Politica

Verbas emergenciais para Alagoas e Pernambuco são desviadas

postado em 06/02/2011 08:10

Enviada Especial

Marechal Deodoro (AL), Paripueira (AL) e Santana do Mundaú (AL) ; O pedaço do Brasil arrasado pelas enchentes de julho ainda vive dias de espera e pouca esperança. As quantias milionárias anunciadas pelos governos federal e estadual e noticiadas com otimismo pela imprensa não chegam nem perto da vida das pessoas que perderam tudo. Durante uma semana, o Correio percorreu municípios de Alagoas e Pernambuco para fazer o trajeto de parte das verbas emergenciais liberadas às pressas para socorrer as milhares de vítimas. Constatou que nos dois estados parte do dinheiro ainda não foi usado. O pouco que já foi investido serviu para iniciar obras sem licitação que andam a passos lentos. A partir de hoje, uma série de reportagens relata o destino de cifras milionárias enviadas para estados e municípios pelo governo federal, mas cuja finalidade ainda está muito longe de ser atingida.

O distanciamento entre as metas anunciadas e o que chegou à vida da população até o momento tem causas conhecidas. Uma delas é a liberdade com que agentes públicos de estados e municípios podem usar os recursos. Sob a rubrica de ;obra emergencial; é possível contratar sem licitação. Convênios informais são assinados e cabe a prefeitos e governadores a escolha das empresas contratadas. Uma seleção que leva em conta os acordos e interesses desses agentes e que ignora requisitos básicos que deveriam ser considerados na análise de quem vai receber dinheiro público.

[FOTO2]Toda essa liberdade de escolha é feita sem o controle dos órgãos federais responsáveis pela liberação dos recursos. O livre-arbítrio dos políticos para escolher quem vai realizar as obras permite a formação de uma teia de influências e troca de favores que coloca no rol de prestadores de serviços públicos até empresas que só existem no papel. No município alagoano de Marechal Deodoro, por exemplo, nada menos do que R$ 5 milhões chegaram aos cofres da prefeitura para a construção de um dissipador de energia ; uma espécie de barreira para conter o avanço do mar. O prefeito Cristiano Matheus (PMDB) é ex-deputado federal e escolheu a empresa Grécia Engenharia para comandar a obra milionária. A empreiteira, no entanto, não funciona no endereço cadastrado na Receita Federal.

Onde deveria ser sua sede, no município de Paripueira, está localizado um sítio abandonado que pertence ao irmão do engenheiro Ronaldo Melo, responsável pela obra. A chave do local fica nas mãos de um vizinho, que ganha uma ajuda de custo para receber as correspondências. Apesar de ninguém no município saber sobre a empresa, Melo é conhecido dos moradores porque já foi vereador de Maceió e assessor do deputado federal João Lyra (PTB-AL), um influente empresário do estado. Lyra, por sua vez, é padrinho político do prefeito Cristiano Matheus, responsável pela contratação da Grécia Engenharia.

Em Paripueira, empresa que toca obra milionária tem como endereço um sítio abandonadoQuestionado pela reportagem, o engenheiro Ronaldo Melo disse inicialmente que não funcionava em Paripueira porque tem um escritório em Maceió. Perguntado sobre o endereço real da empresa, no entanto, ele admitiu que a empreiteira só existia no papel. ;Realmente não tenho sede. Me registrei em Paripueira porque tenho amigos por lá. Mas acho que o que conta mesmo para fazer uma obra dessa é o currículo do engenheiro. Não teve licitação porque a obra é emergencial. Então o prefeito me escolheu. Tenho a empresa, mas ela sou eu;, diz ele. Cristiano Matheus não retornou os contatos da reportagem. O assessor da prefeitura Júlio Alexandre desligou o telefone ao ser questionado sobre os critérios usados para definir a empreiteira responsável pela obra.

Nenhum sinal
O município alagoano de Santana do Mundaú é outro exemplo de como é usado o dinheiro público liberado em caráter emergencial. No que restou do centro da cidade, algumas placas fixadas em meio a pedaços das casas que foram arrastadas pelas águas dão a pista do que deveria estar sendo feito ali.

Na beira do rio que transbordou, o anúncio de investimento de R$ 146.075 enviados pelo Ministério da Integração deveria servir para a reconstrução da rede de água e esgoto. Poucos metros depois, em frente a um dos locais onde os moradores estão reconstruindo suas casas em cima dos escombros, a placa diz que o governo federal vai investir ali R$ 3,1 milhões para refazer as vias urbanas. Nos dois casos, não há sinais de obras.

Apesar de a prefeitura ter recebido R$ 800 mil, nada foi feito para beneficiar a população atingida, que ainda lota alojamentos sem qualquer infraestrutura ou ocupa barracas de plástico. Pelo contrário, parte desse dinheiro ; cerca de R$ 300 mil ; teve o destino desviado. Em vez de ajudar na reconstrução da cidade, os recursos foram usados para pagar funcionários contratados pela prefeitura. O desvio de finalidade foi uma das irregularidades encontradas pelo Ministério Público Estadual. As denúncias resultaram na prisão do prefeito Elói da Silva e do secretário de Gestão, Marcelo Silva, filho do prefeito.

Além de pagar funcionários com dinheiro da verba emergencial, o prefeito foi acusado de desviar doações e mantimentos. Apesar de negar o crime, ele não sabe explicar por que os desvios foram encontrados. Seu filho, que também foi preso, diz que é perseguição e que não entende os motivos de um mandado de segurança ter determinado que ele está proibido de entrar nas repartições públicas. ;Nós não fizemos nada demais. Agora estão com esse negócio de desvios. Meu pai está sofrendo e a reconstrução do município estacionou;, diz.

Acordo com o MP
Pelo menos nisso o ex-secretário tem razão. A crise paralisou de vez o andamento das obras no município. O prefeito em exercício, Marcelo Souza (PSC), diz que está com medo de usar os recursos porque não tem equipe confiável para isso, já que secretários e servidores fazem parte do grupo do prefeito afastado. ;Acho que temos na conta uns R$ 500 mil. Estou esperando para ver o que será feito. Tem muita coisa para reconstruir e as pessoas ainda estão acampadas. Mas as falhas no processo inicial de reconstrução transformam a aplicação do dinheiro em algo delicado;, diz o prefeito, que teve de assinar um Termo de Ajustamento de Conduta com o MP.

Ao assistir de perto a prisão do prefeito Elói e a inércia do seu substituto, os moradores de Santana do Mundaú decidiram parar de esperar que a história tenha um desfecho e estão reconstruindo sozinhos suas casas. Nos mesmos terrenos onde as águas já levaram tudo uma vez, a população usa restos de construções para colocar novamente os muros das casas de pé. ;A água só levou metade das paredes. Meu marido é pedreiro. Arrumamos material de construção e ele completou o que tinha caído. Sabemos que tem riscos, mas se chover muito de novo a gente corre. O que não dá é para ficar sem moradia enquanto não sabemos o que fazem com o dinheiro que vem de Brasília;, diz Cícera da Silva, que vive na beira do rio com o marido e quatro filhos.


Pedido de ajuda ao TCU


A contratação de empresas a critério dos gestores nos estados e municípios não é controlada pelo governo federal. Segundo a ex-secretária de Defesa Civil do Ministério da Integração Ivone Valente, os órgãos não têm estrutura para verificar o histórico e as condições dos contratados para realizar as obras sob responsabilidade de gestores estaduais e municipais. ;Liberamos os recursos que são aprovados, mas não temos como fiscalizar cada um dos convênios firmados pelos prefeitos ou governadores. Eles só têm que nos prestar contas sobre o resultado, não acompanhamos a execução;, explica Ivone Valente, que comandou a Defesa Civil até dezembro do ano passado. Diante das irregularidades, o novo ministro da Integração, Fernando Bezerra, pediu socorro ao Tribunal de Contas da União (TCU).

A Corte irá fiscalizar a aplicação dos recursos que estão sendo liberados para Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul neste inicio de ano. Além disso, ele decidiu parcelar o repasse da verba emergencial a estados e municípios e promete só liberar o segundo lote depois que os auditores comprovarem o uso adequado do dinheiro. No caso de Alagoas e Pernambuco, no entanto, onde grande parte dos recursos já está nas mãos dos gestores das regiões, o jeito é esperar pela prestação de conta final. (IT)


Obras sem caráter emergencial


; Izabelle Torres
Enviada especial



Palmares (PE), Tamandaré (PE) e Branquinha (AL) ; A promessa do governo de dar celeridade à liberação dos recursos destinados a socorrer vítimas de catástrofes sempre representa uma chance de esperança para quem não vislumbra futuro. No entanto, com o passar do tempo e com a repetição dos discursos, os brasileiros começam a desacreditar na ação efetiva do Estado. Percebem que a pressa no envio de dinheiro para estados e municípios não resulta em obras que caminham rapidamente ou em soluções dos problemas a curto prazo. O Correio visitou algumas cidades beneficiadas por órgãos federais e constatou que em municípios de Alagoas e Pernambuco a maior parte das construções aprovadas há mais de seis meses está atrasada e já descumpre o prazo de 180 dias previsto pela Lei de Licitações para a conclusão das primeiras fases. Além disso, municípios listados pela Defesa Civil como beneficiados por verbas emergenciais no ano passado sequer foram diretamente afetados pelas cheias.

Em Tamandaré, distante 98km do Recife, o Ministério da Integração já pagou metade dos R$ 2,2 milhões reservados para reconstrução de canais afetados por cheias e enxurradas. A obra, no entanto, segundo o engenheiro responsável que estava no local, Tibério Freire, começou em outubro e até agora está com 40% concluída. A previsão do relatório que justifica a emergência era que 100% da canalização fosse realizada até dezembro do ano passado.

Apesar do caráter emergencial, nem os moradores que vivem em frente ao local onde a obra está sendo feita lembram de enxurradas na região. ;O que sei é que muitos prefeitos prometeram tocar essa obra. Esse atual conseguiu dinheiro para fazer, mas não tem nada a ver com enchentes. Não sofremos nada em julho e nem lembro quando a água aqui subiu. Conheço uma senhora, colega minha, que a casa dela molhou um pouco na entrada. Mas foi pouca coisa. Nada de emergência, não;, conta dona Albertina Maria da Silva, 73 anos, que há 20 vive na região.

De acordo com o secretário de Planejamento de Pernambuco, Alexandre Rebelo, Tamandaré não foi uma das prioridades do governo na lista de obras emergenciais. Tanto que o recurso foi repassado ao município litorâneo diretamente pelo Ministério da Integração e não pelo governo estadual. O prefeito José Hildo Júnior não estava na prefeitura no dia em que foi procurado pela reportagem e não retornou os contatos por telefone.

Terraplanagem
Em Alagoas, as obras de reconstrução estão atrasadas em todos os municípios. Em Branquinha, os R$ 900 mil destinados para a reconstrução mudaram pouco a vida da população. Apesar de a prefeitura informar que já começou a refazer escolas e a organizar os terrenos para as novas casas, a necessidade de reconstruir tudo distante da parte afetada fez com que o processo seja dificultado pela desapropriação de áreas. Segundo funcionários da prefeitura, falta até gente qualificada que entenda de leis e saiba conduzir a parte jurídica.

Apesar de o processo de reconstrução em Pernambuco ser muito mais célere do que em Alagoas, os atrasos na conclusão das obras estão em quase todos os municípios. Em Palmares, 300 casas estão em fase de construção. O governo cadastrou 1.823 famílias para receberem novas moradias até o próximo ano. ;O problema dos atrasos no estado é com a terraplanagem. Temos dificuldade com o solo. Mas mesmo assim acho que não há grandes atrasos. Fechamos acordos para a construção de casas ligadas ao Minha Casa Minha Vida e creio que depois dessa primeira etapa vamos conseguir acelerar o processo;, diz Alexandre Rebelo.

Em Palmares, foram autorizadas 33 obras, incluindo vias vicinais, pavimentação urbana, estradas, praças, sistema de abastecimento de água e esgotamento. A conta gira em torno de R$ 10,7 milhões. Segundo o governo, cerca de 44% dessas obras foram concluídas.


Personagem da notícia
Reconhecimento dos vizinhos

Palmares (PE) ; A demora das vítimas das enchentes de ver promessas dos políticos cumpridas e as próprias vidas voltando ao normal fez com que elas próprias reconstruíssem suas casas. Nos dois estados, moradores não apenas voltaram aos locais devastados pelas águas com medo de perder seus terrenos, mas decidiram reerguer suas moradias com as próprias mãos. Nenhum caso em Palmares comoveu tanto os vizinhos como o de seu Manoel Matias (foto). Aos 93 anos, ele tem tuberculose, é diabético e anda com dificuldade. Mesmo assim, levantou da cama e resolveu colocar sozinho o telhado da casa que construiu há 20 anos. O dinheiro da aposentadoria que serviria para comprar remédios foi usado para pagar madeiras de segunda mão e para dar ;um agrado; a alguns garotos que o ajudaram a recolher telhas pelas ruas da cidade.

Em 15 de dezembro, seu Manoel conta que subiu no telhado ouvindo os gritos da esposa Amara José e das duas filhas, desesperadas com a possibilidade de que ele caísse. ;Mas eu tenho problema de audição e os gritos não me assustam. Passei uma noite inteira lá em cima colocando telha por telha. Depois desci e dormi aqui no chão olhando para o telhado novo. Fiz isso porque quero morrer na minha casa;, conta ele, com a voz fraca e um sorriso que custa a aparecer. A poucos metros dali, uma casa de pé chama a atenção em meio aos destroços dos imóveis da vizinhança. Ali mora Maria das Graças Silva com dois filhos pequenos e o marido. ;Estamos isolados aqui na beira do rio porque decidimos voltar e subir as paredes novamente. Se os outros pudessem, voltariam também. Mas a gente conseguiu porque meu marido trabalha com isso porque é pedreiro e ele mesmo colocou os tijolos;, diz ela. (IT)

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