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Quando o importante é o amor, os rótulos ficam em segundo plano. É cada vez mais frequente escolher o parceiro sem levar em conta o seu gênero %u2014 e deixar isso claro para qualquer um

postado em 28/09/2014 08:00

Quando o importante é o amor, os rótulos ficam em segundo plano. É cada vez mais frequente escolher o parceiro sem levar em conta o seu gênero %u2014 e deixar isso claro para qualquer umDe repente, as classificações que já pareciam confusas para muitos ; hétero ou homossexual, bissexual, assexual, transgêneros e a lista ainda vai longe ; ficaram insuficientes para definir a diversidade do comportamento sexual de uma geração que não quer saber de se enquadrar, só de ser feliz. Os nomes, as orientações, seus limites e nuances saíram de cena para dar espaço a algo que tem importância muito maior: o amor.

Não que isso seja um traço exclusivo da atual geração, dizem os especialistas. A sexualidade humana sempre pendeu para certo pluralismo. A diferença é que antes não se falava sobre isso. Para se ter uma ideia, uma pesquisa do biólogo norte-americano Alfred Kinsey, no começo do século 20 e que viria a ser o alicerce do estudo da sexologia no mundo, identificou muito mais do que a hétero e a homossexualidade. O estudo, conduzido com milhares de americanos, homens e mulheres, de diferentes classes sociais, resultou no Relatório Kinsey, do qual saiu uma escala que coloca entre o comportamento "exclusivamente heterossexual" e o "exclusivamente homossexual", outros cinco tipos de preferência (veja quadro). Era o primeiro indício de que a coisa não era assim tão simples quanto se achava.

Alguns estudiosos vão mais longe. Marjorie Garber, professora da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, compara a noção de que as pessoas devem ser homo ou heterossexuais com a crença antiga de que o mundo era plano e o Sol girava ao redor da Terra. Para ela, em vez de hétero, homo, bi, pan etc., deveríamos dizer que as pessoas são simplesmente "sexuais".

"Não acontece com todo mundo, mas pode ser que, em diferentes períodos da vida de uma pessoa, ela se sinta atraída por alguém do mesmo sexo. Há evidência de que as mulheres são mais suscetíveis a isso", diz Jennifer Bass, diretora de comunicação do Instituto Kinsey de Pesquisa em Sexo, Gênero e Reprodução, fundado pelo próprio Kinsey nos anos 1940, na Universidade de Indiana. "Há um movimento hoje de se livrar de rótulos muito restritos, como homo e heterossexualidade, e há mais gente se identificando como ;queer; ou ;questionando;. Eles não querem ser colocados em nenhuma categoria rígida."

Quem manda é o desejo
Para a psiquiatra e sexóloga Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo, a discussão esbarra ainda no nosso momento histórico: é tempo de debater o tema, como já aconteceu com outros tabus, por exemplo, a masturbação. "Será que é diferente hoje ou será que hoje se fala mais abertamente sobre o assunto?" questiona. Ela acredita que o comportamento sexual parece mais livre porque o debate é mais amplo, e que, um dia, quando a discussão se esgotar, os rótulos deixarão de ter tanta importância. "Acredito que todo assunto, quando é muito debatido, muito falado, cai no lugar comum. Quando se esgota, a postura das pessoas diante daquilo muda", pontua.

O fato de a juventude ter mais coragem para expor suas preferências e se encaixar ou não em padrões pré-estabelecidos ajuda a acelerar o processo de pôr fim ao estigma da sexualidade. "Vejo as novas gerações vivendo sua sexualidade. Por isso, essas e outras mudanças vão continuar acontecendo. Mas não na maneira como as pessoas fazem sexo. E, sim, na forma como a sociedade lida com as diferenças sexuais. Assim como, antes do surgimento da pílula anticoncepcional, as pessoas já faziam contracepção, usando coito interrompido. Apenas não se comentava. É o mesmo", compara a especialista.

A sensação de uma suposta "evolução" na maneira de pensar, no entanto, é vista com cautela por Jennifer Bass, do Instituto Kinsey. "Isso tem muito mais a ver com cultura, crenças religiosas e política do que com uma evolução na forma de pensar", analisa. "Ainda existem partes do mundo em que continua sendo inaceitável ; e até perigoso ; se abrir quanto à sexualidade. Por outro lado, com a internet e o mundo globalizado, as minorias sexuais e de gênero encontram apoio e informação com mais facilidade", continua.

Para o psicólogo Henrique Nardi, coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o desejo sempre existiu, mas o que faz as pessoas se sentirem livres para se entregar ou não a ele é a norma social vigente, que muda de tempos em tempos. "O desejo não se controla, faz parte do inconsciente. Mas as pessoas se identificam com uma ou outra orientação sexual de acordo com a norma social. Enquanto ela for rígida, as pessoas vão viver mais escondidas. O que precisa ficar claro é que permitir, por exemplo, o casamento homossexual não vai ;produzir; mais gays. Isso é desejo. E desejo não se controla com lei", ressalta o psicólogo.

Escala Kinsey (1948)
0 - Exclusivamente heterossexual
1- Predominantemente heterossexual, com incidentes homossexuais
2 - Predominantemente heterossexual, com mais do que incidentes homossexuais
3 - Igualmente hétero e homossexual (bissexual)
4 - Predominantemente homossexual, com mais do que incidentes heterossexuais
5 - Predominantemente homossexual, com incidentes heterossexuais
6 - Exclusivamente homossexual

Leia a reportagem completa na edição n; 489 da Revista do Correio.

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