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Em um ano à frente da Igreja, papa Francisco mudou a imagem do pontificado

A nova "papamania" não garante o sucesso das reformas na Cúria Romana

postado em 13/03/2014 12:10
Ele reconquistou a admiração de católicos e céticos pela rígida e hierárquica Igreja Católica. Voltou a lotar a Praça de São Pedro, no Vaticano, durante audiências e orações. Amoleceu o coração de mais de 3,5 milhões de jovens espremidos na Praia de Copacabana, em julho do ano passado, na Jornada Mundial da Juventude ; o primeiro grande evento internacional do pontificado. Lavou os pés de presidiários, abraçou doentes, carregou ovelha nos ombros, fez duros discursos contra o próprio clero e cativou o povo com bênçãos, sorrisos e um jeito latino de ser.

Com Francisco, o Vaticano começa a se abrir para as questões do mundo no novo século
Há um ano, o cardeal Jorge Mario Bergoglio virava papa Francisco e iniciava uma guinada na imagem da instituição que representa 1,2 bilhão de pessoas do mundo inteiro. O argentino que antes de virar padre namorava e jogava futebol alcançou o cargo máximo do catolicismo após a inusitada renúncia de Bento XVI. Jesuíta, com fortes raízes franciscanas e envolvido com temas políticos e sociais, o pontífice surpreendeu desde a primeira aparição.

As palavras e os gestos ousados do novo papa ajudaram a amenizar o momento sombrio da Igreja, atingida por uma ferrenha disputa pelo poder dentro da Cúria Romana, por desvios de dinheiro e por casos de pedofilia. Mas, ao contrário do que possa parecer, Francisco não é unanimidade. Justamente a simplicidade que encanta a maior parte do povo é o que provoca arrepios na ala mais conservadora. ;Eles estão morrendo de raiva;, nota o padre Geraldo de Mori, diretor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), em Belo Horizonte.

Reação conservadora


Se, dos muros do Vaticano para fora, a Igreja talvez viva seu melhor momento desde os tempos áureos de João Paulo II, internamente o combate de Francisco contra resquícios de uma instituição que insiste no poder político como defesa da fé encontra bastante resistência. ;Ele quer uma Igreja mais popular, enquanto muitos ainda alimentam a melancolia de uma época em que a Igreja dominava a sociedade;, afirma um padre que morou por 10 anos em Roma e tem trânsito livre no Vaticano.

[SAIBAMAIS]Na mesma noite do fim do conclave, em 13 de março do ano passado, comentários nas redes sociais já criticavam a postura de Francisco. Trata-se de grupos católicos pouco simpáticos ao Concílio Vaticano II, considerado fundamental para a atualização da Igreja aos tempos modernos. Se dependesse deles, as missas ainda deveriam ser rezadas em latim, com os padres de costas para a comunidade, e os papas usariam tiara imperial.



A avaliação dos ultraconservadores é de que Francisco exagera na espontaneidade, assumindo um grande risco de se desenvincilhar da doutrina da Igreja. ;Os católicos que guardam algum senso real de sua fé estão sendo escandalizados pelas palavras e ações do homem que está atualmente sentado na cadeira de Pedro;, diz o texto de um dos vários blogs criados para ridicularizar declarações do papa. ;Agora, é a vez da Igreja de todos, onde vale tudo;, completa o texto, em tom de ironia.

Não à toa, o que mais católicos e não católicos se perguntam, diante da papamania, é: até onde conseguirá chegar Francisco? Esse questionamento serviu de inspiração para a manchete da edição argentina do diário francês Le Monde do mês passado, que trouxe um especial sobre o primeiro ano de papado do argentino e sumiu das bancas em poucos dias. ;Continuidade ou transformação?;, provoca o jornal, sustentando um dilema ainda sem resposta.

Palavra de especialista: informação só por cargo

;Não me parece que o papa Francisco esteja pensando em marketing. Ele demonstra, de fato, ser uma pessoa muito voltada à religiosidade e aos princípios da Igreja, com muita espontaneidade. Como outros papas, incluindo João Paulo II, ele está tão em sintonia com a sociedade que acaba criando, como consequência, uma imagem favorável, não só perante a comunidade católica. O carisma dele, claro, ajuda para isso. O papa Francisco está de acordo com o seu tempo, consegue inspirar pelo exemplo;.

Ricardo Teixeira, professor dos MBAs da Fundação Getulio Vargas


É uma revolução na relação com a sociedade%u201DEntrevista Evangelina Himitian

Evangélica, filha de um respeitado pastor argentino, a jornalista Evangelina Himitian, 36 anos, virou grande admiradora do primeiro papa latino-americano na história da Igreja Católica. É ela a autora do livro A vida de Francisco ; o papa do povo, que teve mais de 70 mil exemplares impressos em 16 países. Foi a primeira biografia do pontífice a chegar às prateleiras, praticamente um mês após o conclave que o elegeu. Não à toa, tornou-se produto oficial da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, em julho do ano passado.

Há três meses, o produtor italiano Pietro Valsecchi anunciou que está preparando um filme inspirado nos escritos de Evangelina. A produção será rodada em inglês e terá versões para cinema e televisão. O galã espanhol Antonio Banderas está entre os cotados para interpretar Francisco.

Em entrevista ao Correio, a jornalista destaca a reaproximação da Igreja com a sociedade a partir do carisma do papa argentino e diz que, apesar de a Franciscomania não parecer passageira, o papa terá bastante dificuldades para realizar mudanças profundas na Cúria Romana. Tornar a instituição transparente será, para Evangelina, o maior desafio dele.

O que mudou na Igreja nesse primeiro ano de papado?

Mais do que mudanças na Igreja, mudou a forma como a sociedade, de maneira geral, percebe a Igreja, o papa, outros líderes religiosos e até a própria fé. Antes de Francisco, a instituição estava desvalorizada, por várias razões: casos de corrupção, abusos, mau uso de dinheiro. E também porque não estava sabendo se comunicar. Nesse sentido, Francisco foi fundamental. Ele abriu a possibilidade de repensar algumas questões. Mesmo mantendo os valores fundamentais, ele se apresentou como figura inspiradora ao mostrar ser possível uma reconciliação da Igreja com o estilo de vida atual.

Passado o encanto inicial, a Franciscomania é moda ou algo que se sustenta?
Existe, sim, algo de moda nisso tudo. Mas chegamos ao primeiro ano de pontificado e, nesse tempo todo, não houve uma única semana em que Francisco não estivesse presente nos jornais do mundo inteiro. Muitos se perguntavam se os gestos dele eram populistas ou marqueteiros. Mas, se analisarmos o fenômeno Francisco, podemos concluir que é algo que se sustenta. Moda alguma dura tanto tempo. Há muito simbolismo, mas também muito conteúdo em tudo que ele tem feito.

As mudanças chegarão à Cúria Romana de maneira profunda?
As mudanças, até aqui, não têm sido superficiais. Repito: o clima é outro. A Igreja tinha problemas de imagem, estava bastante deteriorada. Agora, está em curso uma revolução na relação com a sociedade. Para que isso se traduza em transformações internas, falta consenso. As reformas na Cúria não serão fáceis.

Por quê?
Pela quantidade de interesses que existem lá dentro. Ainda assim, Francisco parece ter a decisão firme de levar as reformas adiante, buscando a via do consenso. Digo isso em relação a temas como divórcio, homossexualismo...

Pode-se esperar mudanças revolucionárias nesses temas?
Não. No que diz respeito à doutrina da Igreja, não. Francisco é um conservador nesse aspecto. Porém, é uma pessoa bastante progressista em termos sociais e faz o exercício permanente de provocar uma reflexão sobre o cumprimento da doutrina, sobre as más aplicações dela e, mais do que isso, sobre a aplicação dos dogmas sem amor. Mais do que impor a doutrina, Francisco parece disposto a mudar a forma como a Igreja se apresenta ao mundo. Isso, de certa forma, é revolucionário.

Qual o maior desafio do papa?
Tornar a Igreja uma instituição transparente, para que ela possa gozar de credibilidade sustentável. Para que, com a saída de Francisco, a instituição não volte a viver sob uma sombra. A transparência na Igreja, hoje, é necessária em todos os sentidos: no Banco do Vaticano e em relação à pedofilia, por exemplo. A sociedade espera ações muito mais concretas, para que os gestos e as palavras do papa tenham correlação com o que acontece internamente na cúpula do catolicismo.

E na América Latina, qual foi o real impacto do primeiro papa do continente?
Francisco imprimiu um caráter bastante latino ao pontificado. Argentinos, brasileiros, todos nós nos identificamos com ele, com esse jeito próximo de ser. Bento XVI é um grande teólogo, um especialista, mas era um papa distante. Francisco é diferente. O papado dele não é frio e, por isso, mexeu também com a Europa e com os Estados Unidos.

Qual o momento mais importante do papado, até aqui?
A visita ao Brasil. Não lembro de nenhuma outra Jornada Mundial da Juventude com tanto impacto, com o mundo inteiro olhando para ela. Foi como se a sociedade voltasse a se interessar por Deus.

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