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Dona Canô e os almoços em família

Nos tempos em que integrava a equipe da Revista do Correio, o psicanalista João Rafael Torres entrevistou Dona Canô em três ocasiões. "Numa delas, nossa conversa foi transformada num depoimento cheio de poesia, publicado no dia em que ela completou 100 anos. Era uma série sobre o sentido por trás dos cinco sentidos e ela falou sobre o cheiro do almoço em família", lembra o terapeuta. Confira as palavras dessa inesquecível personagem de Santo Amaro da Purificação (BA)

postado em 25/12/2012 18:18
Nos tempos em que integrava a equipe da Revista do Correio, o psicanalista João Rafael Torres entrevistou Dona Canô em três ocasiões. "Numa família grande, manter a boa educação é um desafio para os pais. Graças a Deus, consegui isso. Tive oito filhos, mas ensinei que na mesa não se pode ser muito exigente. Sempre comemos comidas decentes e, sempre que dava, satisfazia um ou outro gosto deles. Fosse qualquer dia, as panelas não iam para a mesa se um dos filhos não tivesse chegado. Exigência de Zequinha, que Deus já levou. Durante a semana, revezava entre carne de boi, mariscos, galinha e peixe. Toda sexta e toda quarta tinha peixe, frito ou moqueca. Domingo, era feijoada.

Uma feijoada bem feita se sente o cheiro longe! Uma boa carne de sertão, com osso para dar o gosto, costela, pé de porco, chouriço feito em casa. Um aroma forte que vinha do armazém e que começava a perfumar a cozinha na noite do sábado, quando tudo ia para uma grande panela para perder o sal. Quando ligava o fogo, aquele cheiro ia tomando a casa, passava do portão. Bethânia sempre elogiava, dizia que não sabia se o melhor era o cheiro ou o gosto.

Quem chegava adivinhava de fora o que ia para a mesa. Uma boa moqueca, como a de tainha, com feijão de leite, prato que Caetano tanto adora, também não se esconde de ninguém. O aroma do pimentão, leite de coco e do bom dendê formam um perfume adocicado, que abre o apetite. Os temperos, o segredo do aroma de qualquer prato, vinham primeiro do canteiro do quintal e depois do mercadinho popular, na esquina de casa.

O calor das tardes atiçava ainda mais o nariz com o cheiro que vinha do tacho de doces,. Nunca fui muito de açúcar, mas todos os filhos gostavam muito de uma sobremesa. Compota de araçá, doce de leite, de goiaba, cortada em cumbucas. O de laranja da terra soltava mais gosto do que cheiro. Usava cravos como truque para aromatizar. Já o de abacaxi tinha um perfume delicioso, mas que sempre achei enjoativo demais até mesmo para provar. Na mesa, o prato principal, a sobremesa e um bom suco de cajá ou graviola. Ao redor, todos banhados e conversadores. Tudo junto dava um cheiro de alegria.

Agora, nessa tarde, me batem na porta umas baianas muito bem vestidas com roupas alvas e engomadas, e com tabuleiros de pipoca na cabeça. Pagam promessas para a festa de São Roque e trazem novamente para minha casa um cheiro que marcou os lanches da tarde de muitos domingos. Hoje, fica mais difícil sentir todos esses aromas. Os médicos me afastaram do fogão, sei que não tenho mais saúde para enfrentar as panelas. Os meninos também me fazem falta. Cada um com seus trabalhos, cada um com suas responsabilidades... Agora, para ter todos juntos só mesmo no meu aniversário e no São João. É assim mesmo. O tempo corrói pedras brutas, muda nossa história. Mas não tira o sabor da memória."

(Publicado originalmente em 16 de setembro de 2007, na Revista do Correio)

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