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Entrevista: Embaixador do Irã comenta declarações de Dilma sobre Sakineh

postado em 12/12/2010 08:59
De uma posição privilegiada, ao lado da Esplanada dos Ministérios, eles acompanharam atentamente todos os desdobramentos das políticas interna e externa do país nos últimos anos, e o avanço do Brasil no cenário internacional. Enviados a Brasília para serem os olhos e ouvidos de seus países por aqui, como demonstram as comunicações reservadas da diplomacia americana reveladas nas últimas semanas pelo site WikiLeaks, eles seguiram todo o desenrolar do processo que levou Dilma Rousseff a ser eleita sucessora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Agora, não conseguem esconder a expectativa sobre como será o governo Dilma em relação ao mundo e, em especial, aos países que representam.

Ao Correio, embaixadores dos principais parceiros do Brasil contaram, nesta série de entrevistas, como seus governos encararam as relações bilaterais durante os oito anos da gestão Lula e o que esperam para os próximos quatro anos, com Dilma. A conversa que abre a série é com o embaixador do Irã, Mohsen Shaterzadeh, que responde às primeiras declarações da presidente eleita sobre o caso da iraniana Sakineh Ashtiani e sobre a abstenção do Brasil em condenar Teerã em relação aos direitos humanos, afirmando que a preferência do Irã é por ;trabalhar os pontos comuns; na relação bilateral. ;Não temos tempo para pensar nos pontos de divergência que possam existir;, cravou. Logo após ser eleita, Dilma disse que considera um ;ato bárbaro; a condenação à morte por apedrejamento. Também afirmou, ao jornal The Washington Post, que discorda da abstenção do governo brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas, quando foi discutida a condenação do Irã por violações dos direitos humanos.

Shaterzadeh diz estar ;seguro; de que o governo Dilma manterá a política do seu antecessor em relação a Teerã, e prevê que as relações comerciais e o investimento entre os dois países atinjam US$ 10 bilhões dentro de no máximo cinco anos. Ele, no entanto, critica o comportamento dos bancos brasileiros, que vão ;muito além do conteúdo das sanções; da ONU ao travarem negócios entre os dois países. E faz um alerta: ;Existem países muito mais próximos do Irã de quem podemos comprar (;). Se continuarem esses problemas gerados nos bancos brasileiros, pode ser que revisemos nossa troca comercial;.

Sobre o programa nuclear de Teerã, o embaixador garante que seu país continuará pedindo a participação do Brasil e da Turquia nas negociações com o grupo 5 1, formado pelos membros permanentes do Conselho de Segurança e pela Alemanha. E não desconsidera parcerias com o Brasil na área de energia nuclear. ;Poderia existir, no futuro, uma cooperação entre os dois países no campo de energia nuclear para fins pacíficos. Não há nenhum obstáculo para conversar sobre isso.;


Como o senhor avalia as relações com o Brasil nos oito anos de governo Lula?

Eu dividiria a relação bilateral, durante esse período, em duas fases. A primeira, até 2008, quando o comércio bilateral já teve um aumento de quase 300%, de US$ 500 milhões para US$ 1,8 bilhão. Mas nos outros campos, como o político, a relação não era tão boa. Na segunda fase, no entanto, houve visitas de alto nível. Em novembro de 2009, o presidente (Mahmud) Ahmadinejad visitou o Brasil com a maior delegação empresarial da história do Irã. O encontro entre os dois presidentes foi excepcional, durou quase cinco horas e foram conversados assuntos sérios de interesse comum. O presidente Lula falou do direito do Irã a desenvolver um programa nuclear pacífico, e o presidente Ahmadinejad defendeu que o Brasil tenha um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Em maio de 2010, tivemos a visita histórica do presidente Lula. O número de documentos assinados nas duas visitas foi três vezes maior do que o total dos acordos assinados entre os dois países nos últimos 50 anos. Isso representa o grande interesse das autoridades de ambos os países em desenvolver as relações. Durante a visita do presidente Lula, também foi assinada a Declaração de Teerã, que pode ser vista como um ponto da partida para as relações internacionais daqui para frente.

O que fez com que as relações melhorassem no campo político partir de 2008?
O interesse dos nossos dois líderes (os presidentes Lula e Ahmadinejad). Mas é preciso dizer que todas essas conquistas só foram possíveis pelo caráter valioso e carismático de um personagem popular e sincero, como o presidente Lula, no topo da diplomacia brasileira. O presidente Lula não é uma riqueza para o Brasil apenas, mas um personagem muito importante para o mundo, que o mundo todo respeita.

Então a mudança no Planalto pode abalar essa aproximação?
Eu enfatizei a figura do presidente Lula, mas considerando também os políticos do seu governo (como Dilma Rousseff). Estamos seguros de que as políticas do presidente Lula vão ser mantidas. E, em alguns eixos de posturas comuns, como a justiça social ou o combate à pobreza e à exclusão social, os dois países podem continuar trabalhando e desenvolver ainda mais parcerias. Podemos trabalhar juntos também na mudança na ordem da governança mundial, no processo de paz no Oriente Médio, em cooperações com países da África, da América Latina, do Oriente Médio e da Ásia Central.

Mas a presidente eleita declarou que não concorda com a abstenção do Brasil em condenar Teerã em relação aos direitos humanos, e disse considerar um ;ato bárbaro; o possível apedrejamento da senhora Sakineh. Isso não anuncia uma postura um pouco mais crítica em relação ao Irã?
Nossa preferência é trabalharmos pontos comuns entre os dois países. Acho que existem tantos pontos comuns no nosso relacionamento que não temos tempo para pensar nos pontos de divergência que possam existir. No caso da senhora Sakineh, a sociedade brasileira precisa de mais informações. Acho que é bom demonstrar essa sensibilidade em relação às mulheres, por meio da imprensa brasileira, em relação também aos outros países, como os EUA, que condenaram à morte aquela senhora Teresa (Lewis, executada em 23 de setembro). Certamente, é possível questionar essas coisas nos outros países.

Como o governo iraniano recebeu a decisão brasileira de não condenar Teerã por violações?
É uma atitude tradicional do Brasil se abster nesse tipo de votação. E politizar a questão dos direitos humanos não é do interesse de muitos países, mesmo os que sugeriram essa resolução, que também são conhecidos por violarem os direitos humanos da sua população. Basta olhar os documentos que existem no Conselho de Direitos Humanos (da ONU). Quantos processos existem contra os EUA? O Irã, por sua vez, é o país mais democrático do Oriente Médio, especialmente em relação às mulheres: 65% da população estudantil é formada por mulheres, 40% dos nossos médicos e dos nossos professores universitários são mulheres. No Parlamento, a percentagem de mulheres é superior à verificada no Brasil. Será que esses dados não são considerados?

Foi notável como o comércio bilateral acompanhou a aproximação no campo político. A expectativa de Teerã é que esse quadro avance mais nos próximos anos?
Nos dois últimos anos, nossas relações comerciais atingiram um nível muito superior ao dos últimos 100 anos. Apesar de encontrarmos um comportamento inadequado dos bancos brasileiros, nosso comércio durante o primeiro semestre de 2010 aumentou 58%. A exportação iraniana para o Brasil nesse período teve um aumento de 500%. Esperamos que o comércio atinja, até o próximo ano, US$ 4 bilhões, mas os dois presidentes acordaram uma meta de US$ 10 bilhões, a ser alcançada no período de três a cinco anos.

Como aumentar dessa maneira as relações comerciais em tão pouco tempo?
Esses valores não são apenas de trocas comerciais, mas das relações econômicas entre os dois países. A principal potencialidade é em outros campos: na área de indústria, agricultura, energia. Por exemplo, estão na fase de negociações três projetos de empresas iranianas no Brasil, um deles na área de fertilizantes. Hoje em dia, a necessidade do Brasil é de 15 milhões de toneladas de fertilizantes por ano, e nós temos uma grande produção. Estão sendo avaliados outros cinco projetos que podem ser feitos através do setor privado brasileiro no Irã.

O ;comportamento inadequado; dos bancos brasileiros tem atrapalhado muito as negociações? E até que ponto a última rodada de sanções aprovada no Conselho de Segurança pode prejudicar o comércio com o Brasil?
Nenhuma parte dessas resoluções de sanções falou sobre restrições em trocas comerciais de produtos alimentares, que é o principal com o Brasil. Mas, infelizmente, o comportamento dos bancos brasileiros vai muito além do conteúdo das sanções. É uma atitude conservadora, que não corresponde ao interesse dos setores econômicos, que gostam de desenvolver as relações comerciais. Hoje, somos o segundo maior importador de carne bovina do Brasil. Mas existem países muito mais próximos do Irã de quem podemos comprar esse volume de carne. Se continuarem esses problemas com os bancos brasileiros, pode ser que revisemos nossa troca comercial.

O que o Brasil ainda pode fazer para ajudar o Irã a conversar com as potências ocidentais sobre seu programa nuclear?
A Declaração de Teerã foi o início de um caminho e deve ser a base das nossas conversas com o grupo 5 1. Por isso, pedimos a participação também do Brasil e da Turquia nessas negociações. O documento de Teerã não foi apenas uma declaração sobre a questão nuclear, mas uma atitude, um novo padrão de participação dos países emergentes nas questões importantes em nível internacional. No futuro, vamos ver outros desenvolvimentos baseados na metodologia da Declaração de Teerã. E esse é um ponto que desperta grande receio dos países ocidentais.

O Irã tem interesse em cooperar com o Brasil na área de energia nuclear?

Atualmente, não há conversas para desenvolver cooperação energética nesse campo, mas poderia existir, no futuro, uma cooperação entre os dois países no campo de energia nuclear para fins pacíficos. Não há nenhum obstáculo para conversar sobre isso. O desenvolvimento da tecnologia nuclear do Irã foi 100% nacional. Mas a área de energia é, como um todo, muito promissora, e acho que os países possuidores dessas fontes podem ter uma voz forte nas relações mundiais. O Irã é o segundo país do mundo em reservas de gás e o quarto em recursos de petróleo. As nossas reservas de petróleo vão durar, pelo menos, 200 anos. Com essa descoberta do pré-sal, o Brasil também, certamente, vai ser um país forte na área de energia. Juntos, podemos traçar as políticas justas na área de energia para o mundo.

Mas os dois países não vão competir por esse mercado?

As economias do Brasil e do Irã são complementares, e não concorrentes. E consideramos que as políticas brasileiras não são de dominação. Acho que as preocupações estão em outro lugar. O futuro da humanidade é ter acesso cada vez menor a recursos hídricos e energéticos. Os países dominantes pensam em como dominar esses recursos, que estão concentrados em alguns países. Nações como o Irã e o Brasil pagaram caro por sua soberania e sua independência, e têm que se esforçar para mantê-las.

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