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A dor como ela é

Para pelo menos 60 milhões de brasileiros, a dor deixou de ser um sintoma para se transformar na própria doença. Veja o emocionante depoimento de cinco pessoas que se viram obrigadas a conviver diariamente com o problema %u2014 físico e, por consequência, emocional

Gláucia Chaves
postado em 06/04/2014 08:00

Quando algo não vai bem, a presença dela é garantida. Ainda que, em alguns momentos, não seja possível detectar exatamente o que ela está sinalizando, a dor é um importante sintoma. Quase como um aviso de que é preciso prestar mais atenção a si mesmo. Assim como o corpo, porém, ela também é complexa: às vezes, a dor é tão intensa que deixa de ser sintoma e passa a ser a própria doença. A partir daí, torna-se uma companheira inseparável e igualmente desagradável. Entendê-la e conviver com ela é um desafio ; mas não necessariamente o fim.
Como saber, porém, que a dor já passou para outro nível? José Tadeu Tesseroli de Siqueira, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor (SBED), explica que um indicativo usado é o tempo. Se a dor que surgiu a partir de algum procedimento, como uma cirurgia, por exemplo, não desaparece mesmo após o tempo que seria esperado, há chances de ela se tornar crônica. ;Hoje, estipula-se cerca de três meses como o mínimo para definir uma dor como crônica, embora essa estimativa seja controversa;, frisa. O número é apenas um ponto de partida, segundo o médico, porque a dor pode insistir em ficar devido a um diagnóstico impreciso, por exemplo.
Em outras palavras: a dor crônica é aquela que persiste, a despeito da cicatrização, e não tem valor biológico algum. Ela não serve mais para indicar que algo está errado e não é mais um aviso ; é a própria doença. ;Ela passa a agregar problemas secundários, como imobilidade, distúrbios do sono, alterações de humor, quadro depressivo e até mesmo tendências suicidas;, enumera Siqueira. O problema é quando o profissional não está preparado para reconhecer que a dor já ultrapassou a linha do sintoma e passou a ser doença. É importante que o diagnóstico da dor crônica, explica José Siqueira, seja feito por médicos especializados em dor.

Para pelo menos 60 milhões de brasileiros, a dor deixou de ser um sintoma para se transformar na própria doença. Veja o emocionante depoimento de cinco pessoas que se viram obrigadas a conviver diariamente com o problema %u2014 físico e, por consequência, emocional

Patrícia Alvarista, 43 anos, ex-cabeleireira
O que causa a dor: fibromialgia
;A fibromialgia é uma doença que prejudica muito a memória. Por isso, não lembro muito bem as datas em que meus problemas foram acontecendo. Tenho desde criança, mas só fui diagnosticada quando vim para Brasília. Sempre que ia ao médico, achavam que era dor na coluna, por conta do meu trabalho. Eu era cabeleireira. Passei a perder meus movimentos até que fiquei 120 dias sem andar. Fui ao médico e ele pediu meu histórico. Descobri que uma das vezes que dei entrada no hospital, eu já tinha sido diagnosticada com fibromialgia, mas o médico não me comunicou nem me explicou como deveria proceder.

Ele me passou uma medicação muito forte, que, depois, descobri que só poderia ser usada uma vez por mês. O médico me orientou a tomar todos os dias. Achei milagroso, porque em três dias voltei a trabalhar, mas, em um mês, engordei 20kg, porque alterou minha tireoide. Desde então, meu metabolismo foi para o espaço. Fiquei novamente sem andar, achei que nunca mais conseguiria voltar. Sinto dores todos os dias. Tenho todos os 18 pontos desenvolvidos (a doença caracteriza-se por 18 pontos de dor fundamentais). Dizem que a doença não é incapacitante, mas como se eu mesma era cabeleireira e estou há anos sem conseguir voltar a trabalhar? Hoje, se tento cortar o cabelo de alguém aqui de casa, tremo de dor. Os médicos disseram que minha doença é muito grave, que posso esquecer a minha profissão.

O que mais maltrata a gente é a falta de tratamento multidisciplinar. Na rede particular, fui até onde deu, mas, agora, estou sem tratamento. As medicações são caras e não posso pagar. Fui a Recife para me tratar. Fiquei dois anos, mas voltei porque meu marido mora aqui. Lá, eu conseguia acupuntura, fisioterapia, hidroterapia, mas em Brasília tudo isso é muito caro e não se consegue nada pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Temos muitos problemas financeiros por causa disso, porque tive que parar de trabalhar e não conseguimos mais bancar os tratamentos. Fui ao Ministério da Saúde, mas me informaram que eles só podem fazer algo por instituições.

Criei a Associação dos Portadores de Fibromialgia e queremos uma campanha de sensibilização da fibromialgia, como fazem com o cigarro e com a bebida. Queremos legalizar a associação, mas não é fácil. O difícil é lidar com pessoas que sentem dor todos os dias. Elas ficam desanimadas e desistem da luta. Temos um grupo de apoio, tentamos ajudar e chamar o pessoal para lutar, mas a maioria desiste.

Quero atendimento para ter pelo menos um pouco de qualidade de vida. As pessoas dizem que me veem forte. Mas isso é uma coisa que mexe muito com o psicológico. Tenho fadiga crônica, então durmo e acordo muito cansada. Tem dias que sinto tanta dor que não sei nem por onde começar a contar para o médico. Se saio de casa um dia, fico outros três sem conseguir levantar. Sinto como se eu fosse uma prisioneira. A fibromialgia precisa ser tratada pelo emocional e, raramente, conseguimos um psicólogo.

Só de falar em futuro, já sinto vontade de chorar. Cada dia que passa, sou mais prisioneira da cama. Como vou pensar em futuro? As pessoas ajudam no começo, mas, quando veem que é uma dor contínua, terminam se afastando. Quem quer conviver com uma pessoa que sente dor o tempo inteiro? A gente vai perdendo a parte social da vida. Não lembro a última vez que saí para passear. Sei que, se eu tivesse tratamento, poderia ter menos dores e viver. O problema é achar. A realidade é que somos invisíveis, assim como as clínicas de dor do DF.;

Tipos de dor
A dor crônica está presente em praticamente todas as especialidades médicas. Veja algumas:
; Músculo-esquelética
; Pós-operatória
; Pós-traumática
; Ação degenerativa na coluna
; Dores de cabeça

Tratamentos
; Fermacológico
; Reeducação postural
; Hipnoterapia
; Massoterapia
; Fisioterapia
; Musicoterapia
; Ozonioterapia
; Cirurgia
; Radiofrequência
; Implante de marcapasso para alívio da dor
; Implante de bombas que bombeiam medicação em baixas doses

Fonte: José Oswaldo de Oliveira Jr, neurocirurgião, diretor da Unidade de Dor do Hospital A.C Camargo e diretor do Departamento de Terapia da Dor e Cirurgia Funcional da Escola de Oncologia Celestino Bourroul.

Para pelo menos 60 milhões de brasileiros, a dor deixou de ser um sintoma para se transformar na própria doença. Veja o emocionante depoimento de cinco pessoas que se viram obrigadas a conviver diariamente com o problema %u2014 físico e, por consequência, emocional

Danny Nunes de Sousa, 32 anos, agente da Polícia Civil
O que causa a dor: espondilite anquilosante

;Eu tinha acabado de passar em um concurso e estava sentindo várias dores na região da clavícula, no ombro e no dorso. Achei que era por conta de má postura, porque ficava muito tempo sentado, estudando. Fui a vários ortopedistas e nada resolvia. Tomava anti-inflamatórios, mas só amenizavam a dor. Meu pai é médico e me encaminhou a um reumatologista. Fiz uma bateria de exames e, paulatinamente, o médico fechou o diagnóstico. Comecei o tratamento em 2007. A espondilite anquilosante é como se fosse artrite reumatoide.

Tenho parte da bacia rígida, porque a doença começa como uma inflamação e vai necrosando. Se eu não tratar, minha coluna pode virar um osso só. Na pior crise, que coincidiu com o período em que eu não estava tomando a medicação, comecei a ter dores no ombro, no dorso, nas costas e no joelho. Fiquei muito amargurado, tive depressão, porque eu estava em um trabalho bem específico, que exigia treinamento, postura.

Sentia uma ardência entre os ossos, nas articulações. É como se tivesse alguma coisa queimando dentro de mim. Tenho que manter meu corpo em movimento. Se eu durmo muito, já sinto meu corpo rígido, como se meus ossos estivessem se contraindo. A depressão atrapalhou a melhora. Passei por várias etapas do tratamento e, durante cada uma delas, tive acompanhamento constante, com medicações que amenizavam os sintomas. Mas a doença é autoimune e não tem cura.Cheguei a ficar alguns períodos de atestado médico porque não conseguia me mexer.

Cheguei na fase final do tratamento e, há dois anos e meio, tomo um remédio biológico. Ele é distribuído pela Secretaria de Saúde e é muito caro, só tomo porque preencho todos os requisitos. Tive três crises fortes antes de começar, cheguei a ficar imóvel por algum tempo. Preciso fazer exame de sangue de três em três meses, porque o remédio baixa a imunidade. A doença vai retrocedendo por conta da baixa imunidade, mas me deixa exposto a outros problemas. Compenso com alimentação saudável, atividade física e vida regrada. Tomo uma injeção a cada 15 dias. Cada caixa vem com duas injeções e custa R$ 7.500. Não teria a menor condição de comprar.

A princípio, consegui me readaptar. Tenho restrição médica, então, não é permitido que eu faça certos serviços da polícia. É complicado porque, visualmente, a pessoa está inteira. A dor é muito pessoal, as pessoas não entendem, então, você está sujeito a críticas. O povo te chama de preguiçoso. E, como você está sentindo dor, acaba não tendo a mesma performance. Em crises graves, não consigo abaixar para amarrar o sapato. Um gestor já me disse que, se soubesse como eu era ;podre;, não teria me chamado para trabalhar com ele. Isso me magoou, mas hoje estou bem.;

Tentando decifrar o problema
Pacientes com dores que nunca passam não são raros. Segundo a SBED, o percentual médio de pessoas afetadas por algum tipo de dor crônica varia de 15% a 40% da população brasileira ; mais de 60 milhões de pessoas. Entre a população mundial, esses índices são de 20% a 30%. A entidade estima que o indivíduo com dor demore até oito anos para procurar ajuda. Na literatura médica, estudos que visam entender, mapear, prevenir e tratar a dor crônica estão por toda a parte e abarcam todas as especialidades.

O neurocirurgião José Oswaldo de Oliveira Jr, diretor da Unidade de Dor do Hospital A.C Camargo e diretor do Departamento de Terapia da Dor e Cirurgia Funcional da Escola de Oncologia Celestino Bourroul, explica que, se a dor demora muito para passar, começa a provocar alterações no sistema nervoso. ;Geralmente, é uma sensibilização progressiva e que torna o status doloroso uma situação geneticamente documentada.;

De acordo com o médico, as células cerebrais começam a ser transformadas geneticamente. ;As células entendem o estado de sensação dolorosa como normal, de modo que ela sempre vai responder sentindo dor.; Uma dor persistente causa estímulos, liberação de substâncias químicas e reações dentro e fora das células. ;A célula, então, começa a fazer atalhos metabólicos. Chega em um ponto em que ela dá a mesma resposta, mesmo sem estímulo. Como a parte genética mudou com a dor crônica, fica difícil reprogramar a célula.;

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