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Grito de independência

O modelo de captação de recursos conhecido como crowdfunding ajuda sonhos a saírem da gaveta

postado em 07/10/2012 08:00

O modelo de captação de recursos conhecido como crowdfunding ajuda sonhos a saírem da gaveta

Como tantas coisas que evoluíram com o surgimento e a expansão da internet, a vaquinha chegou ao século 21 diretamente ligada à rede mundial de computadores. Entretanto, no lugar de um chapéu passando entre os familiares ; e em vez de moedinhas esquecidas no bolso como forma de acalmar a consciência ;, temos hoje o chamado crowdfunding, prática que estimula boas ideias a saírem do papel por meio da força de quem acredita nelas, em qualquer lugar do planeta.

O termo é uma junção das palavras em inglês "crowd" ; colaborativo ; e "funding" ; financiamento. Os financiamentos colaborativos unem pessoas em torno de um projeto que é divulgado na internet. Aqueles que os capitaneiam deixam de esperar por subsídios governamentais ou patrocínios da iniciativa privada, oferecendo a chance de pessoas aleatórias doarem os valores que vão dar forma física ao que foi pensado, tornando-as verdadeiros mecenas modernos.

"O crowdfunding ajuda a fomentar o empreendedorismo. Ele permite que indivíduos ou empresas financiem de maneira colaborativa, com pequenas ou grandes quantias, suas ideias e seus negócios", afirma Alexandre Lopes, analista de atendimento individual do Sebrae Nacional. Apesar de ser algo novo no Brasil ; os primeiros sites especializados são de 2011 ;, o modelo já coleciona sucessos, inclusive em Brasília, em empreendimentos que vão bem além do mundo dos negócios.

O palco do povo

A atriz brasiliense Sarah Cintra, 33 anos, sabe bem o quanto a cultura de ir ao teatro ainda engatinha no Brasil. Mesmo assim, precisava achar um jeito de financiar um projeto que passasse as sensações que ela tinha ao ler a obra da escritora Clarice Lispector, uma das suas preferidas. "A escrita dela sempre mexeu comigo, sempre me afetou de alguma forma. Quando li Água viva, deu vontade de falar coisas do texto no palco. Amadureci esse projeto por três anos, até que ele tomou forma graças ao financiamento coletivo."

Como não precisava de muito dinheiro ; a peça era um monólogo, focado no texto e na atuação ;, decidiu arriscar pelo crowdfunding e conseguiu R$ 8.698, superando sua meta de R$ 8 mil. As doações vieram quase que totalmente da sua rede de contatos. "Em tese, é assim mesmo que funciona. A menos que você tenha uma projeção do tipo banda de rock, porque aí são os fãs mesmo que agilizam essa captação entre eles para ter o show em sua cidade", explica.

Mesmo assim, ela diz ter se sentido mais próxima do público, principalmente por ver que eles estavam dispostos a investir em arte. Segundo Sarah, o financiamento colaborativo proporciona um engajamento inédito do público, mas não pode ser a fonte principal de recursos. "É preciso lembrar que o cidadão que paga imposto está contribuindo para boa parte do que acontece nos palcos do Brasil, em projetos viabilizados por meio da lei Rouanet", observa.

A atriz aponta ainda o crowdfunding como uma forma de alterar o panorama de dependência total de investimentos governamentais que a arte sofre. Para isso, é preciso trabalhar a ideia entre a população de que qualquer um pode se tornar apoiador cultural. "Não temos o hábito nem de ir ao teatro, quanto mais de contribuir de maneira mais direta para que ele aconteça. Mas que é bacana ver que um determinado número de pessoas se mobilizou pra ver sua peça, isso é."

Um tabuleiro do tamanho do planeta

O modelo de captação de recursos conhecido como crowdfunding ajuda sonhos a saírem da gaveta Se você nunca conheceu alguém apaixonado por RPG (role playing game, também conhecido como jogo de papéis), não vai entender bem o porquê de o arquiteto Eduardo Caetano, 30 anos, ter sido tão bem-sucedido em seu projeto Violentina. Ele pediu apenas R$ 2 mil, mas conseguiu arrecadar R$ 9.192, doados por 116 incentivadores. "Minhas pretensões eram testar o modelo de financiamento para abrir novas portas para o mercado de RPG no Brasil e, claro, viabilizar meu jogo. Jogo há cerca de 17 anos, mas nunca havia imaginado me tornar autor. O retorno foi, e tem sido, indubitavelmente além do esperado", garante.

Durante a faculdade, Eduardo deixou as mesas de RPG de lado, mas a paixão não cessou. Segundo conta, o potencial de conectividade que a internet oferece produziu milhares de conteúdos e deu oportunidades a todos que tinham boas histórias a contar. "Outra coisa possibilitada pelo avanço tecnológico foi o barateamento e facilidade de acesso às gráficas, tornando muito mais fácil produzir um livro por conta própria, sem depender do grande mercado editorial e seus meandros", completa. Para o arquiteto, o financiamento colaborativo foi fundamental para que ele percebesse que poderia e deveria criar seu próprio jogo.

Ele acredita que seu sucesso não se deve só às facilidades de conexão entre jogadores, mas ao fato de que o mercado brasileiro já entende o financiamento colaborativo como um bom investimento. "É uma forma de possibilitar uma exploração cultural, no sentido inverso do modelo tradicional. Hoje em dia, cada vez dependemos menos das grandes empresas, tolhedoras do potencial criativo, para tornar real nossos sonhos", aponta.

"Uma das principais características do crowdfunding é o fato de ele oferecer baixíssimos riscos de prejuízo. Se a galera não compra sua ideia, ninguém sai perdendo. Mas, se comprar, você a materializa", destaca. Ele dá o exemplo do mercado norte-americano de RPG, no qual o crowdfunding vem sendo usado por empresas consolidadas como forma de testar o público com projetos interessantes, mas economicamente inviáveis pelas vias tradicionais de produção. "É o melhor exemplo de relação ganha/ganha/ganha", resume.

Apostando as fichas

Os sites que promovem o crowdfunding se espalham pela rede. Há desde os gigantes, como o KickStarter, criado em 2008 e que apoia projetos em tecnologia ; este ano, o projeto de um game arrecadou estupendos US$ 3,3 milhões de uma meta de US$ 400 mil ;, aos modestos, como o Offbeater, que existe para promover ideias ligadas ao universo da pornografia. Entre os brasileiros, o site Catarse virou notícia quando o projeto do documentário Belo Monte ; Anúncio de uma guerra se tornou o mais bem-sucedido no país em relação a valores, com 3.429 apoiadores e uma arrecadação de cerca de R$ 140 mil, superando com folga o orçamento inicial, de R$ 114 mil.

"O crowdfunding tende a ser esquerdista, porque empodera o povo, mas é liberal, já que cada um ajuda aquilo que lhe interessa. É uma ambiguidade saudável e que pode ser usada para tudo, mesmo que aqui tenhamos a regra de financiar apenas projetos de cunho criativo", explica Diego Reeberg, fundador e sócio do Catarse. Para ele, a principal medida do sucesso é a conquista da meta financeira, mas há outros pontos a serem levados em consideração. "Um projeto que tem muita exposição na mídia também está ganhando. Mas ele só é válido se consegue o valor esperado."

Analista de atendimento individual do Sebrae Nacional, Alexandre Lopes aponta como características indispensáveis a um bom projeto em financiamento colaborativo a criatividade e a inovação, além de conhecer bem o público-alvo da ação. "O conceito principal é que, nesse novo modelo, quem incentiva faz porque gosta e se identifica com os projetos. Surge a oportunidade de fazer parte de algo grande, mesmo contribuindo com pouco", ressalta.

André Gabriel, do Mobilize, que funciona direto no Facebook, garante que outra preocupação deve ser as recompensas. Nos projetos, quem doa pode receber compensações, que são definidas pelos criadores. Por exemplo, em filmes, os doadores podem ser figurantes ou terem seu nome nos créditos. "Entramos como mediadores, mas é preciso que existam boas recompensas, para estimular as pessoas", completa.


Consumo


Bem longe de Hollywood;

Quase cineasta, o estudante de audiovisual Pedro Bieler, 22 anos, começou a se preocupar em como terminaria seu curta-metragem ; exigência para a conclusão do curso ; com o pouco dinheiro que tinha. Mesmo tendo poupado durante seus anos na Universidade de Brasília (UnB), receava limitar roteiro e produção por questões orçamentárias. "O que eu tinha cobriria apenas 20% dos gastos. Já havia pensando no crowdfunding para outros projetos, mas não conhecia nenhum caso de sucesso em Brasília", lembra.

Decidiu arriscar e um vídeo foi colocado na rede para estimular o financiamento entre amantes do cinema. Precisavam de R$ 6 mil, mas o site escolhido só repassava os valores se a meta fosse atingida. "Por isso, decidimos pedir só R$ 2 mil. Era um valor bem menor do que precisávamos, mas já ajudava a colocar o filme para frente", conta Pedro. O retorno superou expectativas: ao todo, 47 apoiadores compraram a ideia, repassando R$ 4.950.

"Primeiro, vieram doações só de conhecidos, mas, depois, de pessoas que nunca tínhamos visto. Nos surpreendemos positivamente." Pedro estabeleceu recompensas. Mesmo quem doasse apenas R$ 10 já aparecia nos créditos da obra. "O financiamento colaborativo depende muito do projeto que você apresenta e o nosso se encaixava, por ser pequeno e cultural. Não tínhamos tempo para esperar editais e não conseguiríamos patrocínios grandes", explica.

Pedro afirma que os valores foram recebidos em menos de uma semana. O jovem diz ter ficado muito inseguro, mas seu exemplo fez com que vários colegas recorressem ao método para conseguir terminar seus trabalhos. Ele terá total controle artístico sobre o resultado, mas se preocupa com a recepção de quem o incentivou. "Lógico que você quer que fique bom, independentemente de quem investiu, mas rola uma expectativa de saber como as pessoas que puseram o dinheiro delas no filme vão encarar o trabalho final."

Um milhão de amigos

O modelo de captação de recursos conhecido como crowdfunding ajuda sonhos a saírem da gaveta
Um telefonema dos EUA aterrorizou o publicitário Luiz Alberto Marques, 69 anos, em maio deste ano. Ele ficou sabendo que seu filho Guga Marques, 38, havia sofrido um acidente saltando de paraquedas. De pronto, ele embarcou para a Califórnia. Guga foi levado para um hospital na cidade de Sacramento. "Nos apresentaram um diagnóstico de extrema gravidade e, por questões éticas e culturais deles, não nos deram nenhuma esperança. Mas fizeram todos os esforços possíveis e o meu filho sobreviveu." Até aquele momento, as despesas médicas estavam sendo cobertas pelo governo norte-americano. "Só que, depois de reverter o trauma, ele precisava começar um tratamento de reabilitação. Ficamos entre levá-lo a São Francisco ou trazê-lo para o Brasil", lembra Luiz Alberto.

Havia duas possibilidades. Manter Guga no hospital dos EUA durante a reabilitação custaria US$ 50 mil mensais. Em contrapartida, retornar a Brasília só seria possível em um avião totalmente aparelhado, o que não sairia por menos de US$ 100 mil. "Decidimos que o melhor era que ele ficasse conosco. Além do valor menor, ele nos teria por perto o tempo todo." Nesse meio tempo, Luiz Alberto foi recebendo e-mails e telefonemas de familiares e amigos. Assim, a história do acidente de Guga foi se espalhando. Quando lutava para saber como conseguiria juntar o valor necessário, doações começaram a surgir.

"Não tivemos tempo de ligar para ninguém e, mesmo assim, por meio das redes sociais, um monte de gente começou a doar ; e isso tomou uma dimensão enorme", recorda. Nesse boca a boca, um paraquedista amigo de Guga resolveu se valer de crowdfunding para organizar as contribuições. Os valores rapidamente se multiplicaram. "Jamais esperei essa comoção, foi algo emocionante. Eu não sabia que ele era tão querido." No fim, foram angariados cerca R$ 80 mil, o resto foi arcado pela família. "Foi importantíssimo. O custo total para trazê-lo de volta ficou perto dos R$ 180 mil. Imagine o quanto isso nos ajudou", completa Luiz Alberto.

Hoje, Guga continua em tratamento. Por conta da fratura no fêmur e na pélvis, ainda não consegue andar. A memória relacionada ao acidente se mantém apagada. Mas o fato de estar perto novamente da família é um grande incentivo para sua recuperação.

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