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Colômbia: "sair do conflito é trabalho para gerações", avalia Harnisch

Chefe da Cruz Vermelha na Colômbia analisa a rejeição do acordo de paz e pede apoio para seguir com a ajuda humanitária aos civis

Silvio Queiroz
postado em 10/10/2016 06:00

Chefe da Cruz Vermelha na Colômbia analisa a rejeição do acordo de paz e pede apoio para seguir com a ajuda humanitária aos civis

Foi ainda sob o impacto da desconcertante rejeição nas urnas do acordo de paz entre o governo do presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) que chegou a Brasília, para visita oficial, o chefe da delegação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no país vizinho. ;Na tarde do plebiscito, a pergunta nas embaixadas e em todo lugar era: e agora?;, conta o suíço Cristoph Harnisch, com a experiência de três décadas na organização, os últimos quatro passados na Colômbia. O período coincide com o desenrolar das negociações de paz entre o governo e as Farc, em Havana, que produziram um acordo considerado histórico para pôr fim a 52 anos de guerra.

;As marcas desse conflito são muito profundas, e por isso sair de um conflito é tão complicado;, reconheceu Harnisch, em entrevista exclusiva ao Correio, entre uma concorrida agenda de compromissos políticos e diplomáticos. O chefe do CICV na Colômbia teve reuniões com o governo brasileiro e com os embaixadores de países vizinhos, onde as operações do comitê são coordenadas pela delegação sediada em Brasília. Embora não tenha discutido a participação concreta em operações relacionadas ao pós-conflito, ele procurou enfatizar a necessidade do apoio ativo dos vizinhos para que o processo de paz colombiano não fique pelo caminho ; tanto mais após a premiação de Juan Manuel Santos com o Nobel da Paz. ;Não se trata apenas de financiamento, é também o apoio político e diplomático;, define.

Harnisch não perde as esperanças com o impasse e busca seguir em frente com a implementação dos acordos de natureza humanitária selados pelas partes no âmbito do acordo geral ; entre eles, para o desengajamento de menores das filas da guerrilha. ;Vejo uma vontade bastante produtiva de ambos os lados;, avalia, convencido de que a pacificação do país ;é trabalho de todos, não só dos políticos;.

Quais foram os temas tratados na visita ao Brasil?
Vim a pedido da delegação regional do CICV, que cobre vários países. É parte dos esforços para difundir o que faz o comitê no campo operacional e falar das consequências humanitárias de um conflito ; qual é a nossa resposta a essa situação. O mandato do CICV é proteger e assistir as vítimas de um conflito armado, o que não é fácil. Não é como a operação de uma ONG, não é como uma ação das Nações Unidas, tem algumas características muito distintas. É muito importante que os governos e a comunidade diplomática tenham a oportunidade de entender melhor. E queremos também o apoio para que esse mandato possa ser exercido, não se trata apenas de financiamento, é também o apoio político e diplomático. E, claro, tudo isso depende do momento em que se chega a um país. No caso desta vinda ao Brasil, não foi intenção do CICV chegar aqui justamente um dia depois do plebiscito na Colômbia (sobre o acordo de paz com as Farc).

E como foi recebida a vitória do ;não;?
Como para muitos, na Colômbia e em toda a região, foi uma surpresa muito grande. Um delegado do comitê tem sempre contatos com a comunidade diplomática do país onde está. Conversamos muito com a embaixada brasileira em Bogotá sobre as conversações (de Havana), os resultados. Temos que ver que é um país onde, por quatro anos, o governo discute um acordo de paz com o movimento insurgente mais importante. Durante esse tempo, foram muitas informações sobre o que estava sendo discutido, e por fim houve a vontade política do governo de submeter o resultado a um plebiscito. A maioria das pessoas pensava que isso não poderia ser um ponto negativo. Então, a surpresa foi de todos, inclusive nossa, minha, porque as pesquisas indicavam algo diferente. Na tarde do plebiscito, a pergunta nas embaixadas e em todo lugar era: e agora?

Para vocês que têm um contato com a população atingida, o que parece que aconteceu? Eles não gostaram dos acordos?
O maior problema é que, para as pessoas no campo e mesmo nas cidades, as pessoas que não fazem política, é difícil entender o que são esses acordos. Nós ouvimos muita gente nas regiões mais afetadas pelo conflito, inclusive guerrilheiros, e todo mundo quer a paz. Mas o que é a paz? Em um país onde há um conflito de mais de 60 anos ; porque se diz que são 52, mas a violência vem de antes ;, quando se fala de paz, o que isso significa para as pessoas? Esse acordo dá garantias? E não podemos esquecer, jamais, que as pessoas que sofreram com o conflito têm ideias muito pessoais sobre ele, porque era aquilo que elas viviam. É muito difícil fazer uma pesquisa que reflita essas realidades. Não existe, neste país, alguma parte da população que não tenha um trauma. Este é um conflito que, em alguns momentos, teve grande intensidade, com violência e brutalidade bastante grandes, e isso não se esquece.

Chefe da Cruz Vermelha na Colômbia analisa a rejeição do acordo de paz e pede apoio para seguir com a ajuda humanitária aos civis

Dias antes da votação, um comandante das Farc pediu desculpas em Bojayá, onde houve o massacre de 2002. E a região do Chocó votou em massa pelo ;sim;...
É verdade. As regiões mais afetadas pelo conflito votaram pelo ;sim;, enquanto outras, mais urbanas ; mas também afetadas ;, votaram ;não;. Há sempre uma mistura entre o que as pessoas pensam do acordo e o que pensam sobre o governo, é uma decisão política. O que surpreendeu muito foi o nível de abstenção, de 63%. É uma situação nova, na qual não está ainda claro qual caminho o país vai seguir nas próximas semanas. Isso vai exigir muita discussão, porque o acordo é um trabalho sério, realizado durante anos. Se é para alterar ; ou corrigir, como preferem alguns ;, isso exige discussão. O interessante é que isso se dá nos marcos de um cessar-fogo bilateral que já dura mais de um mês e que mudou a vida nas regiões mais atingidas. Porque não há mais bombardeios, não há mais fustigamentos: é uma situação na qual as pessoas podem ver os benefícios concretos.

Esse impasse interfere de que maneira no trabalho do CICV?

O que fizemos durante esses quatro anos das negociações foi, de um lado, um papel de logística, ajudando a organizar o traslado dos negociadores das Farc da Colômbia para Cuba. Outra dimensão do trabalho foi dar conselhos, chamar a atenção para assuntos humanitários. E o que conseguimos, entre 2015 e 2016, foram três acordos de natureza humanitária: um sobre os desaparecidos; outro, sobre o desengajamento dos menores de idade e o terceiro, sobre a remoção de minas. Mas esses são acordos parciais no marco do acordo geral. E o que estamos vendo, no momento, é qual a disposição das duas partes para continuar a implementação. Seria muito negativo se dissessem que este não é o momento de implementar, porque as pessoas não podem ficar esperando. As famílias que têm desaparecidos, as que têm um menor na guerrilha não querem aguentar mais. Isso não é um grande problema, porque há tempo vejo uma vontade bastante construtiva de ambas as partes, não apenas para implementar o acordo, mas também para implementar iniciativas humanitárias. Porque localizar os restos de um desaparecido requer coordenação com autoridades do governo e a participação das Farc, e, para isso, se precisa de tempo. Como em todos os países em conflito, se as partes têm tempo para negociações, nem sempre têm tempo para assuntos humanitários. No meio da discussão política, esses três acordos foram um sinal bem claro de que estavam dispostos a tratar desses problemas. E não é uma coisa fácil, porque isso significa, para o governo e as Farc, olhar para trás e ver a violência pela qual foram responsáveis.

Já se fez algo no marco desses acordos?
Na questão dos menores, tivemos há três semanas a primeira operação de desvinculação (das Farc), com a saída de 13 para um centro de acolhimento. O CICR tem um papel muito bem definido: recebemos essas crianças das Farc e as encaminhamos para as organizações que vão prepará-las para voltar à vida civil. Já estão previstas outras operações, nas próximas semanas, e resta ver se elas serão efetivadas.

O senhor discutiu com o governo brasileiro sobre uma possível participação nessas operações?
Não chegamos a discutir, mas o governo do Brasil e os de outros países se colocaram à disposição para qualquer tipo de iniciativa. Isso depende muito das partes do conflito. No momento, está tudo em stand by.

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