China pode provocar em todo o mundo. O que Liu Xiaobo reclama está claramente estabelecido na Carta 08, assinada hoje por milhares de cidadãos chineses que vivem na China. A tentativa da China de denegrir a Carta, ao afirmar que ela reflete as influências ocidentais, revela uma ingenuidade surpreendente. Os princípios da liberdade de expressão, dos direitos humanos e da igualdade, são normas estabelecidas na Ásia e na Europa, na América e na África. Claro, cada um se expressa de maneira diferente em diferentes sociedades. No entanto, eles são estabelecidos pela Constituição da República da China e têm raízes profundas na história chinesa.

Mao Tsé-tung o deixou claro em seu ensaio Contradições, de 1957. A romancista favorito de Mao, Lu Xun, ridicularizou os governantes autoritários, que tentavam subjugar a população, proibindo-os de se encontrar e se conversar. "O principal problema é que você não consegue impedir que o homem pense." Há um eco de Lu Xun no estilo agudo e penetrante de Liu Xiaobo. Mesmo Confúcio provavelmente teria assinado a Carta de 08: "Eu não aguento autoridade sem generosidade, a cerimônia sem reverência, a luta sem dor."

A realidade é esta. Há na China uma divisão ancestral entre reformistas e autocratas. Muitos dos reformadores estão fora das estruturas de poder, como Liu Xiaobo. Muitos deles fazem parte. Talvez uns e outros queiram diferentes regulamentos e conjuntos de reformas. Talvez não conheçam ou não gostem uns dos outros. Mas eles compartilham o desejo de uma sociedade mais igualitária e mais aberta. Por outro lado, são os todo-poderosos que temem a mudança e, muitas vezes, são protegidos pelas forças de segurança e pelo setor judiciário.

Seja dentro ou fora do sistema de poder, as reformistas representam uma grande força. Inicialmente, o Prêmio Nobel da Paz dado a Liu Xiaobo parecia ter levantado uma série de medidas repressivas. Mas, em outubro, o Comitê Central realizou sua reunião anual e foi como se o prêmio tivesse questionado a ilusão autoritária que a China poderia ganhar respeito internacional sem ter realizado uma reforma política e social. As autoridades chinesas afirmam que os ocidentais persistem na sua intimidação, e que o Prêmio da Paz é outra prova. Na verdade, é o contrário. Todo o mundo quer fazer amizade com a China. E não apenas por razões econômicas. Tomemos como exemplo as dezenas de milhares de escritores em mais de 100 países que compõem o PEN. Por que não gostariam de ter um relacionamento mais próximo com uma das culturas mais antigas e ricas do mundo? Em todos os domínios ; meio ambiente, militar e de desenvolvimento ;, o papel da China é essencial.

A pergunta que surge é a seguinte: O que queremos dizer por amizade? Sob a antiga terminologia da Guerra Fria, era preciso ser a favor ou contra a China. A amizade significava pouco mais do que a obediência cega. Não havia crítica possível a partir de ambos os lados. Mais e mais pessoas, como o chanceler australiano Kevin Rudd, demonstram que o conceito chinês de amizade (o de um verdadeiro amigo) se traduz como um zhengyon. Ou seja, um ser aberto, honesto, sem medo de críticas; em menos palavras, o que se espera de um verdadeiro amigo para sempre. De fato, a concessão do Prêmio Nobel da Paz pode ser vista como um gesto de amizade para a China.

Deixe-me me expressar como escritor. Os presos são, muitas vezes, os melhores amigos do regime. Espinhosos e desconfortáveis, como são os bons escritores e os verdadeiros amigos. Muitos funcionários do governo querem menos corrupção, melhores condições para os trabalhadores, menos acidentes em minas, um adequado sistema da educação pública, um sistema de saúde decente. Anseiam por uma sociedade mais justa. Tudo isso é fundamental para a mensagem dos escritores na prisão. Há uma verdade bem establecida que se manifesta por essas mensagens. A liberdade de expressão não garante nada. No entanto, é a chave para qualquer reforma viável. Aí está a necessidade de se celebrar uma voz corajosa como a de Liu Xiaobo. O primeiro passo, o mais fácil, é que o libertem.

John Ralston Saul é escritor canadense e presidente da ONG International PEN, fundada em 1921 para promover a amizade e a cooperação entre intelectuais de todo o mundo

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