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O ar rarefeito

Os pacientes de doença pulmonar obstrutiva crônica veem sua autonomia declinar à medida que o fôlego diminui. A maioria deles foi fumante inveterado na juventude

postado em 14/10/2012 08:00
Os pacientes de doença pulmonar obstrutiva crônica veem sua autonomia declinar à medida que o fôlego diminui. A maioria deles foi fumante inveterado na juventudeUma brincadeira comum entre crianças é ver quem consegue passar mais tempo prendendo a respiração. Respirar é um ato tão fundamental que a disputa se resume em saber quem consegue uns segundinhos a mais de nariz tapado. Em sua inocência, os pequenos não imaginam a angústia de adultos cujos pulmões estão debilitados após anos de tabagismo. O desafio dessas pessoas é ter forças para fazer o oxigênio entrar no organismo.

Nos casos de doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), respirar deixa de ser natural para se tornar um esforço, pois as vias que carregam o oxigênio para os pulmões estão estreitadas (veja infográfico). Para muitos portadores desse mal, a solução é usar um cateter no nariz, ligado a um grosso cilindro de oxigênio ; e viver assim. "Minha única mobilidade hoje é em casa, porque lá tenho um fio bem longo que me permite andar sem que o cilindro fique perto. Mas não posso sair sozinho, não dirijo mais. Nem mesmo visito meus filhos ; são eles que precisam vir aqui." Falando pausadamente, o aposentado Luiz Carlos dos Santos, 70 anos, lembra-se bem do rapaz que começou a fumar aos 14. Como outros de sua geração, foi atraído pelo charme que o cigarro proporcionava, sem levar os riscos em conta. Ao todo, foram quatro décadas de vício. Em boa parte desse tempo, fumou três carteiras por dia, o equivalente a 60 cigarros diários.

Hoje Luiz Carlos é refém da oxigenoterapia domiciliar prolongada (ODP), modalidade de tratamento reservada àqueles com insuficiência respiratória aguda. Sempre acompanhado dos cilindros de O;, ele é um dos 466 pacientes com direito a receber o gás gratuitamente pelo Governo do Distrito Federal (GDF). O tratamento é meramente paliativo. A DPOC não tem cura e engloba várias doenças, sendo as mais graves o enfisema pulmonar e a bronquite crônica, que aparecem juntas, mas em graus diferentes. "Ela se mostra nos processos inflamatórios dos brônquios ou dos alvéolos, em um misto de situações", explica o pneumologista Ricardo Martins. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT), a doença reponde pela morte de 40 mil brasileiros por ano, o que a torna a quinta enfermidade mais perigosa no país.

A fumaça deletéria

Apesar de não ser o único fator de risco, o fumo é, sem dúvida, o principal causador da DPOC. "Em 80% dos casos, os pacientes são ou foram tabagistas", garante o pneumologista Laércio Moreira Valença. Como os malefícios do cigarro demoram a mostrar seus efeitos, os primeiros sintomas não são encarados como decorrentes do consumo. Os mais comuns são os episódios de tosse e as crises de falta de ar, que começam a limitar atividades corriqueiras do paciente.

De modo geral, a ajuda só é buscada quando a situação se torna insustentável. O fumante acha normal se cansar ao subir um lance de escada ; a "ficha" cai quando já não consegue fazer coisas simples, como tomar banho sozinho. "Agora, tudo é difícil para mim. Fico cansado em quase todas as ações do dia. Só converso com as pessoas se estiver usando oxigênio", resigna-se Luiz Carlos dos Santos. Entretanto, falta de ar e tosse nem sempre indicam DPOC. Somente após uma espirometria é que o diagnóstico será completo. O exame consiste em soprar um aparelho que mede a capacidade pulmonar. O teste deve ser repetido com frequência, de modo a avaliar uma possível evolução do problema. "Não há espirômetros suficientes em vários lugares do país. Em Rondônia, somente um aparelho atende todo o estado", reclama Roberto Stirbulov, presidente SBPT. No DF, existem quatro deles na rede pública, informou a Secretaria de Saúde do Distrito Federal à reportagem.

Em abril deste ano, novas diretrizes foram definidas para o diagnóstico, tratamento e prevenção da DPOC graças à Iniciativa Global para Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (Global Initiative for Chronic Obstructive Lung Disease, Gold, no original), entidade que reúne especialistas e médicos em todo o mundo. De acordo com o documento, além dos resultados da espirometria, a DPOC deve ser avaliada em relação à gravidade dos sintomas ; tosse, falta de ar e catarro ; e ao histórico de exacerbação deles. "Em 70% dos casos, essas exacerbações ocorrem por conta de infecções bacterianas ou virais", destaca Roberto Stirbulov. Essas novas diretrizes dividem os pacientes em quatro grupos, a partir da seriedade dos pontos analisados, o que vai ser decisivo para indicar o tratamento adequado.

Malhar para respirar

Os pacientes de doença pulmonar obstrutiva crônica veem sua autonomia declinar à medida que o fôlego diminui. A maioria deles foi fumante inveterado na juventudeApesar do avanço gradual, os doentes têm a impressão de que o mal ataca de repente. Foi assim com o aposentado José Messias, 70 anos. Ele lembra que estava animado para a festa de São João de 2003. Ao terminar a montagem da fogueira, decidiu tomar um banho e se vestir para a comemoração. "Quando comecei, fui sentindo uma falta de ar, mas não me importei, isso já era comum. Só que, naquele dia, foi muito pior. A sensação é que eu estava morrendo." José Messias ficou desacordado até ser acudido pelo filho e levado às pressas para o hospital, onde ficou internado por sete dias. O diagnóstico: DPOC.

José fumou dos 14 aos 50 anos. Era da Marinha e, nas viagens, sua única distração era o tabaco. "Fumava toda vez que colocava algo na boca, porque isso me chamava atenção para o cigarro. Acabava de almoçar? Fumava. Tomava um cafezinho? Fumava." Ainda na década de 1980, começou a sentir os efeitos do vício. Porém, considerava-os "coisa da idade" e pensava que fortificantes seriam suficientes para mudar o quadro. "Mas sentia um desânimo só de ver alguém caminhando na rua. Eu me perguntava: ;Como essa pessoa anda tão rápido?;." Disciplinado, ele hoje segue à risca o tratamento.

Uma das principais recomendações para portadores da doença é atividade física. Parece paradoxal sugerir exercícios para quem não consegue respirar direito, mas é a partir da melhora da função muscular que o enfermo consegue puxar melhor o ar para dentro de si. De acordo com o fisioterapeuta Sérgio Leite, um dos coordenadores do programa de reabilitação pulmonar do Hospital Universitário de Brasília (HUB), o músculo sedentário tem dificuldades de captar o oxigênio, mesmo em pacientes sem DPOC. Nesses, com a debilidade dos pulmões, a situação é ainda pior. "Na DPOC, o órgão primeiramente afetado é o pulmão. Em seguida, o sistema musculoesquelético. Os pacientes entram em um círculo vicioso: fazem atividade, sentem falta de ar, então param a atividade. Aí, respirar fica ainda mais difícil", resume.

A sala para a avaliação do paciente, cheia de bicicletas ergométricas e pesos, é silenciosa. "Eles não conseguem fazer os exercícios e conversar ao mesmo tempo porque o esforço é grande.", afirma Sérgio. Os exercícios são passados de forma progressiva, de modo a evitar riscos e não desanimar ; o programa dura oito semanas.

Tratamento pelo SUS

Além da reabilitação muscular, para fortalecer a capacidade respiratória, quem tem o problema depende de medicamentos. No mês passado, o Ministério da Saúde anunciou que os pacientes terão acesso a remédios pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Serão distribuídos os fármacos budesonida, beclometasona (corticoides inalatórios), fenoterol, sabutamol, formoterol e salmeterol (broncodilatadores), antes disponíveis apenas para o tratamento de asma. Vacinas contra influenza e oxigenoterapia domiciliar prolongada (ODP) também foram incluídas. Os gastos com o tratamento de pacientes com DPOC na rede pública vêm crescendo. Em 2010, foram investidos R$ 83,6 milhões. No ano passado, o valor saltou para R$ 87,1 milhões.

Mesmo elogiando a medida, o presidente da SBPT, Roberto Stirbulov, lamenta a ausência do brometo de tiotrópio na lista, já que se trata de um broncodilatador muito usado por portadores da doença. "Faltou ouvir a sociedade. Nós juntamos 400 manifestações de pacientes durante três meses e essa medicação foi reivindicada. O que temos é um avanço, mas ainda incompleto", pondera. Paralelamente à Iniciativa Global para doença pulmonar obstrutiva crônica, o Ministério também elabora um protocolo clínico para fixar critérios de diagnóstico.

No DF, os pacientes se beneficiam com o Programa de Oxigenoterapia Domiciliar desde 2006. A política pública trouxe maior qualidade de vida a quem faz uso do concentrador de oxigênio ; equipamento que estabiliza a função respiratória. "Além disso, são fornecidos broncodilatadores, corticoides orais, inalatórios e sistêmicos", informa a médica Graciene Silveira, assessora da Gerência de Atenção Domiciliar do Distrito Federal. Aqui, o brometo de tiotrópio é oferecido gratuitamente.

Uma advertência

Os pacientes de doença pulmonar obstrutiva crônica veem sua autonomia declinar à medida que o fôlego diminui. A maioria deles foi fumante inveterado na juventudeAos 15 anos, a aposentada Carmelita Aderalda da Silva, 63, fumou o primeiro cigarro. Casou-se cedo, tendo no marido alguém que controlava seu vício. "Eram dois ou três por dia, nunca passava disso. Foi assim até os 50 anos, quando fiquei viúva", lembra. A partir daí, a solidão foi compensada pelo fumo, e ela começou a dar fim a uma carteira inteira. Como o consumo era mediano, nunca havia considerado a possibilidade de o tabaco fazer mal. "Daí, comecei a ter dificuldades para me vestir. Passar o sabonete era complicado e, se comia algo mastigando muito, precisava parar e descansar um pouco." O aviso na embalagem é claro: "Não existem níveis seguros para o consumo destas substâncias".

Só que o poder viciante da nicotina acoberta as letrinhas miúdas. "Cerca de 60% das pessoas que fumam vão se tornar viciadas. O tabagismo tem relação com mais de 50 doenças", garante Ricardo Henrique Meirelles, pneumologista da Divisão de Tabagismo do Instituto Nacional do Câncer (Inca). De acordo com José Jardim, diretor de ensino da SBPT, existem 4.721 substâncias conhecidas no cigarro. "E mais 3 mil desconhecidas." A DPOC também pode ocorrer em quem trabalha com fogões a lenha, sendo essa fumaça ainda mais perigosa aos pulmões. Como esse tipo de forno é uma raridade, é mesmo o cigarro o grande desencadeador do mal.

Quando diagnosticados, 65% dos pacientes deixam de fumar. "Assim que soube, decidi parar. Precisei de três dias: no primeiro, foram três cigarros. No segundo, dois. No terceiro, apenas um. A partir daí, nunca mais pus um cigarro na boca", revela o aposentado Luiz Carlos dos Santos. De maneira geral, a doença leva 17 anos para ser diagnosticado. Os médicos usam a proporção ano/maço (um ano fumando um maço por dia) na tentativa de dar uma estimativa de quantos cigarros devem ser fumados antes de a doença se estabelecer. Em média, a DPOC é caracterizada por 20 anos/maço, mas os tabagistas moderados, como Carmelita, também adoecem. "O nome dessa doença parece até bonito, mas só até você conhecê-la de verdade. Depois, sente o quanto é terrível conviver com ela", adverte a aposentada.

O arrependimento é uma constante. Com os cabelos brancos e a voz sempre ofegante, José Edmundo Ferreira Assis, aposentado de 64 anos, que fumou durante 40 deles, parece até se esquecer do tubo de oxigênio quando perguntado o que acha, hoje, do cigarro, tamanha é sua exasperação. "Tenho horror. Me considero um idiota por ter fumado. Hoje sou prisioneiro de mim mesmo. Quisera eu poder colocar na cabeça das pessoas o quanto isso é ruim." Quem o vê tão limitado ; "Sou uma pessoa completamente sem autonomia sobre a minha vida por causa da DPOC" ; se convence disso rapidamente.

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