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Hemofilia: questão quase estancada

O portador do distúrbio genético viu a qualidade de vida melhorar muito nos últimos anos graças a avanços da medicina e expansão do atendimento pelo SUS

postado em 30/06/2013 08:00

O portador do distúrbio genético viu a qualidade de vida melhorar muito nos últimos anos graças a avanços da medicina e expansão do atendimento pelo SUS

O portador do distúrbio genético viu a qualidade de vida melhorar muito nos últimos anos graças a avanços da medicina e expansão do atendimento pelo SUS
Quando Antônia Ivonilda Ribeiro ouviu dos médicos, há mais de 20 anos, que seu filho Alexandre, hoje com 27, era portador de hemofilia, não foi uma grande surpresa, embora o fato de conhecer o distúrbio não amenizasse a tristeza e a preocupação que se seguem ao diagnóstico. Há muitas gerações que a família de Antônia lida com a hemofilia, um distúrbio genético ; a Organização Mundial da Saúde não classifica a condição como "doença" ; ligado à deficiência de um dos fatores de coagulação do sangue. São 13 no total. A hemofilia está relacionada especificamente à falta dos fatores VIII, no caso da hemofilia tipo A, ou IX, no caso da hemofilia tipo B, bem mais rara.

Mesmo com todos os outros 12 fatores em ordem, a simples baixa em um desses dois agentes faz com que o hemofílico fique suscetível a sangramentos difíceis de estancar e, principalmente, a hemorragia nas articulações (joelhos e cotovelos), o que pode deixar sequelas motoras. "Quando o Alexandre era criança, até um dente de lente que caía virava uma confusão. Corria para o hospital, dava ponto. Só eu sei o que eu passei", lembra Antônia, que hoje é vice-presidente da Associação e Casa dos Hemofílicos de Brasília. O caçula da família, João, 24 anos, também é hemofílico. Os irmãos foram diagnosticados com a forma grave da disfunção, quando a concentração do fator de coagulação deficiente é inferior a 1% da taxa normal.

Os especialistas estimam que cerca de 70% dos casos sejam hereditários, provenientes do cromossomo X, ligado ao sexo feminino. Por contraditório que possa parecer, no entanto, a hemofilia é quase sempre exclusividade dos homens. Isso porque como as coordenadas genéticas do sexo masculino são determinadas pela combinação XY ; o X herdado da mãe e o Y do pai ;, se o cromossomo feminino carregar o gene recessivo, necessariamente o menino nascerá com o distúrbio. "Mas como as mulheres têm dois cromossomos X, um vindo do pai e outro da mãe, mesmo que um deles seja hemofílico, o normal consegue compensar o defeito do outro", explica a médica hematologista Juliana Buzinaro Ribeiro, coordenadora do ambulatório de hemofilia do Hemocentro de Brasília. "Para que uma mulher seja hemofílica, ela precisa ter os dois cromossomos hemofílicos, o que é bastante raro", continua. Os outros 30% de casos que não têm origem hereditária ainda intrigam a medicina: seriam causados por mutações genéticas, ocorridas totalmente ao acaso durante a gravidez.

O Ministério da Saúde estima que existam no Brasil cerca de 11 mil hemofílicos, sendo 9.271 do tipo A e apenas 1.823 do tipo B. O tratamento atualmente é feito com reposição do fator deficiente, na maioria dos casos pelo chamado fator hemoderivado, uma concentração do agente coagulante retirada dos bancos de sangue. A medicação é importada e cara ; uma única dose pode chegar a R$ 3 mil. Contudo, há cerca de dois anos, a rede pública passou a oferecer o tratamento integral por meio dos hemocentros e dos demais centros tratadores e, desde o ano passado, o paciente pode estocar o fator em casa.

Uma novidade importante é que, muito em breve, o governo expandirá o fornecimento do chamado fator VIII recombinante, feito com proteínas do rato e, segundo alguns especialistas, mais seguro e eficaz ; ele responde positivamente em 90% dos casos de hemofilia tipo A. "Mas a principal vantagem é que, como ele não depende de sangue humano para ser fabricado, consegue-se manter os estoques, independentemente de doações", explica Juliana Ribeiro.

A substância é bem mais cara que a similar feita a partir de sangue humano ; US$ 1,50 contra US$ 0,20 por unidade. Por isso, só era fornecida em casos excepcionais ou mediante provimento judicial. Agora, começará a ser produzido no Brasil, o que reduzirá muito o custo. O Ministério da Saúde estima que, em até dois anos, o novo medicamento substituirá o fator plasmático em 20% dos tratamentos. Para atingir essa meta, até dezembro próximo, o governo terá investido US$ 120 milhões na importação das doses e no programa de transferência tecnológica.

"Hoje a gente está no céu", comemora Antônia. "Meu irmão foi um dos primeiros hemofílicos diagnosticados aqui em Brasília. Se você visse o que era no passado...", compara. De fato, o consenso tanto entre pacientes quanto entre especialistas é que a geração atual de jovens e crianças hemofílicas pode se considerar privilegiada. Não só porque o tratamento é mais seguro mas também porque está disponível na rede pública.

Há 30 anos, quando Tânia Pietrobelli, presidente da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH), descobriu que o filho era portador de hemofilia tipo A, sequer existia o fator derivado de sangue humano no Brasil. Os hemofílicos se tratavam com o chamado crioprecipitado, um concentrado de fator retirado do plasma humano aplicado apenas para conter hemorragias. O risco era o mesmo de uma transfusão de sangue. Como o teste para detecção do vírus HIV, por exemplo, só apareceu em 1985, foi nessa época que muitos hemofílicos contraíram Aids. A própria Antônia, mãe de Alexandre, perdeu, no início dos anos 1980, um sobrinho de 7 anos, também hemofílico, para a doença. "Naquela época, o tratamento era um jogo de cara ou coroa. Os pacientes podiam melhorar da hemorragia, mas corriam o risco de contrair alguma doença incurável", pontua. Hoje, o fator passa por um processo de desativação viral.

Tânia preferia tirar do próprio bolso o recurso para comprar o fator hemoderivado, que custava cerca de US$ 0,50 a unidade internacional (uma única dose pode chegar a 5 mil unidades, dependendo do paciente), e fazer o tratamento preventivo no filho, provavelmente o motivo de ele ser hoje um dos poucos representantes da população hemofílica daquela geração que não usa bengala nem se aposentou precocemente. "A história do meu filho ajudou a provar às autoridades que, com tratamento adequado, o hemofílico pode ter uma vida plena, contribuir com impostos como qualquer cidadão."

Segundo Tânia, desde 2009, quando a FBH ampliou a luta pelo tratamento profilático via rede pública, a compra de fator pelo governo triplicou. Hoje, os estoques do Sistema Único de Saúde (SUS) são de 3,9 unidades per capita, contra apenas uma quatro anos atrás, quantidade que, ainda de acordo com ela, era suficiente apenas para o tratamento de sobrevivência dos pacientes. Desde 2012, o hemofílico tem direito também a estocar em casa doses do fator para um mês de tratamento, o que permite que o paciente falte menos à escola e ao trabalho.

Apesar dos avanços, ainda há muito por fazer, reforça Tânia Pietrobelli. "Embora os estoques sejam de quase quatro unidades por pessoa, o que é suficiente para dispensar o tratamento ideal a todos os hemofílicos do país, a gente sabe que a quantidade distribuída aos hemofílicos pelos centros é de 1,9 apenas. Sobra fator no Ministério da Saúde. As pessoas precisam saber que elas têm direito ao tratamento integral. Assim como os hematologistas, que têm na ponta da caneta o poder de decidir a vida de seus pacientes."

O fim de um estigma
Ficou para trás o estigma da deficiência física e da contaminação por HIV que rondou por muito tempo a hemofilia. Se o tratamento de prevenção de hemorragias for feito desde a infância, o paciente tem grandes chances de não desenvolver sequelas motoras. "O acesso à profilaxia foi um grande ganho. Agora temos que explicar às famílias que ela não é um luxo, é uma necessidade", pontua a hematologista Mônica Veríssimo, do Comitê de Hematologia Pediátrica da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH). "Acabou essa ideia de que essas pessoas são mais frágeis. Com o tratamento, elas conseguem levar uma vida completamente normal", continua a especialista.

Na infância do auxiliar administrativo Maximiliano Anarelli, hoje com 36 anos, as aulas de educação física não tinham lugar. Ele é portador do tipo mais comum de hemofilia, a A, diagnosticado aos 3 anos. Antes de descobrir a doença, em 1980, perdeu dois tios hemofílicos, os dois com menos de 20 anos, que morreram com diagnóstico de reumatismo em um tempo em que a hemofilia era um grande desconhecido da medicina. Na adolescência, foi internado cinco vezes para conter sangramentos. Na época, tinha direito a uma única dose domiciliar do fator para situações emergenciais. Ele mora em Timóteo, em Minas Gerais, e o centro tratador mais próximo fica em Belo Horizonte, a três horas de carro.

"Quando o sangramento era grave, exigindo internação, eu tinha que viajar. Viajava mesmo se conseguisse controlar a hemorragia com o único fator disponível, porque aí era preciso repô-lo", lembra. Hoje, Maximiliano leva uma sequela em um dos joelhos, que embora não seja um grande empecilho, o obriga vez ou outra a lançar mão de uma bengala. Ele mantém um blog e uma página no Facebook ; Hemofilia News ; para divulgar o transtorno e orientar pais e pacientes. "É a ;hemofamília;, um termo que uma mãe usou e acabou pegando", comenta. "Já passei por muitos momentos difíceis, mas digo que, depois de toda chuva, sempre vem o sol. Turbulências não nos impedem de voar", diz.

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