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Um código muito particular

As estratégias encontradas pelos disléxicos para conviver com o distúrbio de aprendizagem que afeta 1,8 milhão de pessoas

Flávia Duarte
postado em 21/09/2014 08:00

As estratégias encontradas pelos disléxicos para conviver com o distúrbio de aprendizagem que afeta 1,8 milhão de pessoas"Esse problema não aparece fisicamente. Seria melhor não ter um braço porque aí notariam que somos diferentes." A frase resume uma infância e uma adolescência de sofrimentos e julgamentos. Com uma sinceridade totalmente despida de medos, apropriada só mesmo por quem enfrenta um drama invisível e ; por muito tempo inexplicável ;, o psicólogo Otávio Giacomo, 50 anos, encontra uma dura definição de como é conviver com a dislexia. Ele é apenas um no universo de pelo menos 1,8 milhão de pessoas, segundo a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), a ser diagnosticado com o distúrbio de aprendizagem que torna incompreensível, no primeiro momento, a ligação entre letras e sons.

O problema não pode ser considerado uma doença. O cérebro do disléxico é fisicamente intacto, sem qualquer lesão que possa diferi-los dos demais. O órgão só funciona de maneira diferente, o que dificulta o processo de leitura e escrita. Cognitivamente, quem tem o distúrbio é igualmente apto a desempenhar qualquer atividade, sem qualquer prejuízo. Mas, se o processo envolver letras e números, certamente o tempo demandado para a conclusão do desafio será diferente. Eles são mais lentos, já que o caminho que percorrem para chegar até o fim da tarefa de ler e escrever é mais tortuoso e com obstáculos adicionais.

Imagens do cérebro de crianças com dislexia sugerem que, quando estão aprendendo a ler e escrever, elas ativam áreas cerebrais diferentes daquelas ativadas por meninos e meninas sem a mesma dificuldade. "Na verdade, nosso cérebro não está programado para ler. Essa é uma habilidade artificial que treinamos. A escrita é feita de códigos criados pelo homem e entre 5% e 10% das pessoas têm dificuldades de aprendê-los", explica Augusto Buchweitz, pesquisador do projeto ACERTA, do Instituto do Cérebro da PUC-RS, que têm como objetivo estudar o que ocorre no cérebro das crianças em fase de alfabetização e que apresentam problemas de aprendizagem.

"Eles não têm questões médicas relevantes; têm QI normal, muitas vezes, inclusive, acima da média. O que existe é uma dificuldade em decodificar as palavras com fluência e velocidade", esclarece Augusto. Dá para ter uma ideia desse tempo particular. Enquanto um leitor sem qualquer traço de dislexia lê, em média, de quatro a cinco palavras por segundo e atinge cerca de 200 por minuto, o cérebro do disléxico apresenta outro ritmo. Ele busca conexões similares para fazer a mesma tarefa e, por tal razão, precisa de mais prazo. Assim, uma criança disléxica lerá, em média, de 10 a 30 palavras a cada minuto.

Uns serão mais ou menos velozes. Quanto antes for feito o diagnóstico, mais rapidamente esse cérebro encontrará suas próprias artimanhas para superar uma dificuldade da qual não se livra nunca. Não há cura para a dislexia, que é antes de tudo uma herança genética. Disléxicos têm um dos pais com as mesmas características.

Há diferentes graus do quadro, mas alguns sintomas definem o distúrbio. Um dos pontos determinantes do diagnóstico está relacionado à incapacidade de a pessoa "relacionar o código escrito com o falado; fazer uma relação entre o som e a letra que ele representa", explica a pedagoga Margot Marinho. Na prática, é como se no primeiro contato com o alfabeto, as letras, tampouco a combinação delas, não fizessem o menor sentido. É como ser um estrangeiro no seu próprio idioma.

O desafio de quem tem essa disfunção cerebral é encontrar mecanismos de se apropriar desses códigos e compreendê-los. Só assim vai ser capaz de ler e escrever correta e fluentemente. "O processo de decodificação deles é um pouco diferente. Qualquer ordem é difícil para eles: o alfabeto, os meses do ano, os dias das semanas. Tudo para eles é aleatório. Não têm lógica", define a fonoaudióloga Alice Sumihara, especialista em transtorno de deficit de atenção (TDAH) e dislexia pela Associação Brasileira de Dislexia.

Analisando o conceito, parece simples e superável. Identifica-se o problema ainda na infância, especialmente na fase de alfabetização, busca-se ajuda profissional ; de fonoaudiólogos, psicopedagogos, psicólogos, neurologistas ; e, aos poucos, cada um encontra as estratégias para associar as letras aos sons que escutam. "Inclusive, campanha mundiais reforçam que quanto mais cedo começar a intervenção melhor será o quadro. Isso porque o cérebro é plástico", afirma a fonoaudióloga e psicopedagoga Maria Angela Nico, presidente da Associação Brasileira de Dislexia (ABD).

Mas o caminho até lá é árduo. Especialmente quando o diagnóstico demora a chegar. Antes de entender o porquê de a criança não acompanhar o processo de leitura dentro da sala de aula, são muitos os julgamentos feitos. Muitas são acusadas de preguiçosas, consideradas menos capazes. A autoestima é destruída nesse processo. Tudo resultado de desconhecimento.

A criança, em geral, não consegue escrever corretamente as palavras. Ela ouve e compreende, mas colocá-las no papel de forma gráfica não tem lógica. Elas podem escrever palavras sem o menor sentido para um leitor normal e estarem certas de que leem o que querem dizer. Podem alterar a ordem das letras e "azedo" virar "adezo", por exemplo. Podem pensar em colocar no papel "infância", mas acabar saindo "infâmia", que visualmente parece tanto com a primeira. Ainda estão mais propensas a juntar palavras e separar outras que deveriam se manter unidas. Podem trocar fonemas que, de tão semelhantes, provocam confusão em um cérebro que tem um funcionamento muito particular, como é o caso de "vaca" e "faca".

Sem falar nas comorbidades associadas ao transtorno de aprendizado. Os dislexos, em maior ou menor grau, podem ser igualmente confusos ao se localizarem espacialmente e se perderem na tentativa de identificar a lateralidade, esquerda e direita. Podem ser dispersos por causa do diagnóstico de transtorno de deficit de atenção (TDAH). Às vezes, ainda apresentam alterações auditivas (Processamento Auditivo Central) e têm dificuldades de interpretar os sons. Tarefas simples, como decorar músicas e entender piadas, podem resultar em um fiasco. Crianças disléxicas podem não interagir em brincadeiras em grupo porque não compreendem os comandos rapidamente. Anotar recados é um martírio. Rimas soam incompreensíveis e fazer contas pode ser um suplício. Olhar as horas em relógio de ponteiro? Nem pensar.

Um passeio pela mente deles
As estratégias encontradas pelos disléxicos para conviver com o distúrbio de aprendizagem que afeta 1,8 milhão de pessoasPara entender como funciona a mente de um disléxico, só mesmo conversando com eles. "Cada dislexo é diferente", atesta Maria Angela Nico, fonoaudióloga e psicopedagoga da ABD. Por isso, o psicanalista Otávio Giacomo dá logo um chute e começa o papo dizendo que preferia ter uma deficiência aparente. Acha que, se sua limitação fosse óbvia, não teria sofrido tanto ao longo da infância até o início da vida adulta. "É muito difícil não ser burro e ser tratado como idiota", resume sem rodeios, e segurando o choro.

Ele é um tipo grandalhão. Alto e largo. Impossível não notá-lo. Seja pelo tom de voz empostada, seja pela risada sonora e de frequência generosa. Ele se define como um psicanalista às avessas e acredita que o bullying tem lá seu efeito terapêutico, apesar da dor. É o preconceito que fortalece e obriga a suposta vítima a encontrar soluções.

Foi assim com ele. Em sala de aula, Otávio compreendia tudo o que o professor explicava. Às vezes, tanto sabia, que até perdia o interesse na aula. Aliás, não é privilégio dele. A maioria dos disléxicos tem uma inteligência acima da média. A explicação de Otávio para esse predicado está na matemática. "Eu uso mais meu cérebro do que você. Da mesma forma que encontro outro caminho para aprender, vou usar essa energia para fazer outras coisas", considera ele.

A designer de interiores Maria Eugênia Ianhez, 46 anos, também encontra uma justificativa para a compensação. Como o lado esquerdo do cérebro do disléxico, onde são processadas as funções de leitura, escrita e cálculos matemáticos, funciona diferente, o direito seria mais eficiente. É justamente esse o lado da emoção e da criatividade. Talvez fosse essa uma explicação para existir entre artistas e pintores famosos tantos com traços da dislexia.

Maria Eugênia mesmo garante que "adora" fazer parte do grupo dos disléxicos. "Tenho competência para saber o que suprir minhas necessidades e não cometer erros. Sou mais intuitiva, criativa e isso me coloca na frente dos outros", avalia, a moça falante, bem articulada e sem nenhum indício de que sofria tanto para ler, escrever e entender as ideias que estavam representadas em letras.

Aliás, ser a mais querida e a mais simpática da turma foi uma estratégia de sobrevivência que ela encontrou para superar as dificuldades na escola. Se não conseguia colocar no papel os símbolos corretos que formavam as palavras, era ela quem apresentava os trabalhos orais diante da turma. Compensava a falta de jeito com o português, com a simpatia e a desenvoltura.

E assim é com cada disléxico, que encontra uma forma própria de superar as dificuldades. A associação é uma delas. Maria Eugênia explica que associar uma palavra a imagens, facilita lembrar a forma de escrevê-la. Um exemplo seria a palavra "ingresso". "Um disléxico uma vez disse que sabia que era com dois SS já que, para ele, bom era ir ao cinema acompanhado. Então o S também aparecia em casal", diz Maria Angela, da ABD.

E outras estratégias são válidas. O estudante Matheus Félix, 15 anos, só estuda teorias de história e geografia com música, por exemplo. A mãe dele, a funcionária pública Lusimar Félix, achou o hábito estranho e pensou que o gosto só podia ser desatino para o menino que já tinha tanta dificuldade de compreensão. Mas ela, nem ninguém, pode entender como funciona a mente de um disléxico. O jovem explicou que a música não atrapalhava. Ao contrário, ele associava um trecho da canção ao que lia no texto. Assim, gravava a teoria mais facilmente.

Quando suspeitar

Alunos com desempenho inconstante.
Lentidão nas tarefas.
Demora na aquisição da leitura e da escrita.
Escrita incorreta, com trocas, omissões, aglutinações, desaglutinações de fonemas.
Dificuldade em rimas.
Discrepância entre as realizações acadêmicas e o potencial cognitivo.
Dificuldade em organização sequencial, por exemplo, meses do ano, alfabeto, tabuada.
Prejuízo na orientação temporal: direita, esquerda, horas.
Desconforto ao tomar notas, bilhetes, recados.
Fonte: Mariflor Maia, psicopedagoga do centro especializado em dislexia e dificuldades de aprendizagem

Como ajudar

Leia para a criança todos os dias: livros, jornais, revistas e qualquer coisa que realmente o interesse.
Encoraje-o a ler todo tipo de texto, não importa o modo como o faça. Quanto mais agradável for, melhor.
Permita o uso de marcadores para seguir a leitura.
Grave textos.
Use canetas marca-texto para ressaltar os itens a serem lembrados.
Incentive revezar a leitura, em voz alta, de frases e parágrafos de um texto com outra pessoa.
Associar sons e imagens a palavras ajuda a gravar o modo de escrevê-las.

Fonte: com informações do livro Nem sempre é o que parece ; como enfrentar a dislexia e os fracassos escolares e da fonoaudióloga Alice Sumihara, especialista em transtorno de deficit de atenção (TDAH) e dislexia pela ABD.

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